domingo, 8 de dezembro de 2013

Conflicts Forum, Comentário semanal (22-29/11/2013)

6/12/2013, Conflicts Forum
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Acordo nuclear P5+1 em Genebra
Um dos aspectos mais significativos do Acordo de Genebra firmado entre o Irã e o Grupo P5+1 é que aconteceuapesar e contra – os sabidos milhões de dólares gastos pela Arábia Saudita para impedir que acontecesse; e apesar e contra a condenação total do acordo, por Netanyahu e pelo AIPAC. Isso, por si, sugere que as relações com esses dois aliados já passaram por profunda metamorfose e por uma reconfiguração: de fato, parece que a negatividade da resposta (informal) dos sauditas e (formal) de Israel já não influencia tanto; de fato, parece que contribuíram para um notável declínio na influência daqueles aliados em Washington.

É claro que o acordo representa uma virada estratégica – momento de grande potencial, um ponto de conversão: ambos os lados, o Irã e o P5+1 fizeram consideráveis concessões; e obtiveram um acordo provisório. Esse é feito formidável de negociação – se se consideram as vastas forças que se organizaram contra ele. Mas já se percebem, no modo como o acordo provisório está sendo abordado – o modelo do que há pela frente – as falhas que podem levar o acordo ao colapso.

Em certo sentido, há a fragilidade estrutural implantada nele, que é como uma espécie de “vitória” dos “rejeicionistas”, dado que o modelo adotado representa, de certo modo, mais a necessidade dos dois lados para se vacinarem contra demandas dos rejeicionistas, deliberadamente infladas. É, portanto, um modelo que serve melhor aos reais interesses dos rejeicionistas – quer dizer: a capacidade para administrar e alavancar uma nova série de sanções – do que aos interesses mais amplos dos EUA.

Como o professor Stephen Walt sugeriu, há enorme disparidade entre o objetivo suposto das negociações (o programa nuclear iraniano) e o que foi realmente negociado:

Stephen Walt
(...) a verdadeira questão é o equilíbrio de longo prazo do poder no Golfo Persa e Oriente Médio. O Irã tem, de longe, muito mais poder potencial que qualquer outro estado na região: maior população, classe média sofisticada, letrada e bem-educada; algumas boas universidades e petróleo e gás abundantes para alimentar (se usados com inteligência) o desenvolvimento econômico (...). Israel e Arábia Saudita não pensam que o Irã despertará, um belo dia, e começará a lançar ogivas nucleares sobre os vizinhos, e provavelmente sequer pensam que  Irã tentaria o ato sem sentido de alguma chantagem nuclear. Nada disso. O que eles temem é que um Irã poderoso venha, com o tempo, a exercer influência muito maior na região, exatamente como fazem as grandes potências. Da perspectiva de Telavive e Riad, o objeto é tentar manter o Irã numa jaula pelo maior tempo possível – isolado, sem amigos e artificialmente enfraquecido.

Na verdade, todos os elementos pelos quais é possível “assegurar” e vigiar o enriquecimento de urânio no Irã para finalidades pacíficas já estão bem claros há uma década (desde 2004, quando o Irã os propôs). Claro que é possível conceber algum sistema de transparência, que demarque diferenças mais claras entre enriquecimento militarizado e enriquecimento de baixa concentração para combustível de reatores industriais. De fato, nem é difícil. E não há dúvidas de que o Tratado de Não Proliferação, no artigo IV, afirma e assegura o inalienável direito do Irã ao ciclo do combustível.

Mas o espectro que ronda a questão nuclear iraniana é o que disse Albert Wohlstetter, que era imensamente influente nos EUA nos anos 1960s e 1970s: que o Tratado de Não Proliferação carregaria uma falha fatal. Atenção: ele não disse que os estados não teriam direito ao ciclo do combustível; disse apenas que o Tratado tinha uma falha: estados nos quais os EUA não confiassem jamais poderiam ter o direito de enriquecer... porque não mereceriam nenhuma confiança (sob o duvidoso argumento de que o enriquecimento pacífico seria, materialmente, o mesmo enriquecimento para produzir armas).

Desde então, os EUA e três aliados muito próximos vivem a repetir que o Tratado de Não Proliferação não asseguraria o direito ao enriquecimento – o que, de fato, esvazia a barganha essencial que há no núcleo do TNP: que estados nuclearmente desarmados abririam mão de vir a ter armas nucleares, em troca do acesso garantido às tecnologias do ciclo completo. (E os estados nuclearmente já armados, por sua vez, abririam mão de suas bombas atômicas – parte do “trato” que ainda não foi cumprida).

