5/1/2014, [*] Chris Hedges, Truthdig
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Se os
norte-americanos não desmantelarmos imediatamente o aparelho de segurança e
vigilância, não haverá jornalismo investigativo ou supervisão judicial que
detenha o abuso de poder. Não haverá contraditório organizado. Não haverá
pensamento independente. A crítica, por morna que seja, será tratada como ato
de subversão. O aparelho de segurança amortalhará o corpo político como mofo
negro, até que o mais banal e ridículo seja convertido em questão de segurança
nacional.
Os EUA
vivemos nossos últimos estertores como democracia. A intrusão do estado na vida
de cada um e todos, e a obliteração da privacidade já são agora fatos. O
desafio para todos nós – dos desafios finais, suspeito eu – é nos levantarmos
ultrajados e pôr fim ao assalto aos nossos direitos à liberdade e à livre
expressão. Se não o fizermos, nos veremos convertidos numa nação de cativos.
Os debates
públicos sobre medidas do governo para impedir o terrorismo, o assassinato de
reputação contra Edward Snowden e seus apoiadores, as garantias, pelos
poderosos, de que ninguém estaria dando mau uso à quantidade massiva de dados
coletados e armazenados das nossas comunicações eletrônicas não visam ao alvo
alegado.
Qualquer
governo que tenha capacidade para monitorar seus cidadãos; qualquer estado
tenha capacidade para descartar o debate público sobre fatos; qualquer estado
que tenha ferramentas suficientes para calar instantaneamente a oposição
discrepante é estado totalitário.
Hoje, o
estado-empresa [orig. corporate state] norte-americano pode talvez não
estar usando todo esse poder. Mas o usará, se se sentir ameaçado por uma
população tornada impotente pela corrupção entre os próprios cidadãos, pela
incapacidade para organizar-se para agir, ou por repressão galopante. No
instante em que surja um movimento popular – e algum surgirá – que realmente
confronte nossos patrões na imprensa-empresa ou no estado-empresa, o venal
sistema-empresa norte-americano de vigilância total será posto a trabalhar a
pleno vapor.
O mal mais
radical, como Hannah Arendt apontou, é o sistema político que efetivamente
esmaga seus oponentes marginalizados e abusados e, pelo medo e pela obliteração
da privacidade, incapacita todos os demais. O sistema norte-americano de
vigilância de massa é a máquina pela qual esse mal radical será ativado.
Se os
norte-americanos não desmantelarmos imediatamente o aparelho de segurança e
vigilância, não haverá jornalismo investigativo ou supervisão judicial que
detenha o abuso de poder. Não haverá o contraditório organizado. Não haverá
pensamento independente. A crítica, por morna que seja, será tratada como atos
de subversão. O aparelho de segurança amortalhará o corpo político como um mofo
negro, até que o mais banal e ridículo seja convertido em questão de segurança
nacional.
Conheci mal
dessa qualidade, quando trabalhei como repórter no estado-Stasi (al. no
orig., “Ministério da Segurança do Estado”) da Alemanha Oriental. Era seguido
por homens de cabelo cortado à militar, metidos em jaquetas de couro, que eu
presumia que fossem agentes do Stasi, que eram apresentados como “escudo
e espada” da nação. As pessoas que eu entrevistava eram visitadas por agentes
do Stasi, imediatamente depois de eu sair da casa delas. Meu telefone
era “grampeado”. Alguns dos que trabalhavam comigo eram pressionados para
tornar-se informantes. O medo descia como gelo duro, sobre cada conversa.
O Stasi
não criou massivos campos de morte e gulags. Não precisou. O Stasi,
com rede de dois milhões de informantes, numa população de 17 milhões, estava
em todos os cantos. Havia 102 mil funcionários da polícia secreta que
trabalhavam em tempo integral para monitorar a população – um, para cada 166
alemães do leste. Os nazistas quebraram ossos; o Stasi quebrou almas. O
governo da Alemanha Oriental foi pioneiro da “desconstrução
psicológica” que os
torturadores e interrogadores nos buracos negros da CIA pelo mundo, e dentro do
sistema prisional norte-americano, elevaram à mais aterrorizante perfeição.
O objetivo
da vigilância total, como Arendt escreveu em Origens do
Totalitarismo, não é, no fim, descobrir crimes, “mas estar a
postos, quando o governo decide prender uma dada categoria da população.”
