28/5/2012, Slavoj Žižek,
London Review of Books
(online)
Traduzido pelo
pessoal da Vila
Vudu
“O sujeito que odeia
os progressistas em Londres,
apresenta-se como
progressista na África”
Chesterton,
1808,
loc.
cit.
[1]
Slavoj Žižek |
Imagine uma cena de
um filme distópico que mostre nossa sociedade num futuro próximo. Guardas
uniformizados patrulham ruas semivazias dos centros das cidades, à caça de
imigrados, criminosos e desocupados. Os que encontram, os guardas espancam. O
que parece fantasia de Hollywood já é realidade hoje, na Grécia.
Durante a noite,
vigilantes uniformizados com as camisas negras do partido neofascista Golden Dawn [Aurora Dourada], de
negadores do Holocausto –, que receberam 7% dos votos no segundo turno das
eleições gregas e que contam com o apoio, como ouve-se pela cidade, de 50% da
Polícia de Atenas – patrulham as ruas, espancando todos os imigrados que cruzem
seu caminho: afegãos, paquistaneses, argelinos. É como a Europa defende-se hoje,
na primavera de 2012.
O problema de
defender a civilização europeia contra a ameaça dos imigrantes é que a
ferocidade com que os defensores europeus defendem-se é ameaça muito maior a
qualquer ‘civilização’, que qualquer tipo de invasão de muçulmanos, e ainda que
todos os muçulmanos decidissem mudar-se para a Europa. Com defensores como
esses, a Europa não precisa de inimigos.
Há cem anos, G.K.
Chesterton deu forma articulada ao impasse em que se metem todos os que criticam
a religião:
“Homens que se ponham a combater
igrejas em nome da liberdade e da humanidade espantam de si mesmos a liberdade e
a humanidade, no momento em que atacam a primeira igreja (...). Os secularistas
não provocaram o naufrágio das coisas divinas; só fizeram naufragar coisas
seculares... se isso lhes serve de consolo”. [1]
Gilbert K. Charleston |
Tantos guerreiros
liberais andam tão furiosamente decididos a combater o fundamentalismo não
democrático, que acabam esquecendo qualquer liberdade e qualquer democracia,
tudo em nome de combater o terror. Se os “terroristas” só pensam e fazer
naufragar esse nosso mundo por amor pelo outro mundo, os nossos guerreiros
antiterror só pensam em por a pique qualquer democracia, por ódio ao próximo
muçulmano. Alguns deles são tão perdidamente apaixonados, fanatizados pela
dignidade humana [e, no Brasil, pela chamada “ética”], que chegam a legalizar a
tortura... para defender a dignidade humana. É a inversão do processo pelo qual
os fanáticos defensores da religião começaram por atacar a cultura secular
contemporânea e acabaram por sacrificar até as próprias credenciais religiosas,
na ânsia de erradicar todos os aspectos que odeiam no secularismo.
Mas os defensores
que insistem em defender a Grécia contra
imigrantes não são o principal perigo: não passam de subproduto do perigo muito
maior, da ameaça mãe de todas as ameaças: a política de “austeridade” que causou
a desgraça da Grécia. As próximas eleições na Grécia estão marcadas para dia 17
de junho.
O establishment europeu alerta que são
eleições cruciais: não estaria em jogo só o destino da Grécia, mas o destino de
toda a Europa. Um resultado – o correto, segundo eles – levará ao processo
doloroso,. mas necessário de recuperação, pela austeridade, para continuar. A
alternativa – no caso de vitória do Partido Syriza, de “extrema esquerda” –
seria votar pelo caos, pelo fim do mundo (europeu) como o conhecemos.
Syriza |
Os profetas do
apocalipse estão corretos, mas não como supõem ou pretendem. Críticos dos
arranjos democráticos hoje vigentes reclamam que as eleições não oferecem opção
real: votamos para escolher apenas entre uma centro-direita e uma
centro-esquerda cujos programas são quase absolutamente idênticos. Mas dia 17 de
junho, afinal, haverá escolha significativa: de um lado o establishment (Nova Democracia e Pasok);
do outro lado, a Coalizão Syriza. E, como acontece quase sempre em que haja
escolhas reais no mercado eleitoral, o establishment está em pânico: caos,
pobreza e violência eclodirão imediatamente, dizem, se os eleitores escolherem
“errado”. A mera possibilidade de vitória da Coalizão Syriza, como se ouve, já
dispara convulsões de medo nos mercados. A prosopopéia ideológica é rampante: os
mercados falam como se fossem gente, manifestam “preocupação” pelo que
acontecerá se as eleições não produzirem governo com mandato para manter o
programa de austeridade e reformas estruturais de UE-FMI. Os cidadãos gregos não
têm tempo para pensar nas preocupações “dos mercados”: mal conseguem ter tempo
para preocupar-se com a sobrevivência diária, numa vida que já alcança graus de
miséria que não se viam na Europa há décadas.
