Publicado
em 24/05/2012 por Urariano Motta *
Recife
(PE)
- A Comissão de Anistia teve esta semana uma sessão histórica, daquelas que
fazem a gente dizer “um anúncio distante de justiça se faz na terra”. Na
terça-feira, quando se negou qualquer reparação para o cabo Anselmo, os crimes
do agente infiltrado voltaram à tona e, com eles também voltou o nosso livro
“Soledad no Recife”, publicado pela Boitempo.
Divulgo
aqui uma página do livro, escrito sob uma pesquisa histórica, documental, de tal
modo que difícil nele é separar o factual da imaginação literária. A página a
seguir fala do horror e da surpresa de Soledad, ao descobrir entre os policiais
a cara do marido, o agente duplo a quem amava:
A
cara de Anselmo, no conjunto dos sinais, Soledad não via. Não tanto porque a
desconfiança nunca lhe houvesse batido à percepção. Mas porque isso era tão
horrível, que o seu senso estético repugnava. Uma coisa que o seu peito de
justiça não queria nem podia aceitar. E recuava, no mesmo passo em que os
indícios cresciam. Mas o Cartório de Registro dos Sonhos existe, ainda que fora
do domínio civil de uma cidade. Ele existe ao lado dos lugares onde se bebe,
come-se e se morre. Os seus documentos, se não têm efeitos legais, recuperam no
real os direitos. Os sonhos, quando muito fortes, os pesadelos, quando
inescapáveis, tornam-se tangíveis. Houve então um momento em Soledad, houve um
espaço e lugar nas suas antevisões, em que se passou do antes para o agora, sem
mediação para o horror que jamais havia se apresentado com a sua cara. Nas
representações anteriores, nos indícios, não se mostrava assim tão
claro.
-
Por quê? Por quê?!
A
pergunta que Soledad não se fizera diante das imagens que a perseguiam nos
últimos meses, por quê?, qual a razão delas, agora à luz do dia em Boa Viagem,
em uma butique da ensolarada praia de Boa Viagem, aonde ela foi para vender
roupas, onde ela está com Pauline, ali, sob a prazenteira luz física do Brasil,
a pergunta pelas razões dos sonhos e pesadelos que ela não se fizera, agora vêm
com um susto, um terror, diante do real bruto. José Anselmo dos Santos se
encontra entre os homens que lhe batem na cabeça com armas e
punhos.
-
Por quê? Por quê?
Pauline
está muda e petrificada, incapaz de correr e falar. Soledad olha para os olhos
do homem que pensara ser o seu companheiro, e isso, essa realidade, o pesadelo
por guardar uma altura ética jamais mostrou. O pesadelo fora incapaz de exibir
toda a crueza. Anselmo não sorri agora, sorrirá depois, quando lhe
perguntarem
-
Você dorme bem?
-
Putz, tranquilamente.
Ou
mais textualmente:
-
Você dorme tranquilo? Nunca sentiu pesadelo durante a noite? Não tem remorso
pelo que fez?
-
Absolutamente (risos)....
Por
enquanto, não, agora na butique em Boa Viagem ele não ri, embora a cena lhe
pareça um tanto cômica.
-
Por quê? Por quê?
Ele
apenas assiste ao espancamento e suplício. Como uma prova de que é contra esses
terroristas.
“Eu
tomei conhecimento de que seis corpos se encontravam no necrotério.... em um
barril estava Soledad Barret Viedma. Ela estava despida, tinha muito sangue nas
coxas, nas pernas. No fundo do barril se encontrava também um
feto”.
Quando
Mércia Albuquerque declarou essas palavras, não era mais advogada de presos e
perseguidos políticos. Estava em 1996, 23 anos depois do inferno. Mércia estava
acostumada ao feio e ao terror, ela conhecia há muito a crueldade, porque havia
sido defensora de torturados no Recife. Ainda assim, ela, que tanto vira e
testemunhara, durante o depoimento na Secretaria de Justiça de Pernambuco falou
entre lágrimas, com a pressão sanguínea alterada em suas artérias. Dura e
endurecida pela visão de pessoas e corpos desfigurados, o pesadelo de 1973 ainda
a perseguia: “Soledad estava com os olhos muito abertos, com uma expressão muito
grande de terror”.
No
depoimento da advogada não há uma descrição técnica dos corpos destruídos,
derramados no necrotério. Mércia Albuquerque é uma pessoa se fraterniza e
confraterniza com pessoas. “Eu fiquei horrorizada. Como Soledad estava em pé,
com os braços ao lado do corpo, eu tirei a minha anágua e coloquei no pescoço
dela”. Distante dos manuais exatos da Medicina Legal, a advogada Mércia não se
refere a cadáveres, mas a gente. Chama-a pelos nomes, Pauline, Jarbas, Eudaldo,
Evaldo, Manuel, Soledad. Recorda a situação vexatória em que estavam – porque
eram homens e mulheres – despidos. O seu relato é como um flagrante desmontável,
da morte para a vida. É como o instante de um filme, a que pudéssemos retroceder
imagem por imagem, e com o retorno de cadáveres a pessoas, retornássemos à
câmara de sofrimento. “A boca de Soledad estava entreaberta”.
Enviado
por Direto
da Redação
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