14/12/2013, O descurvo
Resenha
de TIBLE, Jean. Marx Selvagem. São
Paulo: Editora Annablume, 2013, 242 p.
Enviado pelo pessoal da Vila Vudu
Entreouvido Quiosque da Farinha na Vila Vudu: A ideia de “selvagens do mundo, uni-vos” é
TOTALMENTE EXCELENTE. E é bem provável (e facilmente possível!) que o livro seja MUITO MELHOR que a resenha –
construída como pretexto para “posicionamentos” grupelhistas onde haja
possibilidade de dividir para reinar, e para inventar brigas à toa, onde não
haja – em vez de visar a promover discussão que possa devir melhor conhecimento
para todos, mais do que só devir bate-boca que só devém anticomunismo e mais
besteirol de cluster acadêmico de metidos a inteligentíssimos.
O polemismo também é doença infantil do
comunismo. (Mas o livro,
sim, talvez seja interessante. Em tempo: Zé Celso não é “selvagem”. Zé Celso é
bacante. Acordem).
Marx Selvagem, vetusta tese de doutorado de Jean Tible,
finalmente deveio livro. Seu lançamento, no Teatro Oficina da trupe do
antropofágico Zé Celso Martinez Corrêa, foi uma feliz escolha para uma obra
desse naipe -- e tornou-se, no fim das contas, um verdadeiro acontecimento em Novembro último. Tible lançou um
olhar sobre um Marx menor -- em contraste com um Marx grandioso,
civilizado e arrogante -- que se revela, não por acaso, na virada dada pelo
filósofo alemão na compreensão do colonialismo e das chamadas sociedades sem
classes: isto é, quando Marx se livra, ou tenta se livrar, do
paradigma ilumino-modernista, algo que no plano conceitual se dá na forma de
seu afastamento definitivo da filosofia da consciência hegeliana rumo a uma ontologia
do sensível, no qual a temática da subjetividade torna-se horizonte visível.
A opção do autor pela problemática do
pensamento marxiano face aos selvagens é uma curiosa, e pertinente, forma de
abordar essa transição de Marx, justamente pelo significado disso no plano das
lutas. A escolha de Tible, quando este poderia simplesmente optar por
discutir os desdobramentos ontológicos desse processo, é reveladora do seu
ímpeto político e iconoclasta. Em algo, ele ecoa o espírito de obras como Anomalia
Selvagem de Toni Negri, isto é, fazer justiça com as próprias mãos
contra a apropriação majoritária e civilizatória de um grande pensador -- no
caso de Negri, Spinoza, enquanto aqui, Marx. É, pois, uma proposta original e
audaciosa, que merece ser lida -- e, obviamente, deglutida da melhor forma.
Convém, a título de explicação, expor
a maneira como essas "sociedades", esses selvagens todos, se
articulariam no interior do pensamento marxiano, o que implica em questões
importantes e delicadas no que toca à obra do filósofo alemão:
(I)
no plano dos conceitos, a afirmação de que o grau de abertura de Marx para a subjetividade,
e consequentemente para as temáticas da filosofia contemporânea, é mesmo maior
do que poderiam suportar, por exemplo, marxistas ortodoxos, modernistas e/ou
iluministas -- como algum bolshevik genérico, Hobsbawn e/ou Elster;
(II)
no plano das lutas, trata-se de uma rearticulação da maneira como se toma o colonialismo, o
capitalismo e formas de resistência, o que oporia Marx à sujeição incondicional
ao processo civilizatório -- sujeição tal que não poucos marxistas se apegam e
se apegaram, basta lembrar da União Soviética ou mesmo de um (ex?) trotskysta
como Hitchens defendendo a Guerra do Iraque. Conceitos e lutas, nem
preciso dizer, estão intimamente ligados na práxis marxista.
Logo, é evidente que Marx Selvagem
põe o dedo na ferida de uma velha doxa
do mundo intelectual: aquela que coloca em lados opostos do ringue “marxistas”
e “antropólogos” -- em uma arenga interminável e sem solução. O motivo da
querela é justamente a segunda razão acima apontada: Marx, segundo os “antropólogos”,
seria aliado da civilização e seu aparente radicalismo significaria, apenas e
tão somente, uma variação possível dentro do paradigma organizativo
judaico-cristão do ocidente -- mais ou menos aquilo que Pierre Clastres trouxe
à baila em seu Sociedade contra o Estado. E que para alguns
"marxistas" é isso mesmo: a história é linha reta determinada pelo o
desenvolvimento dos meios de produção, o que exige um compromisso profundo com
a "civilização" e seu avanço -- mesmo com certos, digamos, “sacrifícios”
em nome do bem maior, sendo o comunismo, ele mesmo, apenas o estágio superior
da civilização.
