6/12/2013, Conflicts Forum
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Acordo nuclear P5+1 em Genebra |
Um dos
aspectos mais significativos do Acordo de Genebra firmado entre o Irã e o Grupo
P5+1 é que aconteceu – apesar e contra – os sabidos milhões de
dólares gastos pela Arábia Saudita para impedir que acontecesse; e apesar e
contra a condenação total do acordo, por Netanyahu e pelo AIPAC. Isso,
por si, sugere que as relações com esses dois aliados já passaram por profunda
metamorfose e por uma reconfiguração: de fato, parece que a negatividade da
resposta (informal) dos sauditas e (formal)
de Israel já não influencia tanto; de fato, parece que contribuíram para um notável
declínio na influência daqueles aliados em Washington.
É claro que
o acordo representa uma virada estratégica – momento de grande potencial, um
ponto de conversão: ambos os lados, o Irã e o P5+1 fizeram consideráveis
concessões; e obtiveram um acordo provisório. Esse é feito formidável de
negociação – se se consideram as vastas forças que se organizaram
contra ele. Mas já se percebem,
no modo como o acordo provisório está sendo abordado – o modelo do que há pela frente
– as falhas que podem levar o acordo ao colapso.
Em certo
sentido, há a fragilidade estrutural implantada
nele, que é como uma espécie de “vitória” dos “rejeicionistas”, dado
que o modelo adotado representa, de certo modo, mais a necessidade dos dois
lados para se vacinarem contra demandas dos rejeicionistas, deliberadamente
infladas. É, portanto, um modelo que serve melhor aos reais interesses dos
rejeicionistas – quer dizer: a capacidade para administrar e alavancar uma nova
série de sanções – do que aos interesses mais amplos dos EUA.
Como
o professor Stephen Walt sugeriu, há enorme disparidade entre o
objetivo suposto das negociações (o programa nuclear iraniano) e o que foi
realmente negociado:
Stephen Walt |
(...) a verdadeira questão é o equilíbrio de longo
prazo do poder no Golfo Persa e Oriente Médio. O Irã tem, de longe, muito mais
poder potencial que qualquer outro estado na região: maior população, classe
média sofisticada, letrada e bem-educada; algumas boas universidades e petróleo
e gás abundantes para alimentar (se usados com inteligência) o desenvolvimento
econômico (...). Israel e Arábia Saudita não pensam que o Irã despertará, um
belo dia, e começará a lançar ogivas nucleares sobre os vizinhos, e provavelmente
sequer pensam que Irã tentaria o ato sem
sentido de alguma chantagem nuclear. Nada disso. O que eles temem é que um Irã
poderoso venha, com o tempo, a exercer influência muito maior na região,
exatamente como fazem as grandes potências. Da perspectiva de Telavive e Riad,
o objeto é tentar manter o Irã numa jaula pelo maior tempo possível – isolado,
sem amigos e artificialmente enfraquecido.
Na verdade,
todos os elementos pelos quais é possível “assegurar” e vigiar o enriquecimento
de urânio no Irã para finalidades pacíficas já estão bem claros há uma década
(desde 2004, quando o Irã os propôs). Claro que é possível conceber algum
sistema de transparência, que demarque diferenças mais claras entre
enriquecimento militarizado e enriquecimento de baixa concentração para
combustível de reatores industriais. De fato, nem é difícil. E não há dúvidas
de que o Tratado
de Não Proliferação, no artigo IV, afirma e assegura o inalienável
direito do Irã ao ciclo do combustível.
Mas o
espectro que ronda a questão nuclear iraniana é o que disse Albert Wohlstetter,
que era imensamente influente nos EUA nos anos 1960s e 1970s: que o Tratado de
Não Proliferação carregaria uma falha fatal. Atenção: ele não disse que
os estados não teriam direito ao ciclo do combustível; disse apenas que o
Tratado tinha uma falha: estados nos quais os EUA não confiassem jamais
poderiam ter o direito de enriquecer... porque não mereceriam nenhuma
confiança (sob o duvidoso argumento de que o enriquecimento pacífico seria,
materialmente, o mesmo enriquecimento para produzir armas).
Desde
então, os EUA e três aliados muito próximos vivem a repetir que o Tratado de
Não Proliferação não asseguraria o direito ao enriquecimento – o que, de fato,
esvazia a barganha essencial que há no núcleo do TNP: que estados nuclearmente
desarmados abririam mão de vir a ter armas nucleares, em troca do acesso
garantido às tecnologias do ciclo completo. (E os estados nuclearmente já
armados, por sua vez, abririam mão de suas bombas atômicas – parte do “trato”
que ainda não foi cumprida).
