24/5/2012, Ahmed Daak e
Harry Verhoeven, Al-Jazeera, Qatar
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
A comunidade internacional terá que aprender a conviver com o mundo vibrante da religião islâmica, dizem os autores (Foto: Al Jazeera) |
Cartum,
Sudão e Oxford, UK – Das
eleições no Egito pós-Mubarak [1]
aos debates na Tunísia sobre liberdade de imprensa [2]: está em curso uma batalha pela
alma política do mundo islâmico. Mas, diferente do que se previa nos dias da
Guerra Global ao Terror [Global War on Terror (GWOT)], as visões em
confronto não são o terrorismo jihadi e o secularismo à moda ocidental.
Ahmed Daak |
As
novas realidades que emergem da Primavera Árabe mostram que o Islã ocupará
posição chave no debate político, do Marrocos à Indonésia. Mas ainda não se vê
com clareza se isso levará a maior coesão das sociedades ou aumentará as tensões
no mundo islâmico e entre ele e atores externos. Para entender que feições terá
o futuro, temos de analisar a luta que se trava no campo dos que creem:
reformistas islamistas versus salafistas arquiconservadores.
Proliferam
concepções erradas sobre a luta, resultado de condições sociopolíticas
contemporâneas, mas que nada têm de novas: é a volta do confronto entre rivais
ancestrais, com novos interesses em disputa. Debates sobre o papel adequado do
Islã na política vêm despertando paixões desde o final do Califato Rashidun
[3].
Harry Verhoeven |
Enquanto
os reformistas destacam o caráter dinâmico do Islã – os textos não podem jamais
ser alterados, mas nossas interpretações mudam em função de novos desafios – os
salafistas partem de interpretação literalista do Corão e da Sunna do
Profeta Maomé. Reforçam o conservadorismo tanto na esfera pessoal como no reino
da política, o que produz posição muito ambivalente, para dizer o mínimo, em
relação aos processos democráticos.
Ibn Taymiyyah, intelectual ativo
no século 13, [4] e padrinho intelectual dos
salafistas do século 21, rejeitou a participação popular nos processos de
mudança política:
“O
que governa pode exigir obediência dos governados, porque até um governador
injusto é melhor que a guerra e a dissolução da sociedade”.
As
disputas de hoje revisitam a antiga divisão entre os que creem na emancipação da
sociedade mediante reformas sancionadas pelo Islã e os que questionam a inovação
e o debate livre, seja na teologia seja na política.
Salafistas
versus islamistas
Apesar das muitas diferenças, há
importantes semelhanças entre salafistas e islamistas. Não se trata de escolher
entre “ocidentalização” e “Islã tradicional”: nenhum desses campos existe nas
categorias-caricatura da Guerra Global ao Terror. As duas fórmulas são produtos
da modernidade [5], que pensa sobre política e sobre
religião de modo profundamente moderno, e que responde à modernização com
discursos, instituições e ideias que estão, todos, profundamente enraizados no
imaginário do século 21.
O
papel da religião na eleição egípcia
Apesar
da retórica candente, não se trata de voltar à Arábia do século 7º. Ambos,
salafistas e islamistas lamentam a perda de status nos séculos passados e
propõem vias para um Renascimento do mundo islâmico. Ambos contestam a injustiça
social, a corrupção do “Islã real” e a inabilidade dos muçulmanos para enfrentar
os desafios que lhes chegam do ocidente. Ambos falam de um perdido passado de
glórias e pregam que se reinvente o status-quo. Mas, enquanto os
salafistas destacam a ordem, o ritual externo e a diferença religiosa dentro e
fora do mundo islâmico, os islamistas destacam que a civilização islâmica sempre
foi, historicamente, uma força progressista no mundo; que abraçou a inovação, a
ciência e a racionalidade e engajou-se em livre debate dentro de um contexto
islâmico que visa a integrar, não a dividir.
