14/2/2014, [*] Jean-Luc Mélenchon, Blog de J-L Mélenchon
Excerto traduzido pelo
pessoal da Vila Vudu
François Hollande e Barack Obama, (Simpatia é quase amor) |
François
Hollande é atlanticista de longa data. Sua visita aos EUA é, para ele, uma
apoteose pessoal. No plano político, é o diploma de bom comportamento, entregue
a ele pelo Império. Acompanhado de um bônus por bons e leais serviços prestados
ao Partido Democrata dos EUA. Mãos nas mãos, olhos nos olhos, com Obama,
Hollande entregou-se também a cenas apaixonadas com os patrões franceses e
norte-americanos, reis da evasão fiscal, exportadores de empregos e
sanguessugas dos cortes de impostos. Tudo isso deixou consternados os franceses
pobres que o viram pela televisão.
Mas o mais
desprezível desses dias sem glória continuará a ser o alinhamento incondicional
de Hollande ao projeto do Grande Mercado Transatlântico. Vídeo a seguir (em
francês):
É normal
que uma questão tão importante, jamais referida pelo presidente na França ou
frente aos franceses, seja abordada do modo como Hollande a abordou? (...)
A resposta, acabamos de dar a ele, no Conselho
Regional da Île-de-France.
Por
iniciativa do nosso Partido da Esquerda (Parti de Gauche), a assembleia aprovou
moção que declara a região Île-de-France “Zona não incluída no Grande
Mercado Transatlântico”. E a assembleia autorizou Jean-Paul Huchon, de volta da
viagem oficial, a exigir que parem todas as negociações. O Partido Socialista,
incapaz de chegar a qualquer acordo, graças à resistência da esquerda,
fracassou ante a coalizão que formamos com os Verdes e com o grupo do Partido
Comunista Francês (PCF).
De fato,
dessa vez o PCF da Île-de-France resistiu à insistência do Partido Socialista.
Um pequeno sinal de encorajamento, numa semana tão lastimavelmente cheia de
manifestações da mais servil subordinação. (...)
Nossos
eleitores perguntam-se, com muita razão, que molho acompanhará as eleições
europeias, se tivermos de novamente apoiar arranjos com os socialistas e a
Europa deles. O que diremos a eles, se tivermos de nos apresentar ao lado de
gente como Jean-Marc Ayrault, Anne Hidalgo e tantos ministros e deputados
socialistas que apoiam a política de direita do governo na França e na Europa?
Faço aqui
um resumo detalhado da cena de humilhação com que nos presenteou o presidente
da França e do que ela anuncia para o país. (...)
O novo
Democrata
François
Hollande é o primeiro presidente da França que traduz para o francês a doutrina
do “novo Partido Democrata” de Bill Clinton dos anos 1980s. É quem, doravante,
a implantará na França, anos depois de aquela doutrina ter sido mascarada na
Europa pelo social-liberalismo o mais descarado e o mais direitista.
François Hollande chega para a visita oficial aos EUA |
A visita de
Hollande a Obama foi, pois, uma orgia de atlanticismo, enfiada goela abaixo dos
franceses. Diante do poder dos EUA, François Hollande mostrou-se absolutamente
rendido.
Claro que
ninguém esperava que Hollande fosse perturbar Obama com questões de direitos
humanos em Guantánamo ou nos “buracos negros”. Nem que protestasse contra a
caçada a Assange ou Snowden. Já se sabe que “direitos humanos” só é problema
grave na China, em Cuba e por aí vai.
Tampouco eu
esperava que tivesse coragem para abordar com seu amiguinho o problema criado
por os EUA terem-se recusado a assinar os acordos sobre armas bacteriológicas
ou os atrasos na destruição das armas químicas. Ou que os EUA não tenham
assinado – como também não assinaram os acordos sobre liberdades sindicais – os
acordos sobre direitos das crianças ou sobre minas. Esqueçamos o tempo quando a
França respeitava os próprios compromissos, a ponto de trabalhar para fazê-los
valer. Por que Hollande seria menos infiel a esses compromissos, do que é
infiel a qualquer outro?
Mas mesmo assim!
