[*] Adriano Benayon
- 05.12.2013
Este artigo desenvolve pontos que abordei no Seminário
Internacional “O Sistema da Dívida na Conjuntura Nacional e Internacional,
realizado em Brasília, de 11 a
13.11.2013.
2. Esse evento
focou questões fundamentais, como as absurdas taxas de juros que a União impõe
a Estados e Municípios como credora deles, exações semelhantes às que ela paga
ao sistema financeiro, liderado pela oligarquia financeira angloamericana.
3. Também revelou
provas existentes no Brasil e em auditorias levadas a efeito no Equador, na
Argentina e na Islândia, reveladoras de que o grosso das dívidas originais não
está documentado, e de que elas se multiplicaram através da capitalização de
juros, taxas e comissões injustificados.
4. Não obstante,
até hoje, o Congresso Nacional não
cumpriu a determinação do art. 26 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias da CF de 1988: efetuar a auditoria da dívida pública.
5. Apresentei documentos
do Arquivo da Constituinte que comprovam ter sido introduzido, por meio de fraude, no art. 166, § 3º,
inciso II, da Constituição de 1988, o dispositivo que privilegia as despesas de
juros e amortizações da dívida no Orçamento da União.
6. Dito dispositivo
não foi jamais discutido nos trabalhos da Constituinte, mas entrou, de
contrabando, depois de o texto constitucional ter sido aprovado, sem ele, pelo
Plenário, no 1º Turno. Isso permitiu que as despesas com o serviço da
dívida somassem – de 1988 ao presente - a colossal quantia de R$ 10 trilhões em
preços atualizados.
7. Essa causa da
ruína da União, Estados e municípios resulta, por sua vez, de duas outras
fontes de sugação dos recursos do País:
a) a entrega do mercado brasileiro às transnacionais;
b) a dependência financeira e tecnológica nos investimentos na
infra-estrutura e nas indústrias básicas.
8. Essas duas
fontes primordiais – começaram a implantar-se com o golpe de Estado de agosto
de 1954, regido pelos serviços secretos angloamericanos. Elas causam os
déficits nas transações correntes com o exterior e acarretam a
desindustrialização e o empobrecimento do País, juntamente com o serviço da
dívida pública delas derivado.
9. A entrega do
mercado às transnacionais causou danos irreversíveis ao País, e o teria feito
mesmo que tivesse havido contrapartidas. Mas foi ainda pior: o governo, além do
mercado, outorgou-lhes subsídios e vantagens de tal monta, que os prejuízos
foram ainda mais profundos e avassaladores.
10. As benesses
ao capital estrangeiro deram-se a partir da Instrução 113 da SUMOC (janeiro de
1955), que autorizou a CACEX (Carteira de Comércio Exterior) a emitir licenças
de importação para equipamentos usados, sem cobertura cambial, permitindo,
também, que o valor a eles atribuído pelas transnacionais fosse registrado como
investimento estrangeiro em moeda.
11. Isso implicou
suprimir a promissora indústria brasileira, que progredira desde o início do
século XX, porquanto deu às empresas estrangeiras vantagem competitiva
insuperável, proporcionando-lhes produzir no Brasil com custo zero de
capital e de tecnologia.
12. De fato, as
transnacionais puderam trazer máquinas e equipamentos usados, amortizados com
as vendas nos países de origem e em outros mercados de grandes dimensões,
enquanto as indústrias nacionais teriam de pagar pela importação de bens de
capital e por tecnologia, ou investir por longos anos para produzir seus
próprios bens de capital.
13. Além de doar
o mercado brasileiro às transnacionais, através da licença para trazer seus
bens de capital usados, de valor real zero, e contabilizá-lo por centenas de
milhões dólares - base para transferir capital e lucros para o exterior -, o
governo militar-udenista (1954-55) agraciou as transnacionais com a diferença
entre a taxa de câmbio livre e a taxa preferencial.
14. A livre era
mais que o dobro da preferencial.
a) as transnacionais declaravam o valor que quisessem, em moeda
estrangeira, dos bens de capital importados;
b) convertiam-no à taxa livre;
c) ao transferir capital, “despesas” e lucros para o exterior, a
conversão era à taxa preferencial.
15. Esse triplo
favorecimento e mais os ganhos comerciais das transnacionais com suas
importações, mediante sobrepreços – também altíssimos após o início da produção
local - permitiu às transnacionais transferir fabulosos ganhos para suas
matrizes no exterior.