Todas essas são
previsões enunciadas para se autocumprirem, causar mais pânico e, assim, forçar
as coisas a andarem na direção “prevista”. Se a Coalizão Syriza vencer, o establishment europeu ficará à espera de
que nós aprendamos com nossos erros o que acontece quando alguém tenta
interromper, por via democrática, o ciclo vicioso de cumplicidade bandida, entre
os tecnocratas de Bruxelas e a demagogia suicida do populismo anti-imigrantes.
Alexis Tsipras |
Foi exatamente o que
disse Alexis Tsipras, candidato da Coalizão Syriza, em entrevista recente: que
sua prioridade absoluta, no caso de sua coalizão vencer as eleições, será conter
o pânico: “Os gregos derrotarão o medo. Não sucumbirão. Não se deixarão
chantagear.”
A tarefa da Coalizão
Syriza é quase impossível. A coalizão não traz a voz da “loucura” da extrema
esquerda, mas a voz do falar racional contra a loucura da ideologia dos
mercados. No movimento de prontidão para assumir o governo da Grécia, já
derrotaram o medo de governar, tão característico do “esquerdismo”; já mostraram
que não temem fazer a faxina do quadro confuso que herdarão. Terão de mostrar-se
capazes de montar e cumprir uma formidável combinação de princípios e
pragmatismo; de compromisso democrático e presteza para intervir com firmeza
onde seja preciso. Para que tenham uma mínima chance de sucesso, precisarão de
toda a solidariedade dos povos europeus; não só de respeito e tratamento decente
pelos demais países europeus, mas, também, de ideias mais criativas – como a de
um “turismo solidário” nesse verão, que já propuseram.
T. S. Eliot |
Em suas Notes towards the Definition of Culture,
T.S. Eliot [2] observou que há momentos em que a única
escolha é entre a heresia e o não crer – i.é, quando o único meio para manter
viva uma religião é promover uma divisão de seitas. Essa é, hoje, a posição em
que está a Europa. Só uma nova “heresia” – representada hoje pela Coalizão
Syriza – pode salvar o que valha a pena salvar do legado europeu: a democracia,
a confiança no voto do povo, a solidariedade igualitária etc.. A Europa que
haverá para nós, se a Coalizão Syriza for descartada, é uma “Europa com valores
asiáticos” – os quais, é claro, nada têm a ver com a Ásia, e tem tudo a ver com
a tendência do capitalismo contemporâneo, para suspender a democracia.
Eis o paradoxo que
mantém o “voto livre” nas sociedades democráticas: cada um é livre para
escolher, desde que faça a escolha certa. Por isso, quando se faz a escolha
errada (como quando a Irlanda rejeitou a Constituição da União Europeia), a
escolha é tratada como erro; e o establishment imediatamente exige que se
repita o processo “democrático”, para que o erro seja reparado.
Quando George
Papandreou, então primeiro-ministro grego, propôs um referendum sobre a proposta de resgate
que a Eurozona apresentara no final do ano passado, até o referendum foi descartado como falsa
escolha.
Há duas principais
narrativas na mídia, sobre a crise grega: a narrativa alemã-europeia (os gregos
são irresponsáveis, preguiçosos, gastadores, não pagam impostos, etc.; e têm de
ser postos sob controle, com aulas de disciplina financeira); e a narrativa
grega (nossa soberania nacional está ameaçada pelo tecnologia neoliberal imposta
por Bruxelas).
Quando se tornou
impossível ignorar o suplício do povo grego, emergiu uma terceira narrativa: os
gregos estão sendo apresentados hoje como vítimas de desastre humanitário,
carentes de ajuda, como se alguma guerra ou catástrofe natural tivesse atingido
o país.
As três são falsas
narrativas, mas a terceira parece ser a mais repugnante. Os gregos não são
vítimas passivas. Os gregos estão em guerra contra o establishment econômico europeu.
Precisam de solidariedade nessa luta, porque a luta dos gregos é a luta de todos
nós.
A Grécia não é
exceção. É mais uma, dentre várias pistas de testes de um novo modelo
socioeconômico de aplicação quase ilimitada: uma tecnocracia despolitizada, na
qual banqueiros e outros especialistas ganham carta branca para demolir a
democracia.
Ao salvar a Grécia
de seus ditos “salvadores”, salvaremos também a Europa.
Notas dos tradutores
[1] CHESTERTON, Gilbert
K., Orthodoxy [1908], “VIII: The
Romance of Orthodoxy”, em inglês.
[2] ELIOT, T. S. - Notas para uma
definição de cultura. Lisboa: Século XXI, 1996.
Imagens colhidas na internet pela redecastorphoto
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