Tanto haveria a dizer sobre os interesses fundamentais da França em sua relação
com os EUA! A imprensa-empresa de louva-Hollande, é claro, nada lhe cobrou, nem
pediu notícias do que se disse sobre a espionagem, pela Agência de Segurança
Nacional dos EUA, contra franceses. Também a insuportável espionagem contra os
cidadãos, pelos governos, é tema reservado à China e a Cuba.
Hollande,
assim, se livrou rapidamente dessa questão, com uma frase sem sentido. Uma “tirada”
rapidamente esquecida, mal traduzida do inglês, escolhida do catálogo de
respostas prontas fornecido pelos embaixadores dos EUA na Europa. Sem surpresa:
é o que dizem, praticamente com as mesmas palavras, todos os papagaios
europeus, exceto madame Merkel, que prefere dar-se ao respeito.
Hollande alegre e passivamente aceitou a espionagem dos EUA/NSA na França |
Quanto ao
significado-zero, avaliem vocês mesmos: “Há uma confiança mútua que foi
restaurada (e) que se deve basear ao mesmo tempo no respeito de cada um de
nossos países e também na proteção da vida privada (...) Depois das revelações
de Snowden, estabelecemos uma clarificação entre o presidente Obama e eu, sobre
o passado”. Os falantes de francês farejam aí a tradução mal feita do inglês ao
francês. O resultado é simples: os EUA não pediram qualquer tipo de desculpas
por terem espionado
a França, os embaixadores franceses e milhões de cidadãos franceses. E
nada se comprometeram a fazer nem a não fazer, para o futuro, quanto a isso.
Hollande
tampouco pediu explicações sobre por que foi empurrado pela CIA ao papel
ridículo de interceptar
o avião de Evo Morales, à caça de um Snowden que não estava lá. E
Hollande tampouco jamais manifestou qualquer arrependimento ou qualquer
vergonha por ter feito o que fez.
Seja como
for, lá estava Hollande, sentado à mesma mesa, ao lado do chefe dos espiões
norte-americanos: o general Keith Alexander também estava presente àquele
jantar de Estado. Comeu muito bem. Tranquilo. Nada de arrependimentos ou
desculpas.
Mas o
comportamento do presidente quanto aos nossos compatriotas que vivem lá também
é problemático. Hollande comportou-se como se os franceses comuns expatriados
não existissem. Só teve olhos e ouvidos para o “mundo dos negócios”. Até a
frase ridícula de madame Fleur Pèlerin [Ministra Especial da Economia
Digital], segundo a qual Hollande teria ido aos EUA “para dar provas de amor a
todos os empresários”! Verdade é que as provas máximas ficaram reservadas a
elementos de reputação muito duvidosa. Em San Francisco, Hollande festejou
Carlos Diaz, um dos cabeças do movimentos
dos “Pigeons” de novembro de 2012. O golpe organizado por
Diaz, de evadidos fiscais, custou milhões de francos ao orçamento do estado e
aos contribuintes. Elogiável! (...) Pierre Gattaz [presidente do Mouvement
des entreprises de France (MEDEF), principal sindicato patronal da
França] foi também convidado para o jantar de Estado. Incrível! Por que não levaram
também Thierry Lepaon [Secretário-Geral da CGT], para Washington, para jantar?
Ou Berger [Secretário-Geral da Confédération Française Démocratique du
Travail, CFDT) ou Mailly [Secretário-Geral da Force
Ouvrière]? O presidente “social-democrata” entende que os sindicalistas dos
dois lados do Atlântico não mereçam homenagem? Que se reunir com eles é menos
importante que se reunir com os patrões?! Só convida empresários? Só patrões?
E Hollande
precisava exibir escandalosamente essa sua preferência, ante toda a comunidade
francesa em San Francisco? Para quê falar da “vantagem de ter aqui, comigo, o
presidente do MEDEF, durante toda minha viagem”? “Agora, podem
aplaudir”, disse esse exibidor de ursos de feira. “Vão dizer agora que puxei os
aplausos para o presidente do MEDEF”, congratula-se
o jovial piadista. “Não tenho dúvidas de que, chegada a hora, também
receberei aplausos deles. Faz parte do pacto de responsabilidade, eu suponho”.
Como é
possível?! Quando, algum dia, ouviram-se frases mais inadmissíveis, ditas como
piadinha de salão?! A televisão distribuiu imagens ainda mais chocantes. À
esquerda, mas também à direita, muita gente sentiu que, agora, sim, foi demais.