E porque os
e-mails, as conversas telefônicas, as pesquisas na Web e os
deslocamentos geográficos são gravados e armazenados para sempre nos bancos de
dados do governo dos EUA, haverá sempre “provas” em quantidade suficiente para
nos encarcerar, caso o estado considere necessário. A informação espera, como
um vírus mortal, nos cofres do governo, para ser usada contra nós. Não importa
o quanto a informação seja trivial ou inocente. Em estados totalitários, a
justiça, como a verdade, é irrelevante.
O objetivo
de estados totalitários eficientes, como George Orwell compreendeu, é criar um
clima no qual as pessoas não pensem em rebelar-se, um clima no qual a tortura e
a matança praticadas pelo governo são usadas só contra um punhado de renegados
inadministráveis. O estado totalitário obtém esse controle, Arendt escreveu,
mediante o esmagamento sistemático da espontaneidade humana e, por extensão, da
liberdade humana. Espalha o medo incansavelmente, para manter a população
traumatizada e imobilizada. Converte os tribunais, como os corpos legislativos,
em mecanismos para legalizar os crimes do estado [e os crimes das classes e grupos de força
dominantes, como os crimes da imprensa-empresa (NTs)].
O
estado-empresa norte-americano, no caso dos EUA, usou a lei para
silenciosamente abolir a 4ª e a 5ª Emendas da Constituição, estabelecidas para
nos proteger contra intrusão do governo-empresa em nossa vida privada, sem
mandado judicial. A perda da representação e da proteção judicial e política,
parte do coup d’état engendrado pelo estado-empresa, implica que não
temos nem voz nem proteção legal contra os abusos do poder. A recente sentença
judicial que apoia e legaliza a espionagem pela Agência de Segurança Nacional
dos EUA, emitida pelo Juiz Distrital dos EUA, William H. Pauley III, é parte de
uma longa e vergonhosa lista de sentenças e decisões judiciais que repetidas
vezes sacrificaram nossos mais caros direitos constitucionais, no altar da
segurança nacional, desde os ataques de 11/9.
Juiz Distrital dos EUA, William H. Pauley III |
Os
tribunais e corpos legislativos do estado-empresa invertem agora,
rotineiramente, nossos mais básicos direitos, para justificar a
pilhagem-empresa e a repressão-empresa. Declaram que doações secretas massivas
para campanhas eleitorais – que é uma forma de legalizar a propina – são ações
protegidas pela 1ª Emenda. Definem a empresa-lobby – mediante a qual
empresas privadas fazem chover dinheiro sobre funcionários eleitos e escrevem
nossas leis – como direito do povo, de agir como governo. E podemos, conforme
as leis norte-americanas, ser torturados ou assassinados ou presos por tempo
indefinido pelos militares; e podemos não receber o devido processo legal; e
podemos ser espionados sem mandado judicial.
Cortesãos
obsequiosos, servis, que se apresentam como jornalistas, santificam o poder da
empresa e do estado-empresa e amplificam suas mentiras – a rede MSNBC faz isso tão caninamente quanto a
rede Fox News – ao mesmo tempo em que
enchem nossa cabeça com a imbecilidade das fofocas sobre “celebridades” e “notícias”
que nem notícia são.
Nossas “polêmicas”,
que permitem que políticos e jornalistas de futrica falem sem parar sobre
questões que nem questões são, mascaram um sistema político que deixou de
funcionar. História, arte, filosofia, investigação intelectual, nossas lutas
sociais e individuais passadas, por justiça; o próprio mundo das ideias e da
cultura, com a compreensão do que significa viver e participar numa democracia
funcional, foram jogados nos buracos negros do que se deve esquecer, apagar.
Sheldon Wolin |
O filósofo
político Sheldon Wolin, em seu livro indispensável, essencial, Democracy
Incorporated” [“Democracia-empresa”, sem edição no Brasil,
“esgotado no fornecedor”, cf. webpage
da Livraria Cultura (NTs)] chama o sistema de governo-empresa
[orig. corporate governance] nos EUA, de “totalitarismo invertido”, que
representa “a nova era de política-empresa e de desmobilização política da
cidadania”.
O
totalitarismo da política-empresa difere das formas clássicas do totalitarismo,
que giram em torno de um líder carismático ou demagogo; sua expressão é o
anonimato do estado-empresa [orig. “the
anonymity of the corporate state” (NTs)]. As forças da empresa [orig. corporate
forces] ativas por trás do estado-empresa inverteram o totalitarismo, para
não substituir estruturas decadentes, como fazem os movimentos totalitários
clássicos, por novas estruturas.
Em vez
disso, fingem honrar a política eleitoral, a liberdade de manifestação e a
imprensa democrática, o direito à privacidade e as garantias legais.