As
questões nucleares em que salafistas e islamistas confrontam-se hoje são as
questões da democracia liberal, da liberdade e da inclusão social. As respostas
produzidas pela rivalidade entre eles – nas eleições no Egito; na guerra civil
na Síria, onde já há três lados em guerra; dentro do Regime de Salvação do
Sudão, etc. – estão determinando o futuro do mundo islâmico. Ambos, islamistas e
salafistas, têm relacionamento difícil com eleições.
No
tempo da descolonização, os dois grupos desejavam um renascimento
político-espiritual, não apenas uma independência meramente formal.
Mas a ascensão do pan-arabismo e
de governos socialistas – no Egito de Nasser, no Iraque de Saddam, na Líbia de
Gaddafi – marginalizou todos os projetos de inspiração religiosa. Com esses
regimes tornando-se cada vez mais autoritários, as opções de mudança de dentro
para fora se reduziram drasticamente. Os salafistas firmaram um pacto faustiano:
seguindo Ibn Taymiyyah, tornaram-se indiferentes aos desafios e provocações, e
ganharam, a partir dos anos 1970s, a liberdade necessária para desenvolver suas
próprias redes sociais, com apoio dos sauditas, para competir contra os
islamistas. O levante salafista de 2012, incluindo a evidência de que o Partido
Al-Nour [6] conquistou 25% dos assentos com
direito a voto no Parlamento do Egito, é resultado direto [7] dessa decisão e de seus
desenvolvimentos.
Mudando o
centro político
Os islamistas têm mostrado
relações mais amigáveis com a democracia eleitoral que os salafistas, mas houve
experiências traumáticas, no passado, que levaram muitos a questionar as
intenções da Fraternidade Muçulmana do Egito [8] e do Partido Ennahda da Tunísia.
No Sudão e na Argélia, coalizões islamistas candidataram-se ao Parlamento, mas o
processo levou a violência em larga escala. Em
Cartun , os islamistas abandonaram o compromisso com a
democracia, aliando-se aos militares para um golpe de estado em 1989 – aliança
controvertida [9] que veio, depois, a dividir o
Movimento Islâmico Sudanês, solapando suas promessas de modernização e de
democratização. Em Argel, a Frente Islâmica de Salvação (FIS) alcançou maioria
absoluta nas eleições parlamentares em 1991, mas recusaram-se a acomodar os
interesses da poderosa classe militar da Argélia. Radicais dos dois lados
enfrentaram-se numa guerra civil [10] que custou entre 150 mil e 200 mil
vidas.
Os
erros cometidos pelos islamistas da Argélia e Sudão chegaram ao ápice quando, já
no quadro do poder absoluto, os teóricos da Guerra Global ao Terror conseguiram
ignorar a divisão entre islamistas e salafistas: e os dois lados deixaram-se
abordar pelo prisma da al-Qaeda e de uma radicalização possível, ao contrário do
que se viu entre os “bons” secularistas. Mas a Primavera Árabe mudou o centro de
gravidade político do confronto entre salafistas e islamistas e forçou os dois
lados a um novo engajamento com a democracia.
Enquanto
os salafistas começaram, relutantes, mas com sucesso, a participar de eleições,
os islamistas abraçaram sua agenda islâmica original de liberdade, enfatizando
as reformas econômicas, a governança participativa e a liberdade religiosa.
Hoje, o momento é de grandes oportunidades no mundo islâmico, mas, também, de
riscos extremos.
Apesar do ímpeto eleitoral
crescente nos últimos anos, uma vitória dos salafistas nessa luta parece
improvável, no longo prazo: a rígida teologia salafista oferece fraca orientação
sobre como enfrentar o declínio econômico, a crise na educação [11] no mundo árabe e as massas jovens.
Mesmo assim, os salafistas ainda ajudam a impedir que os islamistas alcancem
vitória ampla. Os mais otimistas [12] argumentam que o envolvimento nas
instituições políticas forçará os salafistas a construir soluções pragmáticas
para as questões arroz-com-feijão. É pensamento de excessivo otimismo, que ainda
pode ser eclipsado pela aliança entre os velhos establishments militares e os
zelosos salafistas para torpedear o projeto de seus arqui-inimigos islamistas.