Pois bem, o livro de Tible é bom
porque se livra dessas falácias, insere-se na alegremente na polêmica -- ainda
que por ser um tese de doutorado, antes de um livro, carregue um
estilo às vezes demasiado acadêmico, mais pesado do que uma obra com
essa temática demanda. A obra em questão está articulada em três capítulos: o
primeiro, sobre a relação de Marx e o colonialismo e a América Indígena, o
segundo, a respeito da práxis antiestatal de Marx -- aproximando-o do
Clastres que lhe criticou tão duramente -- e, por fim, o melhor e mais
relevante capítulo: cosmologias, no qual Tible delinea o
ponto de conexão entre Marx e o pensamento ameríndio -- aqui, na forma da
antropologia reversa de Davi Copenawa -- o que é precisamente a relação entre a
noção marxiana de fetiche da mercadoria e o de feitiço: os brancos civilizados,
pois, não estão menos isentos de serem enfeitiçados, ao contrário, vivem
imersos na atração fatal que nutrem por seus objetos técnicos, na medida em que
lhe atribuem feições humanas -- no mesmo movimento em que desumanizam a si
mesmos e aos outros, sendo que só a partir daí tais objetos devêm mercadoria.
Sim, Marx, ao contrário de Engels,
emergiu gradualmente do fetiche civilizatório e modernista. E é em torno disso
que giro o primeiro capítulo do livro. E isso não é generosidade demasiada, uma
apropriação arbitrária ou wishful thinking do autor de Marx Selvagem para com Marx: Tible
demonstra isso com obstinação ao expor o giro marxiano em relação à questão
colonial; o velho Marx possuía uma posição inicial sobre o imperialismo,
segundo a qual o processo de colonização era visto como uma chance de povos
como os indianos entrarem na História para, depois, chutarem os colonizadores
britânicos, unindo-se aos trabalhadores do mundo num processo que desembocaria
na revolução; isso muda, no entanto, quando Marx assume uma posição
absolutamente hostil ao colonialismo, o qual passa a ser enxergado como mero
meio de retroalimentação da máquina capitalista mundial: seria um dispositivo
marcado pela dialética centro (progresso) e periferia (atraso), na qual os civilizados
explorariam os selvagens e bárbaros, que lhes eram contemporâneos. A partir
daí, a própria luta de classes tornar-se-ia uma modalidade da exploração geral,
a qual em escala global era dada pelo processo de parasitagem do colonialismo.
Grande parte desse giro marxiano se dá
em razão da leitura marxiana do antropólogo americano Lewis Henry Morgan: e a
novidade que Morgan trouxe à antropologia foi de não apenas deixar de lado o
discurso colonial-racista dos seus pares, mas também -- e sobretudo -- de afirmar
que as coletividades humanas selvagens não eram necessariamente piores. Ao
contrário. Isto é, ainda há uma certa linearidade em Morgan -- como há em Marx
-- mas o que certamente lhe fascinou em Marx foi que os selvagens não estão
postos em uma condição hierarquicamente inferior aos civilizados, consistindo
em formas diferentes de coexistência -- ambas sincrônicas, diga-se de passagem.
Tible, aliás, é particularmente competente em demonstrar isso.
As coisas esquentam mesmo no segundo
capítulo, quando Tible faz uma leitura do anti-estatalismo na obra de Marx e de
Pierre Clastres, ousando estabelecer um ponto de conexão entre ambos -- o que,
a um primeiro olhar, seria tarefa impossível. Pois bem, a hipótese que o autor
traça é conectar a sociedade sem Estado de Marx a sociedade contra o Estado de
Clastres, encontrando um comum em meio à (aparente?) dissonância. Sim, ambos,
Marx e Clastres, são pensadores anti-Estado. A partir daí, ele traça o
anti-estatalismo na obra dos dois para, logo mais, promover o encontro entre
eles. A transição revolucionária de Marx, o que há entre o
Estado burguês e o comunismo, como o esconjuramento atual do Estado em
Clastres?
E Tible faz bem isso ao nos lembrar
que Marx não é Lassalle, para quem a ideia de um Estado popular e
proletário já aparecia com O caminho: isto é, para Marx, o
Estado não é solução, mas resultado funesto da sociedade de classes, o que pode
ser definido na seguinte fórmula. A sociedade de classes é causa efetiva do
Estado, pois este é o local por excelência, no qual a classe dominante
reprime/media as tensões causadas pela resistência da(s) classe(s) dominadas.