16. Absurdamente,
o Brasil entregou o que não deveria entregar por preço algum, e, além disso, em
vez de cobrar, pagou para entregar.
17. JK foi
entreguista tão radical, que não só manteve os indecentes favorecimentos ao
capital estrangeiro, mas reforçou-os a ponto de ser aberta linha de crédito
oficial para financiar as montadoras estrangeiras. Esse benefício foi negado à
empresa brasileira Romi, de Santa Bárbara do Oeste (SP), que produziu 3.000
unidades da Romisetta, automóvel de um só banco, de 1956 a 1959.
18. Além disso,
JK criou grupos executivos setoriais, como o GEIA, da indústria
automobilística, para facilitar os procedimentos de entrada em funcionamento
das montadoras estrangeiras e baixou a lei 3.244, de 14.08.1957, e o Decreto
42.820, de 16.12.1957, proporcionando mais vantagens cambiais aos
“investidores” estrangeiros.
19. Não admira
que, ao final do quinquênio de JK, o Brasil sofresse sua primeira crise
de contas externas desde o início dos anos 30. Vargas havia, em 1943, reduzido
a dívida externa do País a quase nada.
20. As
transferências das transnacionais são o principal fator dos elevados
déficits nas transações correntes com o exterior (US$ 80 bilhões nos últimos
doze meses), que colocam o Brasil no limiar de mais uma crise.
21. Sobre os
escandalosos sobrepreços, escreveu o senador Vasconcelos Torres (1920/1982), p.
94 do livro “Automóveis de Ouro para um Povo Descalço” (1977):
No exercício de 1962 foi registrado, no balanço consolidado das onze
empresas produtoras de veículos automóveis e caminhões, lucro de 65% em relação
ao capital social, constituído por máquinas usadas, e aumentado posteriormente,
com incorporações de reservas e reavaliação dos ativos.
22. Na. p. 95
desse livro, há tabela referente aos balanços de 1963, comparativa de preços de
venda da fábrica à distribuidora com os preços de venda do distribuidor ao
público, para quatro montadoras, entre elas a Volkswagen: “o preço nas
distribuidoras era mais de três vezes o preço na fábrica”, e os donos desta
eram os mesmos daquelas ou tinham participação naquelas.
23. Desde o final
dos anos 60, as transnacionais foram cumuladas por Delfim Neto com colossais
subsídios à exportação, como isenções de IPI e ICM, nas importações de seus
bens de capital e insumos, e créditos fiscais. Daí ao final dos anos 70, a dívida externa do País
teve o crescimento mais rápido de toda sua história.
24. No livro
“Globalização versus Desenvolvimento”, elenco quinze mecanismos através dos
quais as transnacionais transferem recursos para suas matrizes, desde
superfaturamento de importações e subfaturamento de exportações aos pagamentos
à matriz por “serviços” superfaturados e fictícios, afora a remessa oficial de
lucros.
25. A entrega do
mercado às transnacionais é a principal, mas não a única fonte das
transferências de recursos, dos déficits de conta corrente com o exterior e,
por conseguinte, da dívida externa, a qual deu origem à hoje enorme dívida
interna.
26. Esses
déficits e dívidas derivam também da realização, sob dependência tecnológica dos
investimentos públicos na infra-estrutura e indústrias básicas, como a
siderurgia, em pacotes fechados, caixas pretas, usinas clés-en-main ou turn-key.
27. Em lugar de
proporcionar espaço a pequenas e médias empresas de capital nacional, com
capacidade de evolução tecnológica (engenharia e bens de capital), os governos
pós-1954 privilegiaram grandes projetos, reservando assim o mercado para
carteis transnacionais.
28. Ademais,
esses governos subordinaram sua política financeira aos bancos privados, pois o
Tesouro não emite a moeda nem comanda o crédito através de bancos públicos.
Assim, o subdesenvolvimento tecnológico foi agravado, devido à carência
financeira, decorrente da própria política, que levou a buscar financiamento
externo, liderado pelos bancos internacionais multilaterais (Banco Mundial e
BID).
29. Confiada a
essas instituições -- dominadas pelas potências imperiais -- a direção das
concorrências para as obras públicas, foram favorecidos os carteis
transnacionais produtores dos equipamentos e demais bens de capital. Além
disso, participavam do financiamento os bancos oficiais de exportação daquelas
potências, bem como seus bancos comerciais privados.
30. Assim, ao
contrário dos países que progrediram, a política econômica do Brasil não deu
chances às empresas nacionais de desenvolverem tecnologia e de ganhar dimensão.
