segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

EUA torpedeiam contatos de Karzai com os Talibã


9/2/2014,[*] MK Bhadrakumar, Strategic Culture
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Barack Obama e Hamid Karzai... Rumos opostos?
Já é bem claro que o presidente Hamid Karzai do Afeganistão manteve a palavra, e com certeza haverá transição política no Afeganistão, com eleições marcadas para 5 de abril de 2014.

As insinuações, que comentaristas e jornalistas norte-americanos em geral recebem de adversários afegãos de Karzai, e repetem incansavelmente, conseguiram implantar muitas suspeitas contra a sinceridade da promessa que o presidente afegão fez; a imprensa-empresa ocidental por muito tempo dedicou-se exclusivamente a “noticiar” que Karzai se agarraria ao poder e ali ficaria pelo mais longo tempo possível. Hoje, já se vê que aquele “noticiário” nunca passou de propaganda enganosa.

A campanha eleitoral, para os onze candidatos, começou formalmente semana passada no Afeganistão.

Por sua vez, os EUA decidiram não mais realizar pesquisar de opinião no Afeganistão – sob o pretexto de que, assim fazendo, estariam mantendo posição de rigorosa neutralidade. Na realidade, a manipulação pelos norte-americanos alcança agora rotação máxima.

O lançamento da campanha norte-americana para eleger o ex-Ministro de Relações Exteriores, Abdullah Abdullah, em grande estilo, em entrevista super propagandeada com Christiane Amanpour da CNN, fala por si.

Abdullah Abdullah, candidato preferido dos EUA e da imprensa-empresa ocidental
Os “marketeiros” norte-americanos estão tentando implantar a ideia de que Abdullah teria “grande vantagem” eleitoral. Claro que ele agrada à imprensa-empresa: é íntimo dos think-tanks norte-americanos e tem pensamento pró-EUA. Do ponto de vista dos EUA, é certo que Abdullah apoiará empenhadamente o Acordo de Segurança Bilateral EUA-Afeganistão.

Mas há vários obstáculos na estrada dessa marcha vitoriosa “marketada”: Abdullah não é pashtun e é totalmente inaceitável pelos Talibã; ao mesmo tempo, seus laços com elementos da linha dura indiana são vistos com desconfiança no Paquistão. No Afeganistão, não só há polarização étnica, mas também tensões regionais que se superpõem; tudo isso torna extremamente difícil, para Abdullah, inventar algum tipo de identidade pan-afegã. A recente tentativa abortada para assassinar Ismail Khan, carismático líder do oeste do Afeganistão, e, pouco depois, o assassinato de dois cabos eleitorais de Abdullah em Herat são sinal visível de que há tensões entre os tadjiques. E o campo “Panjshiri”, ao qual Abdullah pertence, também está hoje dividido em várias facções.

Ismail Khan
Como se não bastasse, Abdullah nada ganha com partilhar a visceral antipatia que os EUA demonstram contra Karzai; tendo de concorrer contra a formidável coalizão que Karzai arregimentou em torno de si ao longo do tempo, a disputa nos próximos dias tende a ficar mais difícil. Por isso, precisamente, é indispensável que Washington interfira, para reduzir “o tamanho” eleitoral de Karzai.

Washington vai fazer de tudo para pulverizar a coalizão de Karzai. A campanha já começou: Karzai teria sido diabólico na negociação com a NA. Os detratores citam como prova, que o Secretário da Defesa, Robert Gates, em suas memórias, conta que, numa conversa com ele, Karzai fez um estranho comentário, culpando as forças anti-Talibã no Afeganistão, como co-responsáveis pela violência perpetrada no país. A campanha visa a criar discórdia dentro da coalizão de Karzai (que inclui algumas poderosas personalidades que participam da NA).

Enquanto essa controvérsia ainda ferve, Karzai também sofreu outro golpe assestado por Washington, de outro ângulo – também dessa vez, para minar os contatos crescentes com os Talibã.

Ora, já se sabe, como uma espécie de segredo que todos conhecem, que Karzai muito trabalhou nos últimos anos para manter aberta uma linha de comunicação com os Talibã, apesar de não haver quaisquer conversações formais de paz. A política de Karzai, de reconciliação com os Talibã, não obteve nenhum sucesso espetacular, mas, na avaliação de Karzai, se os Talibã não forem de algum modo integrados ou acomodados por alguma espécie de acordo, o país não alcançará a paz, e a matança e a destruição avassaladoras não terão fim.

Enquanto os norte-americanos tentavam apresentar Karzai como personalidade autoritária, obcecadamente oposto à assinatura do Tratado de Segurança Bilateral, o presidente afegão cuidava de seu próprio mapa alternativo do caminho para o Afeganistão pós-2014. Por esse mapa do caminho, é importante que o país livre-se da ocupação norte-americana e que todo o cálculo político seja exclusivamente intra-afegão, sem o envolvimento do Tio Sam.