Assim,
grande parte da “dança” em Genebra permaneceu em torno na velha conversa de se
o Irã tem ou não o “direito” ao enriquecimento – com os dois lados empenhados
em demonstrar que sua específica interpretação do TNP teria fundamentos no
próprio tratado. As discussões, portanto, sequer tocaram na questão mais
fundamental que ali se disputava: a questão do poder no Oriente Médio. Os
medos de sauditas e israelenses transcendem o programa nuclear e a possibilidade de o
Irã adquirir alguma “capacidade decisiva” (todos os estados que enriquecem
urânio a 2% têm, em teoria, capacidade para enriquecê-lo a 20% e, portanto, têm
“capacidade decisiva” teórica).
Jeremy Shapiro |
Como
observou Jeremy Shapiro, ex-funcionário do Departamento de Estado, o
que realmente mete medo nos sauditas é “o próprio Irã” – como uma “mini-China”
potencial na região; como modelo de governança islâmica; e, sobretudo, pelo efeito
potencial do sucesso do “xiismo revolucionário” sobre a permanência da família
reinante saudita no poder. Nesse contexto, as sanções internacionais contra o
regime iraniano, que restringem as ambições e a capacidade do Irã para projetar
o próprio poder, passaram a ser pilar essencial da política exterior dos
sauditas. Desse ponto de vista, nenhum acordo nuclear reabilita, mas qualquer
acordo liberta, um perigoso rival regional, para que perturbe e ameace o reino
saudita.
Por isso o
segundo aspecto de Genebra foi a questão das sanções – não porque alguma sanção
tenha ajudado a desmontar o programa nuclear do Irã (não aconteceu). O Irã já é
– em qualquer acepção do termo – estado nuclear hoje sob sanções. As sanções
foram assunto em Genebra, porque foram as sanções internacionais, como
ferramenta de contenção no longo prazo, que permitiram que Israel e a Arábia
Saudita dominassem a região.
O que
preocupa é que essa estrutura estreita, de exigir que o Irã prove suas “não
intenções” no que tenha a ver com armas atômicas, com todo o ocidente dedicado
a manter precisamente as sanções, contribui para o tipo de estrutura rígida que
se abre, ela mesma, para os lobbies maliciosos em torno de várias “preocupações”
– exatamente como já se viu no Iraque – cujo único objetivo é manter as
sanções. O ponto frágil é sempre a soberania nacional. E os que se opõem ao
acordo saberão como apertar esse “botão” – gerando e divulgando “questões” que
só podem ser resolvidas mediante intrusões sensíveis na soberania – como no
Iraque.
Essa falha
– que permite nova onda de demandas e as consequentes sanções quando o Irã não
as aceitar – foi efetivamente implantada no processo quando o grupo UE3 exigiu
que o Irã provasse suas intenções – logo depois do fracasso das
conversações de Paris.
O objetivo
do Irã em Genebra era insistir que o ocidente especificasse o impasse. Se o Irã
satisfizesse todas as “questões nucleares”, seria afinal autorizado a assumir o
lugar que lhe cabe, como nação populosa, bem-educada, generosamente dotada de
muito petróleo e gás e poderosa?
Aí, é
claro, está a substância da negociação – por mais que a linguagem diplomática
venha envolta em complexas tecnicalidades do ciclo de produção de combustível
nuclear. E, quanto a isso, há muito com o que se preocupar. Como observou
Gareth Porter, respeitado analista e comentarista de questões de
segurança nacional e nucleares:
Gareth Porter |
Mas passadas apenas algumas horas do acordo,
já há sinais, vindos de altos funcionários, de que o governo de Barack Obama
não está plenamente comprometido com a conclusão de um pacto final, pelo qual
as sanções econômicas seriam completamente retiradas. Ao que parece, o governo
Obama desenvolveu reservas sobre um acordo “final”, apesar de as concessões
feitas pelo governo do presidente Hassan Rouhani terem sido muito maiores do
que se previa há poucos meses.
[Ironicamente]
os movimentos do governo Rouhani para tranquilizar o ocidente despertaram
esperanças entre altos servidores do governo Obama de que os EUA possam
alcançar seus objetivos mínimos, de reduzir as capacidades do Irã, sem ter de
usar as cartas mais altas – sanções duríssimas contra a exportação do petróleo
e o setor bancário iraniano.
Os sinais
de incerteza quanto ao compromisso dos EUA para um “acordo final” apareceram
nos bastidores de um briefing para a imprensa, de altos funcionários não
identificados, em Genebra, em teleconferência, tarde da noite do sábado
(23/11/2013). Aqueles funcionários sugeriram repetidas vezes que havia dúvida
sobre “se” aconteceria algum “acordo final”, muito mais do que sobre como
chegar a um acordo.
Um mesmo
funcionário, na introdução, disse que:
Em termos do “acordo final”, não reconhecemos
qualquer direito de o Irã enriquecer urânio.