Mas
manipulam a política eleitoral de tal modo, corrompem-na de tal modo, tão
completamente – como também corrompem juízes, tribunais, a imprensa e todas as alavancas
essencial do poder – que tornam impossível a genuína participação democrática
das massas [isso
está para acontecer também aqui no Brasil com a USURPAÇÃO pelo Poder Judiciário
de prerrogativas dos Poderes Executivos e Legislativos (Nrc)].
A
Constituição dos EUA não foi reescrita, mas já foi capada, nas interpretações
que lhe dão juízes e corpos legislativos. E cá ficamos, com uma frágil capa
democrática e um duro núcleo totalitário.
A âncora
desse totalitarismo-empresa são os sistemas norte-americanos de segurança
interna, que nada e ninguém supervisiona ou controla.
Nossos
governantes totalitários-empresa se autoenganam, com tanta frequência quanto
enganam o público. Política, para eles, é pouco mais que RP (Relações
Públicas). Contam-se mentiras, não para obter algum resultado discernível de
política pública, mas para proteger a imagem do governante e do governo dos
EUA. Essas mentiras tornaram-se uma grotesca modalidade de patriotismo.
A
capacidade do governo dos EUA, mediante vigilância total, para impedir qualquer
investigação externa sobre o poder, engendra apavorante esclerose intelectual e
moral, que se dissemina no interior da elite governante.
Noções
absurdas, como a de implantar alguma “democracia” em Bagdá pela força, para que
essa “democracia” se espalhasse pela região, ou a ideia de que os EUA poderiam
aterrorizar o Islã radical no Oriente Médio para forçá-lo à submissão, já não
são mantidas sob equilíbrio pela ação da realidade ou pela experiência ou por
discussão social racional baseada em fatos. Dados e fatos que não se encaixem
nas teorias-fantasias-alucinações das elites políticas norte-americanas, dos
generais, dos gerentes do aparelho de inteligência são ignorados e ocultados
para que os cidadãos não os vejam. A capacidade dos cidadãos para tomar medidas
autocorretivas é frustrada, para todos os efeitos. E no final, como em todos os
sistemas totalitários, os cidadãos norte-americanos tornam-se vítimas da
loucura do governo norte-americano, de mentiras monstruosas, de corrupção avassaladora
e do terror de estado.
Paul Celan |
O poeta
romeno Paul Celan capturou a lenta ingestão de um veneno ideológico – no caso
dele, o fascismo – em seu poema “Fuga da Morte” [1]:
Leite negro da madrugada nós o bebemos de noite
nós o bebemos ao meio-dia e de manhã
nós o bebemos de noite nós o bebemos bebemos
cavamos um túmulo nos ares lá não se jaz
apertado
Nós, os
norte-americanos, como em todos os estados totalitários emergentes, fomos
mentalmente inseminados por uma amnésia histórica cuidadosamente orquestrada;
uma imbecilidade induzida pelo estado-empresa norte-americano. Cada dia menos
nos recordamos do que seja ser livre. E porque esquecemos, não reagimos com a
ferocidade apropriada quando afinal toma-se conhecimento de que nossa liberdade
nos foi roubada. As estruturas do estado-empresa têm de ser derrubadas. Seu
aparato de segurança tem de ser destruído. E os que pregam e defendem o totalitarismo-empresa
– incluídos aí os líderes dos dois principais partidos dos EUA, os fátuos
acadêmicos norte-americanos, jornais, televisões, imprensa-empresa e
jornalistas-empresa corruptos – têm de ser expulsos dos templos do poder.
Protestos
em massa, nas ruas, e prolongada desobediência civil são a única esperança que
nos resta aos norte-americanos. Se esse nosso levante fracassar – fracasso com o
qual o estado-empresa conta – os norte-americanos estaremos escravizados.
Clique na imagem para aumentar |
Nota dos tradutores
[1] “FUGA
DA MORTE”, Paul
Celan
(trad. Modesto Carone, do livro: “Quatro mil anos de poesia”, J.