Gattaz não
erra ao dizer que Hollande fez uma confissão de fraqueza. Permitiu-se fazer o
que ninguém jamais fez: abrir uma polêmica de política interior, quando estava
em viagem ao exterior e, como se não bastasse, também dentro da própria
comitiva que o acompanhava. E o fez de modo particularmente danoso para a
França. Porque se lamentar sobre o próprio governo, pela “dureza” da oposição
que sofre, ridiculariza e enfraquece ainda mais os franceses, já discriminados
comumente nos EUA e nos veículos da imprensa-empresa anglo-saxônica.
E sobre o
Grande Mercado Transatlântico? Para mim, foi o máximo! O principal anúncio
feito por François Hollande! Só que jamais antes falara sobre tal coisa, aos
franceses! E então, de repente, de uma tacada, pouco antes de embarcar para os
EUA, lá aparece Hollande em cena, espetacular, a discorrer sobre o tema.
Assume, com Barack Obama, um
palanque “midiático”, do qual anuncia seu alinhamento ao projeto do Grande
Mercado Transatlântico.
Procure
quem quiser, o mais que queira, e ninguém jamais encontrará sequer uma mínima
alusão, pequena e lateral que seja, em nome, que fosse, da afamada “exceção
cultural”. Pois a tal cena foi divulgada antes até da visita do presidente
francês aos EUA. Foi como o “visto” político que autorizou Hollande a pisar em
território dos EUA.
Na
2ª-feira, 10/2/1014, simultaneamente no Le
Monde e no Washington
Post, o manda-chuva e o seu serviçal
francês escreveram que “a parceria para o comércio e o investimento que
buscamos criar entre a União Europeia e os EUA é verdadeira oportunidade para
tirar partido dos milhões de empregos que já estão sendo criados, de um lado e
de outro do Atlântico, nas trocas entre a União Europeia e os EUA”.
A pergunta
é óbvia: se as trocas “já representam” milhões de empregos... para que servirá
o acordo? Como o tal acordo poderia “tirar partido” de uma situação que já
existiria? Mas, se se insiste, vale dizer, se se pensa com clareza, pode-se
dizer que, precisamente, aí não fazem promessa alguma: o que fazem aí é
uma confissão.
Hollande cumprimenta efusivamente Carlos Diaz dos "Pigeons" |
Trata-se,
mesmo, de tirar partido dos empregos já existentes, impondo-lhes nível mais “eficaz”
de exploração capitalista.
E, seja o
que for, o mais importante é que François Hollande apresenta o tal acordo como
“verdadeira oportunidade”. O que se tem aí, exposta, aparente, é toda uma visão
de mundo.
Sobre esse
tema, Hollande acrescenta ainda a sua própria orientação liberal. Dia seguinte,
dia 11/2/2014, na conferência de imprensa ao lado de Barack Obama em
Washington, ele, então, convocou todos a “andar depressa” nas negociações entre
a União Europeia e os EUA: “Todos temos muito a ganhar com andar depressa. Se
não, sabemos bem, haverá uma acumulação de medos, de ameaças, de crispações”.
Todos leram
bem. Isso, precisamente foi o que disse François Hollande: ele quer pressa,
para evitar qualquer oposição a esse Grande Mercado Transatlântico. Isso,
porque Hollande sabe, como nós sabemos, que o acordo não estará concluído antes
das eleições europeias de 25 de maio de 2014. E o próximo Parlamento Europeu
que será eleito então terá poder para rejeitar qualquer acordo.
As eleições
europeias são, portanto, um referendo a favor ou contra o tal grande mercado
transatlântico. Com François Hollande, o Partido Socialista escolheu o “sim”,
aliado à direita e ao patronato do MEDEF. A esperança de Hollande é que
ninguém perceba.
Pode-se
esperar portanto que ele e o coro da imprensa-empresa europeísta (um pleonasmo)
obrem para confundir o mais possível todas as discussões.
Para nós, é
uma oportunidade. A volta da igrejinha do “sim-sim à Europa que nos protege” já
mostrou sua principal utilidade: nos ajuda a acumular energia para o “não” – e
a rejeitar, num mesmo voto, o sistema político e sua segunda pele “midiática”.
O resultado já veio e todos viram.