Assim, grande parte da “dança” em Genebra permaneceu em torno na velha conversa de se o Irã tem ou não o “direito” ao enriquecimento – com os dois lados empenhados em demonstrar que sua específica interpretação do TNP teria fundamentos no próprio tratado. As discussões, portanto, sequer tocaram na questão mais fundamental que ali se disputava: a questão do poder no Oriente Médio. Os medos de sauditas e israelenses transcendem o programa nuclear e a possibilidade de o Irã adquirir alguma “capacidade decisiva” (todos os estados que enriquecem urânio a 2% têm, em teoria, capacidade para enriquecê-lo a 20% e, portanto, têm “capacidade decisiva” teórica).

Jeremy Shapiro
Como observou Jeremy Shapiro, ex-funcionário do Departamento de Estado, o que realmente mete medo nos sauditas é “o próprio Irã” – como uma “mini-China” potencial na região; como modelo de governança islâmica; e, sobretudo, pelo efeito potencial do sucesso do “xiismo revolucionário” sobre a permanência da família reinante saudita no poder. Nesse contexto, as sanções internacionais contra o regime iraniano, que restringem as ambições e a capacidade do Irã para projetar o próprio poder, passaram a ser pilar essencial da política exterior dos sauditas. Desse ponto de vista, nenhum acordo nuclear reabilita, mas qualquer acordo liberta, um perigoso rival regional, para que perturbe e ameace o reino saudita.

Por isso o segundo aspecto de Genebra foi a questão das sanções – não porque alguma sanção tenha ajudado a desmontar o programa nuclear do Irã (não aconteceu). O Irã já é – em qualquer acepção do termo – estado nuclear hoje sob sanções. As sanções foram assunto em Genebra, porque foram as sanções internacionais, como ferramenta de contenção no longo prazo, que permitiram que Israel e a Arábia Saudita dominassem a região.

O que preocupa é que essa estrutura estreita, de exigir que o Irã prove suas “não intenções” no que tenha a ver com armas atômicas, com todo o ocidente dedicado a manter precisamente as sanções, contribui para o tipo de estrutura rígida que se abre, ela mesma, para os lobbies maliciosos em torno de várias “preocupações” – exatamente como já se viu no Iraque – cujo único objetivo é manter as sanções. O ponto frágil é sempre a soberania nacional. E os que se opõem ao acordo saberão como apertar esse “botão” – gerando e divulgando “questões” que só podem ser resolvidas mediante intrusões sensíveis na soberania – como no Iraque.

Essa falha – que permite nova onda de demandas e as consequentes sanções quando o Irã não as aceitar – foi efetivamente implantada no processo quando o grupo UE3 exigiu que o Irã provasse suas intenções – logo depois do fracasso das conversações de Paris.

O objetivo do Irã em Genebra era insistir que o ocidente especificasse o impasse. Se o Irã satisfizesse todas as “questões nucleares”, seria afinal autorizado a assumir o lugar que lhe cabe, como nação populosa, bem-educada, generosamente dotada de muito petróleo e gás e poderosa?

Aí, é claro, está a substância da negociação – por mais que a linguagem diplomática venha envolta em complexas tecnicalidades do ciclo de produção de combustível nuclear. E, quanto a isso, há muito com o que se preocupar. Como observou Gareth Porter, respeitado analista e comentarista de questões de segurança nacional e nucleares:

Gareth Porter
Mas passadas apenas algumas horas do acordo, já há sinais, vindos de altos funcionários, de que o governo de Barack Obama não está plenamente comprometido com a conclusão de um pacto final, pelo qual as sanções econômicas seriam completamente retiradas. Ao que parece, o governo Obama desenvolveu reservas sobre um acordo “final”, apesar de as concessões feitas pelo governo do presidente Hassan Rouhani terem sido muito maiores do que se previa há poucos meses.

[Ironicamente] os movimentos do governo Rouhani para tranquilizar o ocidente despertaram esperanças entre altos servidores do governo Obama de que os EUA possam alcançar seus objetivos mínimos, de reduzir as capacidades do Irã, sem ter de usar as cartas mais altas – sanções duríssimas contra a exportação do petróleo e o setor bancário iraniano.

Os sinais de incerteza quanto ao compromisso dos EUA para um “acordo final” apareceram nos bastidores de um briefing para a imprensa, de altos funcionários não identificados, em Genebra, em teleconferência, tarde da noite do sábado (23/11/2013). Aqueles funcionários sugeriram repetidas vezes que havia dúvida sobre “se” aconteceria algum “acordo final”, muito mais do que sobre como chegar a um acordo.

Um mesmo funcionário, na introdução, disse que:

Em termos do “acordo final”, não reconhecemos qualquer direito de o Irã enriquecer urânio.