Outras três
vezes, durante o briefing, aqueles funcionários não identificados
referiram-se à negociação da “solução ampla” delineada no acordo alcançado na
manhã do domingo como questão em discussão, não como objetivo da política dos
EUA.
Veremos se podemos alcançar um acordo final
que permita ao Irã ter energia nuclear pacífica – disse um dos funcionários.
É claro que
esses comentários visavam, pelo menos em parte, a vacinar o governo contra as
já conhecidas acusações de “afrouxamento”. Visavam a suavizar críticos
domésticos, mais do refletiam o que se passava no canal direto, e há indicações
bem claras de que o Irã, sim, ofereceu algum tipo de garantia de futuro
enriquecimento exclusivamente baixo. Mas ainda assim o tipo de briefing distribuído
de Washington sem dúvida terá efeito adverso sobre os iranianos, que desconfiam
profundamente da boa fé dos EUA nessas conversações
(temendo uma repetição de 2004/5, quando o grupo EU3, afinal, revelou que não
abriria mão do enriquecimento zero).
Mas, mais
grave que isso, esse tipo de briefing é precisamente o que dissemos
antes, sobre o governo dos EUA correr o risco de trancar-se defensivamente num
modelo que não toca nas verdadeiras questões, e manter-se preso a um modelo
técnico nuclear rígido, que deixa o próprio governo muito mais exposto à
manipulação pelos que não querem acordo algum – como já se viu no modelo do
Iraque. Aí, precisamente, os que se opõem a qualquer acordo obtêm sua pequena “vitória”.
Albert Wohlstetter |
A questão
nuclear técnica é um dos lados da equação; não pode ser ignorada. Mas a equação
tem de ser equilibrada por uma ótica mais ampla que considere o futuro papel do
Irã, de potência regional histórica, e considere as áreas nas quais o ocidente
e o Irã têm interesses partilhados (há
muitas). Obama terá de pôr mais mãos à massa nessa negociação (não é seu estilo
usual), se quiser impedir que os EUA deslizem de volta ao modelo padrão estéril
das doutrinas de Wohlstetter dos anos 60s. Obama tem de encontrar a via para
tratar da questão principal – o poder no Oriente Médio – e impedir que as
negociações fiquem presas em questões técnicas. Sem alguma compreensão sobre o
futuro da região, o resultado técnico tampouco será alcançado: o Irã optará por
pular fora.
É claro que
os EUA visam a um novo “equilíbrio” no Oriente Médio, no qual nenhum país
receberá apoio ilimitado e sem restrições e influenciará a política dos EUA. Os
EUA têm planos para afastar-se. Os EUA estão-se confinando a objetivos
limitados e limitarão seus compromissos rigorosamente a esses objetivos
atenuados. Os EUA sugerem que Israel e Arábia Saudita terão agora de compor-se
com a nova doutrina: os EUA mantêm seu apoio a Israel e Arábia Saudita, mas só
no contexto de um emergente novo equilíbrio do poder regional, modelado
particularmente entre os dos polos regionais, Irã e Arábia Saudita.
Funcionários dos EUA reconhecem que Arábia Saudita e Israel não considerarão
perfeito o novo quadro, nem conforme aos seus desejos (acostumados, como estão,
ao apoio incondicional dos EUA), mas os mesmos funcionários dizem que esses
estados têm de habituar-se; afinal... a quem mais poderão recorrer?
Se esse é o
motivo não declarado por trás dos comentários de autoridades norte-americanas
sobre acordo final que não alivie nas sanções sobre o Irã (visando talvez a dar
alguma força a uma Arábia Saudita enfraquecida), nesse caso é preciso ver com
alguma simpatia a “obsessão” dos sauditas, que se agarram em desespero à “velha”
política norte-americana. Será que alguém realmente supõe que a nova posição
dos EUA seja viável, sob as condições de uma região que se desintegra e
fraciona? A região está em situação de extrema volatilidade e total desarranjo.
A possibilidade de realmente conter e administrar as dinâmicas regionais está
fora do alcance de qualquer estado ou estrutura de equilíbrio-de-poder. Os
eventos atropelarão os centros do poder. E, nesse contexto, os sauditas têm
bons motivos para sentir medo.
[*] Conflicts Fórum visa mudar a opinião ocidental em
direção a uma compreensão mais profunda, menos rígida, linear e compartimentada
do Islã e do Oriente Médio. Faz isso por olhar para as causas por trás narrativas
contrastantes: observando como as estruturas de linguagem e interpretações que
são projetadas para eventos de um modelo de expectativas anteriores
discretamente determinam a forma como pensamos - atravessando as
pré-suposições, premissas ocultas e até mesmo metafísicas enterradas que se
escondem por trás de certas narrativas, desafiando interpretações ocidentais de
“extremismo” e as políticas resultantes; e por trabalhar com grupos políticos,
movimentos e estados para abrir um novo pensamento sobre os potenciais
políticos no mundo.
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