31. Nos países
onde houve desenvolvimento real, as compras governamentais foram fundamentais para
o surgimento de empresas de capital nacional dotadas de tecnologias
competitivas.
32. Isso ocorreu
no Brasil graças à Petrobrás, mas está decaindo com a quebra do monopólio
estatal do petróleo. Houve também nas telecomunicações e no setor elétrico, mas
acabou com as privatizações. Funcionou também em indústrias ligadas à área
militar, a qual foi, depois, enfraquecida por cortes no investimento público e
pela desnacionalização.
33. O
financiamento dos bancos públicos fortaleceu o capital nacional, naqueles
aqueles países, inclusive os de desenvolvimento recente, como Coreia do Sul,
Taiwan e China. Enquanto isso, no Brasil, o BNDES e os demais bancos estatais,
há muito, deixaram de priorizar as empresas nacionais e oferecem empréstimos
favorecidos a empresas transnacionais.
34. As
instituições brasileiras desmoronaram a partir da crise da dívida de 1982, e
esta decorreu:
a) da entrega do mercado às transnacionais, que se assenhorearam da
produção industrial no País, inclusive bens de capital;
b) de os investimentos públicos terem utilizado equipamento
importado e/ou produzido localmente por empresas estrangeiras, em grau muito
maior que o devido à incapacidade de oferta adequada por empresas de capital
nacional.
35. A
dependência tecnológica foi agravada em função da entrega do mercado às
transnacionais. Além disso:
a) as empresas nacionais foram asfixiadas pelas políticas
restritivas aos investimentos públicos e ao crédito - tornado proibitivo sob o
governo de 1964 a
1966;
b) o governo recorreu, em grau crescente, aos empréstimos e
financiamentos estrangeiros, em face do crescimento da própria dívida. Esse
recurso era, de início, desnecessário, pois o Estado poderia emitir moeda e
crédito.
36. Apesar de os
choques do petróleo terem contribuído para a explosão da dívida externa nos
anos 70 – pois o Brasil era importador líquido - isso não foi fator decisivo.
Não o foi tampouco a brutal elevação dos juros nos EUA em agosto de 1979,
quando, de resto, a situação das contas externas brasileiras já se mostrava
insustentável.
37. Outros países
com ainda maior coeficiente de importação de petróleo - como Alemanha, Itália,
França, Japão, Coreia - não caíram, em 1982, na mesma situação de Brasil,
Argentina e México, caracterizados pelo modelo dependente e pela ocupação de
setores estratégicos de suas economias pelos investimentos estrangeiros
diretos.
38. Desde 1982, o
governo pôs-se de joelhos diante dos bancos comerciais e dos governos das
potências hegemônicas, a pretexto da crise da dívida externa, oficializando a
submissão ao FMI e Banco Mundial e aos planos dos banqueiros (Baker e Brady -
1983-1987).
39. Assim, a
desnacionalização e a primitivização tecnológica, consequências das políticas
adotadas desde o final de 1954 tornaram-se ainda mais intensas. A condição
colonial ficou evidente na Constituição de 1988, não só através do dispositivo
fraudulentamente inserido no art. 166 (Vide § 5 acima) para privilegiar as
despesas com o serviço da dívida, mas também de outras normas, como o art. 164.
Divisão do Orçamento Geral da União - Gráfico de 2012 (clique na imagem para aumentar) |
40. Esse (art. 164)
determina que a competência da União para emitir moeda seja exercida
exclusivamente pelo Banco Central (BACEN), e o proíbe de conceder, direta ou
indiretamente, empréstimos ao Tesouro Nacional e a qualquer órgão ou entidade
que não seja instituição financeira. Dispõe, ademais, que os saldos de caixa da
União serão depositados no BACEN.
41. Ora, o
Tesouro, que deveria ser o emissor da moeda e financiar parte dos investimentos
públicos desse modo, não pode fazê-lo. Portanto, a Constituição força o Tesouro
a endividar-se, emitindo títulos públicos. Com isso assegura lucros absurdos
aos bancos privados, os quais recebem recursos do BACEN, a baixo custo, e os
aplicam em títulos do Tesouro, que pagam juros elevadíssimos.
42. Esses juros (taxa
SELIC) são fixados pelo COPOM (Comitê de Política Monetária), controlado pelo
BACEN, um feudo dos bancos privados. Essa é mais uma fonte de enriquecimento
sem causa, como a decorrente do privilégio de criar dinheiro do nada, fazendo
empréstimos em múltiplo dos depósitos.