Guerreiros Talibã
Karzai planeja conseguir engajamento construtivo com os Talibã mediante os métodos tradicionais afegãos de construção de consensos, o que pode eventualmente levar ao retorno dos Talibã como participantes da vida nacional. Na verdade, não há qualquer garantia de que possa ser bem-sucedido, por causa da intransigência dos Talibã; mas essa política de Karzai é a única tentativa que se tem à vista, uma vez que não há conversações de paz – apesar de, afinal de contas, a própria CIA também estar mantendo contatos clandestinos com os Talibã.

Não surpreende, portanto, que esteja em curso uma guerra declarada entre Karzai e os norte-americanos. O xis da questão é que, por mais que fale e fale a favor de um processo de paz “liderado por afegãos” e “controlado por afegãos” e tal e tal, Washington não cogita de afrouxar o duro controle que mantém sobre a política afegã. A excessiva interferência de Washington assegura que nenhum acordo intra-afegão, em nenhum caso, jamais interessará aos objetivos estratégicos regionais dos EUA. Por isso, a inteligência dos EUA não tira, nem os olhos, nem as garras de águia cravadas para impedir quaisquer negociações entre Karzai e os Talibã.

É onde as eleições de abril no Afeganistão convertem-se em ponto focal de todas as atenções norte-americanas. O governo Obama concluiu que, apesar de todas as ameaças, chantagens, ataques e”‘guerra psicológica” – Karzai absolutamente não cederá e não assinará o Acordo de Segurança Bilateral; assim sendo, as eleições de abril no Afeganistão ganharam extraordinária importância nas futuras estratégias regionais dos EUA. De fato, qualquer tipo de entendimento nebuloso ou tácito, que seja, que Karzai consiga com os Talibã terá profundo impacto nas eleições de abril.

Assim sendo, o New York Times já entrou em ação... Na 5ª-feira (6/2/2014), o jornal publicou matéria em tom sensacionalista, baseada só em briefings de funcionários dos EUA, em que põe os contatos secretos entre Karzai e os Talibã na pauta do dia. Segundo a peça da 5ª-feira (6/2/2014), representantes do governo afegão e dos Talibã encontraram-se recentemente em Dubai.

Ora! Os EUA deveriam estar satisfeitíssimos por Karzai estar trabalhando para reconciliar os Talibã. Mas não. O governo Obama parece ofendidíssimo. E já começou a minar toda a estrada pela qual Karzai caminha na direção, precisamente, do tal processo de paz “liderado por afegãos” e “controlado por afegãos” e tal e tal, de que os EUA tanto falam!

Hamid Karzai tenta fazer a paz com os Talibã... Mas os EUA abominam!
A matéria do New York Times nada traz de conteúdo novo. Os contatos entre Karzai e os Talibã são notícia velha, e até os assessores de Karzai já falaram sobre eles. O único objetivo de a coisa voltar ao noticiário é reforçar a impressão de que Karzai é “falso”, “dissimulado”. E o servicinho parece ter sido bem-sucedido, dado que inúmeras agências de notícias em todo o mundo já “confirmaram” a “notícia”.

Por outro lado, um Karzai demonizado como homem de duas caras também semeia dúvidas sobre as reais fidelidades dele, entre os parceiros de Karzai na Aliança do Norte. Washington também consegue efetivamente torpedear quaisquer nascentes contatos intra-afegãos, porque cria embaraços para os Talibã – cuja posição pública é de que não negociarão diretamente com Karzai antes das eleições de abril.

A verdade é que Washington, hoje, não quer saber de nenhum tipo de conversações de paz “lideradas por afegãos” nem “controladas por afegãos”; conversas de paz, só se forem feitas sob comando dos EUA.

Mais importante: os EUA não querem saber de nenhuma conversa séria com os Talibã, antes de Karzai já ter sido substituído por alguém que assine o tal Tratado de Segurança Bilateral EUA-Afeganistão, porque só essa assinatura formalizará o estabelecimento de bases militares EUA-OTAN no Afeganistão…




[*] MK Bhadrakumar foi diplomata de carreira do Serviço Exterior da Índia. Prestou serviços na União Soviética, Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão e Turquia. É especialista em questões do Irã, Afeganistão e Paquistão e escreve sobre temas de energia e segurança para várias publicações, dentre as quais: Strategic Culture, The Hindu,Asia Times Online e Indian Punchline. É o filho mais velho de MK Kumaran (1915–1994), famoso escritor, jornalista, tradutor e militante de Kerala.


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