De tal forma, ao assumir a posição da classe trabalhadora como a classe
revolucionária, ele acreditava que esta ao assumir o poder seria capaz de
promover a universalização da qual os burgueses jamais seriam, ou foram,
capazes: esta universalização levaria a uma sociedade sem classes, ao fim do
capitalismo, e consequente esvaecimento gradual do Estado. Essa talvez
seja a maior diferença entre Marx e Engels, uma vez que o segundo via o
Estado como causa, ao menos relativa, uma vez que ele era instrumento de
repressão nas mãos da classe dominante: no engelianismo, uma vez a revolução
sobreviesse e a reação a esta cessasse, o Estado perderia utilidade.
Mas é nas polêmicas com Bakunin que
chegamos ao ponto que interessa. No que se refere ao combate político-intelectual com o
anarquista russo, Marx defende sempre uma transição revolucionária para a
sociedade de classes -- e estatal -- e sociedade sem classes, por não acreditar
na abolição estatal "por decreto" como defendida por Bakunin; no
entanto, Bakunin da sua parte responde a Marx -- e não a nenhum marxista,
contemporâneo ou futuro -- que a transição proposta culminaria na prevalência
do Estado de um modo tão ou mais autoritário -- não é que Bakunin discordasse da
libertação dos trabalhadores, mas sim de que a hegemonia proletária no Estado não
seria capaz de gerar a liberação humana e que, ainda, entendia que o Estado
gerava, ou sustentava, a sociedade de classes, logo, a sociedade sem Estado era
condição prévia para a sociedade sem classes -- e não o contrário.
Tible, no entanto, poderia ter feito
um esforço mais conceitual do que descritivo no que diz respeito à inversão bakuniniana e suas implicações. E
poderia ter mergulhado com mais profundidade na dicotomia marx-bakuniniana
sobre a sociedade de classes e o Estado. Isso fica claro quando Tible prefere
rebater a crítica de Bakunin ao estatismo colateral do plano de transição
revolucionário de Marx, vejamos nós, pela exposição da falta de um plano de
ação à proposta teórica de Bakunin, o que teria sido comprovado por seus
fracassos práticos -- ou quando procurar explicar a certeza da antevisão
(cruel? auspiciosa?) do anarquista, sobre o que seria a experiência histórica
do “socialismo real”, pelo viés de sua eventual razão em relação “a um certo
marxismo já existente”, e não em relação a conceitos marxianos efetivos. A
crítica ao modo como a polêmica marx-bakuniniana foi pouco enfrentada
consta do próprio posfácio e, convenhamos, é justa.
Quando trata de Clastres, Tible nos
lembra que para o antropólogo francês, o Estado sempre existiu, mas nas sociedades
indígenas existentes, este eraesconjurado por uma série de práticas que
esvaziam o desenvolvimento do poder. Isto é, longe de Engels, que concebeu o
Estado como evolução histórica da divisão do trabalho em As Origens da
Família, da Propriedade Privada e do Trabalho, para Clastres o Estado
estava posto desde sempre, mas práticas como o nomadismo e a relação entre a
tribo e seus guerreiros e chefes, ele restava apenas latente. O que os povos
estudados por Clastres nos apontavam era a possibilidade de esconjurarmos o
Estado aqui-agora. Isso seria possível, pois os povos de Estado, já foram,
algum dia sem Estado, não por falta de evolução, mas pelos agenciamentos
coletivos que produziam, o que estaria à nossa mão aqui-agora -- e, sim, você
há de ter lido algo do gênero, não por acaso, em Deleuze-Guattari.
Mas Marx, em dado momento, já antevia
as sociedades sem Estado existentes hoje como um símbolo do passado (europeu),
mas, sobretudo, como flecha apontando para o comunismo do porvir. Eis o que
seria o casamento (possível) entre a sociedade sem Estado e a sociedade contra
o Estado, atadas por um fio vermelho. Mas Tible perdeu a oportunidade para
adensar algo que ele mesmo suscitou, quando lembrou o comentário de Gustavo
Barbosa sobre o contratualismo em
Hobbes: faltou, entretanto, definir o que seria, ontologicamente, “sociedade”,
ou qual o motivo de naturalizarmos o termo como a própria essência da
coletividade humana; se o próprio Marx via o contrato social como um mecanismo
de expropriação, seria possível haver sociedade sem contrato social?
E poderia haver sociedade -- A Sociedade -- sem haver um Estado para fazer
valer -- à força, se necessário -- tal contrato? Como os selvagens, que em toda
a literatura contratualista não
travaram contrato social algum, poderiam constituir uma forma de sociedade?