43. Banco é uma
concessão que o Estado só deveria dar à mãe dele, a sociedade: é uma concessão
que só tem sentido se for estatal e exercer suas funções em prol da sociedade.
No Brasil esta não poderia estar sendo mais traída, pois aqui são praticadas
taxas de juros altíssimas sem qualquer razão, afora a mistificação.
44. Chegou-se a
taxas básicas para títulos públicos acima de 40%, inclusive após o Plano Real,
falsamente apresentado como saneador da inflação. E, de resto, para reduzir a
inflação faz mais sentido baixar que elevar as taxas de juros.
45. A taxa de 2%
aa. capitalizada mensalmente por 30 anos não faz dobrar um saldo devedor. A de
15% faz que o saldo seja multiplicado por 66,3.
46. O Brasil já
estava subjugado em 1988, e depois o opróbrio intensificou-se a cada eleição.
Veio a liquidação de estatais estratégicas; a lei da desestatização; os planos
“antiinflacionários”, repressores da economia produtiva; dezenas de emendas
constitucionais contrárias ao País, como a que acabou com qualquer
possibilidade de distinção entre empresa de capital nacional e empresa de
capital estrangeiro.
47. Mais: as
infinitamente danosas privatizações; abertura das importações, sem
contrapartida; isenção de impostos e contribuições à exportação de produtos
primários; adoção do estatuto da OMC e da lei de propriedade industrial,
que afunda o País no apartheid tecnológico; lei 9.478/1997: entrega do petróleo
às transnacionais; lei de “responsabilidade” fiscal: prioridade absoluta aos gastos
com a dívida pública; demissão do Estado com a criação das agências e as
concessões; parcerias público-privadas: o Estado dá dinheiro, financia e
garante lucro sem risco aos concentradores privados; intensificação dos
subsídios e privilégios aos “investimentos” diretos estrangeiros.
48. Em resumo,
aumenta-se a dose das políticas de desnacionalização da economia, causadoras
originárias da dívida pública. A desnacionalização gera mais dívida, e esta
aprofunda o rombo.
49. Fixam-se
taxas de juros altíssimas sobre o montante enorme dessa dívida. Desse modo,
mesmo sugando os contribuintes, com tributos, o Estado não consegue receitas
suficientes para pagar a conta dos juros.
50. Isso
demonstra que essas taxas não têm outro sentido senão acarretar o crescimento
sustentado da dívida, por meio da capitalização de juros. Desnecessário
reiterar o quanto tais políticas são destrutivas.
51. Além de
escorchada pela carga tributária, a sociedade o é adicionalmente pelos preços
dos produtos fornecidos por oligopólios e carteis transnacionais.
52. Ela sofre,
pois, de múltiplos ataques que corroem a renda disponível dos cidadãos:
a) os preços abusivos dos produtos que se usa ou consome;
b) impostos e contribuições fiscais acima da capacidade
contributiva;
c) crescente insuficiência dos investimentos públicos, decorrente
de quase metade das despesas serem torradas com o improdutivo serviço da
dívida, bem como de desonerações fiscais e subsídios em favor do sistema
financeiro e dos concentradores em geral.
53. Desgastam
ainda mais a renda social e a qualidade de vida das pessoas:
a) a lastimável condição das infra-estruturas, especialmente a de
transportes e a de energia;
b) a baixa e decadente qualidade da educação e da saúde, inclusive
saneamento e prevenção;
c) a carência de empregos de produtividade elevada e os bem
remunerados.
_________________
[*]Adriano
Benayon: Consultor em finanças e
em biomassa. Doutor em Economia, pela Universidade de Hamburgo, Bacharel em
Direito, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Diplomado no Curso
de Altos Estudos do Instituto Rio Branco, Itamaraty. Diplomata de carreira,
postos na Holanda, Paraguai, Bulgária, Alemanha, Estados Unidos e México.
Delegado do Brasil em reuniões multilaterais nas áreas econômica e tecnológica.
Consultor Legislativo da Câmara dos Deputados e do Senado Federal na área de
economia. Professor da Universidade de Brasília (Empresas Multinacionais;
Sistema Financeiro Internacional; Estado e Desenvolvimento no Brasil). Autor de Globalização
versus Desenvolvimento, 2ª ed. Editora Escrituras, São Paulo.
Simplesmente objetiva, elucidativa e corajosa abordagem. Caro Adriano, você foi muito feliz em conseguir contemplar uma resposta simplificada sobre o destino dado ao orçamento, oriundo do esforço coletivo do cidadão brasileiro!
ResponderExcluirFerdinando.