24/12/2013, [*] Pepe Escobar, Asia Times Online – The Roving Eye
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Mapa do Irà com oleogasodutos e pontos de extração de petróleo e gás |
A grande
história de 2014 será o Irã. Claro: a grande história do início do século 21
jamais deixará de ser EUA-China, mas será em 2014 que saberemos se é alcançável
um acordo amplo, que transcenda o programa nuclear iraniano; e, se for, a
miríade de ramificações afetarão tudo que está em disputa no Novo Grande Jogo
na Eurásia, inclusive EUA-China.
Como as
coisas estão hoje, temos um acordo provisório entre o P5+1 (os cinco membros
permanentes do Conselho de Segurança da ONU mais a Alemanha) e o Irã, e acordo
nenhum entre EUA e Afeganistão. Assim, mais uma vez, temos o Afeganistão
configurado como campo de batalha entre o Irã e a Casa de Saud, parte de um
jogo geopolítico jogado em ritmo de frenesi desde a invasão dos EUA contra o
Iraque em 2003 ao longo da franja norte do Oriente Médio direto ao Khorasan e
ao sul da Ásia.
Há ainda o
elemento da paranoia saudita, que extrapola do futuro do Afeganistão para a
perspectiva de um Irã completamente “reabilitado” tornado aceitável para as
elites político/financeiras ocidentais. Isso, vale anotar, nada tem a ver com
aquela ficção, a “comunidade internacional”; afinal, o Irã nunca foi banido
pelos BRICSs, (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), pelo Movimento
dos Não Alinhados e pela maioria do mundo em desenvolvimento.
Aqueles
malditos jihadistas
Todos os
atores significativos no governo de Barack Obama já alertaram o presidente
Hamid Karzai de que ou ele assina um “acordo de segurança” bilateral que
autoriza algum tipo de avatar da ocupação norte-americana, ou Washington
retirará todas as suas tropas no final de 2014.
Hamid Karzai |
Fantoche
esperto, Karzai ordenhará a coisa, até extrair dela a última gota de benefício
para si próprio – e podem ser concessões das mais brabas. Mas, aconteça o que acontecer, o Irã manterá, se não
ampliar, sua esfera de influência no Afeganistão. Essa intersecção entre Sul da
Ásia e Ásia Central é geopoliticamente crucial para o projeto iraniano de
poder, só menos crucial que o Sudoeste Asiático (que chamamos de “Oriente
Médio”).
Deve-se, é
claro, esperar que a Casa de Saud prossiga usando todos os truques sujos que
brotem da imaginação de Bandar bin Sultan da Arábia Saudita, codinome Bandar Bush, para manipular os sunitas em todo
o Af-Pak, com o objetivo de, essencialmente, impedir que o Irã projete o próprio
poder.
Mas o Irã
conta com um aliado chave: a Índia. Com Delhi acelerando a cooperação de
segurança com Kabul, atingimos o pico no Hindu Kush; e com Índia, Irã e
Afeganistão desenvolvendo seu ramo sul da Nova Rota da Seda, com lugar especial
para a rodovia que liga o Afeganistão ao porto iraniano de Chabahar – o
Afeganistão encontra-se com o Oceano Índico.
A nova Rota da Seda alcança a Índia (clique na imagem para aumentar) |
Por tudo
isso, atenção a todos os tipos de interpolações de uma aliança Irã-Índia
confrontada com um eixo sauditas-paquistaneses. Esse eixo tem apoiado
islamistas variados na Síria – com resultados nefandos; mas o Paquistão tem
sido envolvido em violência terrível contra os xiitas, e Islamabad não se
mostrará muito interessada em alinhamentos demasiado estreitos com a Casa de
Saud no AfPak.
Mas
aconteceu que Washington e Teerã, por sua parte, estão outra vez alinhadas
(lembram 2001?) no Afeganistão; nem uma nem outra quer saber de jihadistas
linha duríssima rondando por perto. Até Islamabad – a qual, para todas as
finalidades prática, perdeu toda a capacidade de influenciar os Talibã no Af-Pak
– gostaria de ver os jihadistas desmanchados em fumaça.
Todos esses
atores sabem que, não importam o número de forças dos EUA que permaneçam nem
quantos enxames de mercenários contratados haja, eles não preencherão o vácuo
de poder em Kabul. A coisa tenderá a permanecer sombria, mas, essencialmente, o
cenário aponta para as encruzilhadas da Ásia Central/Sul da Ásia, que devem
permanecer como o segundo maior campo de batalha geopolítica – e sectária – na
Eurásia, depois do combo levantino-mesopotâmico [Líbano, Síria, Iraque,
p.ex.(Nrc)].
Nada de
energia, do nosso vizinho?
Tanto
quanto a Índia, o Iraque também está a favor de um acordo amplo com o Irã. E
pensar que Irã e Iraque poderiam ter-se engajado numa corrida armamentista
nuclear silenciosa, um contra o outro, no final do século 20... só para Bagdá,
agora, estar aí, defendendo tão empenhadamente o direito de Teerã a enriquecer
urânio. E, isso, para nem falar que Bagdá depende do Irã para comércio,
eletricidade e ajuda material, naquela guerra sem tréguas contra islamistas/salafistas-jihadistas.