São questão que ambos, Marx e
Clastres, não enfrentaram a seu tempo, logo, Tible não teria obrigação, em
tese, de fazê-lo descritivamente em um trabalho acadêmico. Mas poderia ter
adensado a crítica nessa direção. Deleuze e Guattari, eles mesmo, acertaram ao
falar, no Anti-Édipo, no acerto de Marx ao tratar a história como a
história dos cortes e das contingências, mas apontavam que o pensador alemão
errou ao fazer leitura da história como luta de classes -- quando isso pode se
revelar apenas a história desde o advento da burguesia --, o que causava a ilusão
de ótica de ver a burguesia, em algum momento, como realmente revolucionária --
o que implica em desconhecer os próprios descaminhos da revolução passada e,
consequentemente, das revoluções futuras. Por outro lado, no entanto, D&G
esvaziaram isso ao, em Mil Platôs, surgirem com a ideia da existência de
um Estado, ou um fantasma estatal, que percorreria a história do humana. A
própria noção de socius, já no Anti-Édipo, é parte dessa contradição em
termos, uma vez que o pensamento social, ao contrário do que parece, é
eminentemente burguês.
Ainda que Marx e Clastres digam “sociedade”
como expressão de qualquer coletividade humana, o fato de não esmiuçar o
conteúdo específico do termo leva ao desconhecimento dos efeitos dessa
naturalização. Não, os índios não vivem em sociedade por que não partilham um
contrato, isto é, não vivem em regime negocial. O ócio, isto é,
trabalhar para viver e não viver para trabalhar é o que --acima de tudo --
distingue os índios de nós, pobres ricos ocidentais. Os selvagens não travam
sociedades entre si, tampouco vivem sob a égide de A Sociedade -- portanto, do
Estado. A dificuldade de Marx e Clastres em articular contrato social,
sociedade e Estado, possuem desdobramentos importantes. O que por trás da
naturalidade, no sentido de normalidade, da sociedade é algo que poderia ter
sido respondido. Entender a história para além dos termos em que seu deu a luta
na sociedade hegemonizada pela burguesia exige, também, uma genealogia profunda
do contratualismo.
O ponto forte do livro está mesmo no
terceiro -- e último -- capítulo. Copenawa e Marx, separados por dois séculos
-- e um imenso oceano -- de diferença, mas que veem na relação mágica -- e
teológica -- dos homens com seus objetos a chave para a crítica à economia
política e ao capitalismo. Assertiva perfeita de Tible. O liame da relação
entre homem e mercadoria é, precisamente, afetivo, dada pelos efeitos reais de
um discurso imaginário. É precisamente essa liame subjetivo que permitiu a
virada do capitalismo industrial para o capitalismo financeiro e cognitivo. A
mágica devém absoluta, justamente porque os objetos técnicos já eram laterais
antes, até se tornarem quase que completamente obsoletos nos dias atuais: o que
gera valor são conceitos, abstrações, marcas.
E certíssima a crítica de Tible a
Viveiros de Castro, alguém cujo ponto feliz de sua antropologia está em
relacionar a metafísica deleuzo-guattariana -- que é sim marxista -- com uma
pesquisa etnográfica densa -- e Viveiros concorda com o Marx da virada mais do
que gostaria, e poderia admitir, como Tible felizmente demonstra. O que Tible
não adensou, novamente, é que se Viveiros, via D&G, vê bem o erro marxiano
(dar uma demasiada universalidade à história burguesa), por outro lado,
novamente por meio dos dois, repetiram o erro de Marx ao dar, p.ex., uma
existência extra-histórica na História ao Estado (sempre houve Estado), o que
polui o pensamento de neblina na hora de destrinchar, e desmontar, dispositivos
específicos -- os quais estão a serviço da escravidão universal do regime do
Capital.
Por fim, Marx Selvagem, que desemboca em Oswald no final, é uma obra
divertida. Passa por muitos autores, questões e polêmicas caros ao
pensamento-prática da esquerda atual. Mas importante de tudo, é a leitura
correta de Marx presente no livro, ao levantar a bola para onde o pensador
alemão mirava no século 19º, e não para o seu retrovisor, isto é, a própria
tradição majoritária alemã. O Marx maior, felizmente, foi jogado na lata
do lixo da História, primeiro com a queda do Muro de Berlim, depois com a crise
do colaboracionismo de esquerda ao neoliberalismo, agora, mais do que nunca, é
hora de pôr em prática um outro Marx, o que, a nosso ver, é imprescindível.
Hoje, mais do que nunca, é o momento
de bradar: Selvagens do Mundo, Uni-vos!
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