Guinsburg e Zulmira Ribeiro Tavares, Ed. Perspectiva, 1969, SP, em:
Leite negro da madrugada nós o bebemos de
noite
nós o bebemos ao meio-dia e de manhã
nós o bebemos de noite nós o bebemos bebemos
cavamos um túmulo nos ares lá não se jaz apertado
Um homem mora na casa bole com cobras escreve
escreve para a Alemanha quando escurece teu cabelo de ouro Margarete
escreve e se planta diante da casa e as estrelas faíscam ele assobia para os seus Mastins
assobia para os seus judeus manda cavar um túmulo na terra
ordena-nos agora toquem para dançar
Leite negro da madrugada nós te bebemos de noite
nós te bebemos de manhã e ao meio-dia nós te bebemos de noite nós bebemos bebemos
Um homem mora na casa e bole com cobras escreve
escreve para a Alemanha quando escurece teu cabelo de ouro Margarete
Teu cabelo de cinzas Sulamita cavamos um túmulo nos ares lá não se jaz apertado
Ele brada cravem mais fundo na terra vocês aí cantem e toquem
agarra a arma na cinta brande-a seus olhos são azuis
cravem mais fundo as pás vocês aí continuem tocando para dançar
Leite negro da madrugada nós te bebemos de noite
nós te bebemos ao meio-dia e de manhã nós te bebemos de noite nós bebemos bebemos
um homem mora na casa teu cabelo de ouro Margarete
teu cabelo de cinzas Sulamita ele bole com cobras
Ele brada toquem a morte mais doce a morte é um dos mestres da Alemanha
ele brada toquem mais fundo os violinos vocês aí sobem como fumaça no ar
aí vocês têm um túmulo nas nuvens lá não se jaz apertado
Leite negro da madrugada nós te bebemos de noite
nós te bebemos ao meio-dia a morte é um dos mestres da Alemanha
nós te bebemos de noite e de manhã nós bebemos bebemos
a morte é um dos mestres da Alemanha seu olho é azul
acerta-te com uma bala de chumbo acerta-te em cheio
um homem mora na casa teu cabelo de ouro Margarete
ele atiça seus mastins sobre nós e sonha a morte é um dos mestres da Alemanha
eu cabelo de ouro Margarete
teu cabelo de cinzas Sulamita.
nós o bebemos ao meio-dia e de manhã
nós o bebemos de noite nós o bebemos bebemos
cavamos um túmulo nos ares lá não se jaz apertado
Um homem mora na casa bole com cobras escreve
escreve para a Alemanha quando escurece teu cabelo de ouro Margarete
escreve e se planta diante da casa e as estrelas faíscam ele assobia para os seus Mastins
assobia para os seus judeus manda cavar um túmulo na terra
ordena-nos agora toquem para dançar
Leite negro da madrugada nós te bebemos de noite
nós te bebemos de manhã e ao meio-dia nós te bebemos de noite nós bebemos bebemos
Um homem mora na casa e bole com cobras escreve
escreve para a Alemanha quando escurece teu cabelo de ouro Margarete
Teu cabelo de cinzas Sulamita cavamos um túmulo nos ares lá não se jaz apertado
Ele brada cravem mais fundo na terra vocês aí cantem e toquem
agarra a arma na cinta brande-a seus olhos são azuis
cravem mais fundo as pás vocês aí continuem tocando para dançar
Leite negro da madrugada nós te bebemos de noite
nós te bebemos ao meio-dia e de manhã nós te bebemos de noite nós bebemos bebemos
um homem mora na casa teu cabelo de ouro Margarete
teu cabelo de cinzas Sulamita ele bole com cobras
Ele brada toquem a morte mais doce a morte é um dos mestres da Alemanha
ele brada toquem mais fundo os violinos vocês aí sobem como fumaça no ar
aí vocês têm um túmulo nas nuvens lá não se jaz apertado
Leite negro da madrugada nós te bebemos de noite
nós te bebemos ao meio-dia a morte é um dos mestres da Alemanha
nós te bebemos de noite e de manhã nós bebemos bebemos
a morte é um dos mestres da Alemanha seu olho é azul
acerta-te com uma bala de chumbo acerta-te em cheio
um homem mora na casa teu cabelo de ouro Margarete
ele atiça seus mastins sobre nós e sonha a morte é um dos mestres da Alemanha
eu cabelo de ouro Margarete
teu cabelo de cinzas Sulamita.
________________________
[*] Chris Hedges, cuja coluna
é publicada às segundas-feiras em Truthdig, passou quase duas décadas
como correspondente internacional na América Central, no Oriente Médio, na
África e nos Bálcãs. Escreveu reportagens em mais de 50 países e trabalhou para
The Christian Science Monitor, National Public Radio, The
Dallas Morning News e The New York Times, para o qual foi
correspondente internacional por 15 anos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Registre seus comentários com seu nome ou apelido. Não utilize o anonimato. Não serão permitidos comentários com "links" ou que contenham o símbolo @.