Libération pôs-se a
ofender a esquerda do “não” logo na manhã seguinte do resultado. E nunca parou
de nos ofender, do alto daquele autoritarismo dogmático, daquela capacidade
para manipular, dentre outras. Os números de venda do jornal desabaram. E nós
tivemos 4 milhões de votos no primeiro turno de uma eleição presidencial. Quem
levou a melhor? E, agora, quem falará mais alto?
Em
Washington, François Hollande foi, completamente, serviçal empenhado do MEDEF.
Afinal, o Grande Mercado Transatlântico é velha reivindicação do patronato europeu.
Aparece lá, no centro da longa “declaração conjunta” que redigiram juntos, dia
5/2/2014, o MEDEF e seu homólogo alemão o Bundesverband der Deutschen
Industrie, BDI. Essa declaração conjunta, pode-se dizer, é um
manifesto!
Começa por
clamar por mais “austeridade” e “competitividade” na Europa. O clamor a favor
da formação de um Grande Mercado com os EUA aparece incrustado numa ode ao livre
comércio. A “recomendação nº 8”
(grande novidade...) recomenda “avançar na direção de cada vez maior abertura
dos mercados mundiais para o comércio e para o investimento” e “combater o
protecionismo comercial”.
Na
sequência, o grande patronato francês e alemão recomenda “concluir as
negociações para um acordo comercial e de investimento transatlântico (TTIP),
numa perspectiva de crescimento e de criação de empregos; um TTIP bem-sucedido
deve garantir abertura completa e recíproca dos mercados”. Completa e
recíproca! Nada mais, nada menos! E isso é só o começo.
Grande Mercado Transatlântico |
Quanto aos
detalhes, é assustador! Ei-los: “além da eliminação das barreiras
alfandegárias, o acordo deve permitir desmantelar as barreiras comerciais
existentes por efeito de normas e regras diferentes”. Desmantelar as leis e as
normas votadas e aprovadas nos Parlamentos nacionais e abrir o caminho para
todos os tipos de contenciosos que as empresas poderão criar contra as
políticas de estado – eis o projeto. E mais: “Os mercados públicos devem ser
abertos em todos os níveis, o que significa, por exemplo, que não se aplicam às
empresas europeias quaisquer cláusulas de preferência nacional. Os serviços
financeiros devem ser incluídos na negociação. A negociação deve levar a uma
melhor harmonização das regulamentações múltiplas. E o acordo deve igualmente
levar a harmonizarem-se os procedimentos desimpedimento aduaneiro”.
O MEDEF
francês e o BDI alemão, duas das mais poderosas associações patronais da
Europa, não se cansam de repetir que “esse acordo será progresso significativo
para o desenvolvimento de regras mundiais”.
De fato,
trata-se de fazer o que a Organização Mundial de Comércio (OMC) empenha-se em
fazer, a favor da desregulação mundial a favor da dominação total pelas normas
anglo-saxônicas. Foi exatamente o que disse Barack Obama, quando lembrou que
essa “parceria transatlântica de comércio e de investimentos será o mais
importante acordo de livre-comércio jamais firmado, pois cobrirá cerca de 50%
da produção econômica mundial, 30% do comércio internacional e 20% do
investimento estrangeiro direto”. Eis aí o projeto no qual François Hollande
está engajando a França. Viajou até lá, para fazer isso.
Esse é o
núcleo contra o qual combateremos, pelas urnas, nas eleições europeias.
___________________
[*] Jean-Luc Mélenchon (Tânger-Marrocos, 19 de agosto de 1951) é um político
francês, atual líder da Frente de Esquerda da França (Front de Gauche). Foi educado no Lycée
Pierre-Corneille em Rouen
(Normandia). Seu pai trabalhava nos serviços postais, e sua mãe, de origem
espanhola, era professora de escola primária. Cresceu no Marrocos, até que sua
família se mudou para a França em 1962. Obteve licenciatura em Filosofia pela
Universidade de Franche-Comté,
e tendo ganho as CAPES (qualificação de ensino profissional), tornou-professor
antes de entrar para a política. Foi senador da França em 2 períodos (2004–2010) e (1986–1995) pelo
Partido Socialista Francês e candidato pela Frente de Esquerda, derrotado nas
eleições presidenciais de 2012.
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