A Turquia
também considera bem-vindo um acordo amplo com o Irã. O comércio da Turquia com
o Irã só pode aumentar. O alvo é que alcance US$30 bilhões em 2015. Mais de
2.500 empresas iranianas investiram na Turquia. Ankara absolutamente não pode
apoiar as sanções ocidentais; não faz business-sentido. As sanções
caminham contra a política turca de expandir o comércio. Além do mais, a
Turquia depende do gás natural barato importado do Irã.
Depois de
desvio selvagem da antiga política de “problemas zero com nossos vizinhos”,
Ankara está acordando agora para os negócios à vista, na reconstrução da Síria.
O Iraque pode ajudar, usando sua riqueza do petróleo. A Turquia, pobre em
energia, não pode correr o risco de ser marginalizada. Uma Síria reestabilizada
significará impulso para o gasoduto de $10 bilhões Irã-Iraque-Síria. Se Ankara
jogar o jogo, pode cogitar de uma extensão – que se encaixa bem no
autoproclamado posicionamento como encruzilhada privilegiada no Oleogasodutostão
do ocidente para o oriente.
Mapa Político (idealizado pelo Pentágono) do Oriente Médio e sudeste da Ásia (clique na imagem para aumentar) |
Resumo
disso tudo é que o conflito turco-iraniano sobre o futuro da Síria quase some,
se comparado com o jogo da energia e o crescimento do comércio. Isso sugere que
haverá cada vez mais convergência entre Ankara e Teerã, na direção de
encontrar-se solução pacífica na Síria.
Mas, sim,
há um problema imenso. A Conferência Genebra II, dia 22/1, pode ser o último
prego no caixão do projeto da Casa de Saud, de meter ‘mudança de regime’ goela
abaixo de Bashar al-Assad. Mais uma vez, isso implica que Bandar Bush está a ponto de medievalizar-se
completamente – com todo o espectro de execuções sumárias, degolas, explosões
de suicidas e carros-bomba e o mais alucinado sectarismo, em todo o front Iraque-sírio-libanês.
Haverá,
pelo menos, um sério contragolpe. Como
diz Sharmine Narwani, [(artigo
em tradução (NTs)] o antigo “crescente xiita” – ou “eixo da resistência” –
está-se auto-organizando agora como um “arco de segurança” contra
salafistas-jihadistas. E os cérebros do Pentágono que inventaram o “arco de instabilidade”,
que nunca pensaram nisso!
A loucura
dos mísseis... alguém se interessa?
Adultos em
Washington – não se pode dizer que sejam a maioria – podem já ter visualizado
os fabulosos derivativos de um acordo do ocidente com o Irã, se examinassem a
aprovação da China e a possibilidade de uma futura ajuda iraniana para ajudar a
estabilizar o Afeganistão.
Para a
China, o Irã é questão de segurança nacional – como uma importante fonte de
energia (além da muitas, muitas afinidades culturais entre persas e chineses
desde os tempos da Rota da Seda). Ameaçar com sanções a terceiros, um país ao
qual os EUA devem mais de $1 trilhão, e com sanções do Departamento de Estado
por comprar petróleo iraniano é coisa de que não se cogita, pelo menos por
hora.
Vladimir Putin |
Quanto a
Moscou, ao aparecer com uma solução diplomática para a crise das armas químicas
na Síria, Vladimir Putin salvou o governo Obama, nem mais nem menos, de si
mesmo, quando estava a um passo de meter-se em mais uma guerra no Oriente
Médio, de consequências potencialmente cataclísmicas. Imediatamente depois, se
abriu a primeira brecha, desde 1979, no Muro de Desconfiança entre EUA e Irã.
Crucialmente
importante: depois de assinado o acordo nuclear provisório com o Irã, o
ministro de Relações Exteriores da Rússia, Sergey Lavrov pulou na jugular: o
acordo põe fim à necessidade de haver mísseis balísticos da OTAN na Europa
Central – com bases de interceptação na Romênia e Polônia previstas para estar
operantes em 2015 e 2018, respectivamente. Washington sempre insistiu na ficção
de que os mísseis visavam a prevenir a “ameaça” iraniana.
Sem o
pretexto iraniano, a justificativa para o sistema de mísseis balísticos de
defesa cai por terra.
A real
negociação começa mais ou menos agora, no início de 2014. Logicamente, a
solução, em meados de 2014 seria o
fim das sanções em troca de forte supervisão do programa
nuclear iraniano. Mas esse é jogo de duplos espelhos. Washington vende a ela
mesma o mito de que assim estaria, de algum modo, controlando o programa nuclear
iraniano, plano alternativo a um ataque “Choque e Pavor” ultra-arriscado para
aniquilar vastos segmentos da infraestrutura do Irã.
BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) |
Ninguém
diz, mas é fácil ver os BRICSs pesos-pesados, Rússia e China, informando
Washington, casualmente, o tipo de armamento e material de apoio que
entregariam ao Irã em caso de ataque norte-americano.