Outras três vezes, durante o briefing, aqueles funcionários não identificados referiram-se à negociação da “solução ampla” delineada no acordo alcançado na manhã do domingo como questão em discussão, não como objetivo da política dos EUA.

Veremos se podemos alcançar um acordo final que permita ao Irã ter energia nuclear pacífica  – disse um dos funcionários.

É claro que esses comentários visavam, pelo menos em parte, a vacinar o governo contra as já conhecidas acusações de “afrouxamento”. Visavam a suavizar críticos domésticos, mais do refletiam o que se passava no canal direto, e há indicações bem claras de que o Irã, sim, ofereceu algum tipo de garantia de futuro enriquecimento exclusivamente baixo. Mas ainda assim o tipo de briefing distribuído de Washington sem dúvida terá efeito adverso sobre os iranianos, que desconfiam profundamente da boa fé dos EUA nessas conversações (temendo uma repetição de 2004/5, quando o grupo EU3, afinal, revelou que não abriria mão do enriquecimento zero).

Mas, mais grave que isso, esse tipo de briefing é precisamente o que dissemos antes, sobre o governo dos EUA correr o risco de trancar-se defensivamente num modelo que não toca nas verdadeiras questões, e manter-se preso a um modelo técnico nuclear rígido, que deixa o próprio governo muito mais exposto à manipulação pelos que não querem acordo algum – como já se viu no modelo do Iraque. Aí, precisamente, os que se opõem a qualquer acordo obtêm sua pequena “vitória”.

Albert Wohlstetter
A questão nuclear técnica é um dos lados da equação; não pode ser ignorada. Mas a equação tem de ser equilibrada por uma ótica mais ampla que considere o futuro papel do Irã, de potência regional histórica, e considere as áreas nas quais o ocidente e o Irã têm interesses partilhados  (há muitas). Obama terá de pôr mais mãos à massa nessa negociação (não é seu estilo usual), se quiser impedir que os EUA deslizem de volta ao modelo padrão estéril das doutrinas de Wohlstetter dos anos 60s. Obama tem de encontrar a via para tratar da questão principal – o poder no Oriente Médio – e impedir que as negociações fiquem presas em questões técnicas. Sem alguma compreensão sobre o futuro da região, o resultado técnico tampouco será alcançado: o Irã optará por pular fora.

É claro que os EUA visam a um novo “equilíbrio” no Oriente Médio, no qual nenhum país receberá apoio ilimitado e sem restrições e influenciará a política dos EUA. Os EUA têm planos para afastar-se. Os EUA estão-se confinando a objetivos limitados e limitarão seus compromissos rigorosamente a esses objetivos atenuados. Os EUA sugerem que Israel e Arábia Saudita terão agora de compor-se com a nova doutrina: os EUA mantêm seu apoio a Israel e Arábia Saudita, mas só no contexto de um emergente novo equilíbrio do poder regional, modelado particularmente entre os dos polos regionais, Irã e Arábia Saudita. Funcionários dos EUA reconhecem que Arábia Saudita e Israel não considerarão perfeito o novo quadro, nem conforme aos seus desejos (acostumados, como estão, ao apoio incondicional dos EUA), mas os mesmos funcionários dizem que esses estados têm de habituar-se; afinal... a quem mais poderão recorrer?

Se esse é o motivo não declarado por trás dos comentários de autoridades norte-americanas sobre acordo final que não alivie nas sanções sobre o Irã (visando talvez a dar alguma força a uma Arábia Saudita enfraquecida), nesse caso é preciso ver com alguma simpatia a “obsessão” dos sauditas, que se agarram em desespero à “velha” política norte-americana. Será que alguém realmente supõe que a nova posição dos EUA seja viável, sob as condições de uma região que se desintegra e fraciona? A região está em situação de extrema volatilidade e total desarranjo. A possibilidade de realmente conter e administrar as dinâmicas regionais está fora do alcance de qualquer estado ou estrutura de equilíbrio-de-poder. Os eventos atropelarão os centros do poder. E, nesse contexto, os sauditas têm bons motivos para sentir medo.




[*] Conflicts Fórum visa mudar a opinião ocidental em direção a uma compreensão mais profunda, menos rígida, linear e compartimentada do Islã e do Oriente Médio. Faz isso por olhar para as causas por trás narrativas contrastantes: observando como as estruturas de linguagem e interpretações que são projetadas para eventos de um modelo de expectativas anteriores discretamente determinam a forma como pensamos - atravessando as pré-suposições, premissas ocultas e até mesmo metafísicas enterradas que se escondem por trás de certas narrativas, desafiando interpretações ocidentais de “extremismo” e as políticas resultantes; e por trabalhar com grupos políticos, movimentos e estados para abrir um novo pensamento sobre os potenciais políticos no mundo.

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