Esse arranjo ameaça aprofundar a divisão entre sunitas e xiitas no Islã, pondo
em risco a posição de minorias religiosas e levando a irrupções (nem sempre
propriamente “espontâneas”) de violência contra “infiéis”, como se viu
recentemente em ataques a igrejas no Iraque, Egito [13] e Sudão [14].
O
renascimento islâmico
Escolher
entre islamistas e salafistas não é escolher entre seis e meia dúzia. Muitos
líderes islamistas amadureceram dramaticamente desde as experiências na Argélia
e no Sudão e começaram a abandonar suas utopias revolucionárias, sem sacrificar
os princípios. Embora muitos deles ainda se equivoquem muito sobre os direitos
humanos “ocidentais”, o compromisso da grande maioria dos islamistas com o
constitucionalismo, com dar maior destaque às mulheres muçulmanas na vida
política e com promover maior harmonia no relacionamento com outras fés
religiosas já não pode ser questionado. Vozes islamistas tornaram-se empenhadas
e confiáveis defensoras desses princípios, mais, até, que muitos secularistas na
Tunísia, na Argélia e no Egito, os quais, no passado, muitas vezes,
empenharam-se mais em “dissolver a democracia para salvá-la”.
A
comunidade internacional terá de aprender a conviver com um vibrante mundo
islâmico religioso, com papel maior e mais visível para o Islã, na política do
dia a dia: modernizar não significa ocidentalizar. Os que se preocupem com
segurança internacional, liberdade de expressão e justiça social devem
considerar bem-vindo o projeto trazido pelos islamistas, para derrotar o
salafismo e as ditaduras. Há movimentos fortes, da Mauritânia à Malásia, por um
renascimento social ético amplo, e por um renascimento islâmico que lance a
civilização islâmica de volta à posição de destaque que lhe cabe, no cenário
global.
Os que se
interessem por ver, para além das discussões sobretudo simbólicas sobre turistas
de biquinis e consumo de bebidas alcoólicas, um islamismo modernizante, como o
de Tayyep Recip Erdogan na Turquia, não é fuga reacionária da realidade, mas
grito sincero pela reestruturação progressista, a partir de direitos, no plano
social doméstico e global. É também um modo de resistir contra uma forma de
globalização que, para muitos, não realizou o projeto da modernidade – de plena
mobilidade social e cada vez mais amplas liberdades individuais – e que, na
prática, continua a aprofundar as injustiças e a gerar desorientação
psicossocial.
Notas
de rodapé
[1] Al-Jazeera, “Anger in
Egypy”
[2] 21/4/2012, Huffington
Post, em: “Is
Tunisia's Post-Revolution Media Freedom Slipping?”
[3] Vide: “Rashidun
Caliphate”
[4] Vide: “Ibn
Taymiyyah”
[5] 16/4/2012, Foreign Policy em: “The New
Islamists”
[7] 15/2/2011, Telegraph, UK,
WikiLeaks – “SALAFISM
ON THE RISE IN EGYPT CAIRO 00000202 001.2 OF 00”
[8] 11/2/2011, Mother Jones,
EUA, em: “What
Is the Muslim Brotherhood, and Will It Take Over
Egypt?”
[9] Middle East Policies Center,
MEPC, em: “Sudan's
Islamists and the Post-Oil Era: Washington's Role after Southern
Secession”
[10] 29/9/2011,Christian Science
Monitor, em: “Q&A
with Syrian jihadist: Minorities have nothing to fear in post-Assad
Syria”
[11] 7/2/2011, United Nations
Development Programme - UNDP, “The
Arab Human Development Report: Worth a Second
Read”
[12] 9/4/2012, Eurasia Review,
“Salafis
In Egypt’s New Politics: Ideological Adaptation Or Compromise? –
Analysis”
[13] 9/5/2011, Al-Jazeera, “Cairo
tense after religious clashes”
[14] 22/4/2012, Sudan Tribune, “Pastor
confirms attack by Islamic fundamentalists on Sudan church”
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