Teerã, por
sua vez, gostaria de interpretar a tentativa de reaproximação como renúncia,
pelos EUA, à ‘mudança de regime’, com o Supremo Líder Aiatolá Khamenei pagando
o preço de trocar elementos de um programa nuclear, pelo fim das sanções.
Assumindo-se
que Teerã e Washington sejam capazes de isolar os respectivos lobbies confrontacionais
– tarefa titânica – os benefícios são autoevidentes. Teerã quer – e muito precisa
de – investimentos em sua indústria de energia (no mínimo, $200 bilhões) e em
outros setores da economia. O Grande Petróleo ocidental está doido para
investir no Irã. A abertura econômica será parte inevitável do acordo final – e
para o turbo-capitalismo ocidental, é absolutamente necessário que seja: um
mercado de 80 milhões de consumidores bem educados, localização
fabulosa e nadando em petróleo e gás.
O que haveria de errado nisso?
Obama:
pacificador ou só enganador?
Teerã apoia
Assad em grande parte para combater o vírus do jihadismo – gerado em incubadora
por ricos patrocinadores na Arábia Saudita e no Golfo. Assim, digam o que
disserem os jornalistas de Washington, não há qualquer possibilidade de solução
séria para a Síria, sem envolver o Irã. O governo Obama agora parece estar-se
dando conta de que Assad é a opção menos ruim. Quem diria... há apenas três
meses?
Barack Obama |
O acordo
provisório com o Irã é a primeira evidência tangível de que Barack Obama está
realmente considerando deixar sua marca de política externa no Sudoeste
Asiático/Oriente Médio. Ajuda que o 0,00001% que dirigem o show podem talvez
ter percebido que um presidente dos EUA, globalmente visto como bobalhão,
engendra instabilidade massiva no Impérios e em todas suas satrapias.
O resumo de
tudo é que Obama tem de respeitar seu parceiro Hassan Rouhani – que deixou bem
claro aos norte-americanos que ele tem de preservar o apoio político em tempo
integral que Khamenei lhe dá; é a única via para manter ao largo o muito
poderoso lobby político-religioso em Teerã/Qom, que se opõe a qualquer
acordo com o ex-“Grande Satã”. Quer dizer: o “Grande Satã” tem de negociar a
sério e de boa fé.
Algum
agente da velha realpolitik (com coração mole) diria que o governo Obama
visa a um equilíbrio de poder entre Irã, Arábia Saudita e Israel. Outro agente
da velha realpolitik, mas mais maquiavélico, diria que se trata de jogar
sunitas versus xiitas, árabes versus persas, para mantê-los
paralisados.
Leitura
mais prosaica talvez seja que os EUA-protetores-de-gangues já não existam.
Muitos sabem de um poderoso lobby israelense e de outro lobby,
dos petrodólares wahhabistas em Washington, quase tão poderoso quanto o
primeiro; então, ninguém jamais considera que nem Israel nem a Casa de Saud têm
outro “protetor”, que não sejam os EUA.
Assim
sendo, doravante, se a Casa de Saud vê o Irã como ameaça, terá de operar com
sua própria estratégia. E se Israel insiste em ver o Irã como “ameaça
existencial” – o que é piada – terá de lidar com a questão como problema estratégico.
Se a consequência real da atual deriva é que Washington não mais lutará guerras
em nome de sauditas ou israelenses, nesse caso já temos uma mudança monumental
no jogo.
Xi Jinping
e Vladimir Putin veem que é do interesse deles “proteger” Obama, o pacificador.
Mas todos ainda pisam território escorregadio; Obama como pacificador –
honrando afinal seu Prêmio Nobel – pode ser só fantasia, uma visão em espelho
mágico. E Washington sempre poderá marchar para a mudança de regime em Teerã
comandando pelo próximo morador da Casa Branca depois de 2016.
Mas, no que
tenha a ver com 2014, muitos sinais apontam para uma deriva tectônica no mapa
geopolítico da Eurásia, com o Irã finalmente emergindo como a verdadeira
superpotência no Sudoeste Asiático, contra os desígnios de ambos – de Israel e
da Casa de Saud. Vai ser (geopoliticamente) divertido.
Feliz Ano
Novo.
[*] Pepe Escobar (1954) é jornalista,
brasileiro, vive em São Paulo, Hong Kong e Paris, mas publica exclusivamente em
inglês. Mantém coluna (The Roving Eye) no Asia Times Online; é
também analista de política do blog Tom Dispatch e correspondente/
articulista das redes Russia Today, The Real News Network Televison
e Al-Jazeera. Seus artigos podem ser lidos, traduzidos para o
português pelo Coletivo de Tradutores da Vila Vudu e João Aroldo, no blog redecastorphoto.
Livros:
- Globalistan: How the Globalized World is Dissolving into Liquid War, Nimble Books, 2007.
- Red Zone Blues: A Snapshot of Baghdad During the Surge, Nimble Books, 2007.
- Obama Does Globalistan, Nimble Books, 2009.
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