sábado, 18 de janeiro de 2014

Consequências estratégicas das revelações de Snowden (I)

17/1/2014, Dmitry Minin, Strategic Culture
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

“Se desertei, desertei do governo para o público” – E. Snowden

Nossos agradecimentos a Edward Snowden pelo seu sacrifício
Um dos eventos mundiais mais importantes de 2013 foi a revelação, por Edward Snowden, de que os EUA trabalham para manter toda a humanidade sob vigilância, usando equipamento eletrônico e tecnologia de ponta.

Nos últimos dias do ano passado, o ex-empregado de uma empresa que prestava serviços terceirizados à Agência de Segurança Nacional dos EUA falou por televisão à comunidade mundial, para, mais uma vez, alertar para a gravidade do problema. Em sua fala, Snowden referiu-se ao romance 1984 de George Orwell. [1] Disse que os significados da vigilância descritos por Orwell (o romance foi escrito em 1948) parecem ingênuos e engraçados, à luz do que está sendo feito hoje.

A discussão que se faz hoje determinará o quanto confiaremos doravante, tanto na tecnologia que nos cerca por todos os lados, como no governo que a regulamenta – Edward Snowden

Vídeo a seguir legendado pelo Jornal GGN:


Infelizmente, o vídeo da fala de Snowden só foi distribuído pelo Canal 4 britânico. Os grandes veículos da imprensa-empresa mundial fizeram o máximo que puderam para diluir e diminuir o significado das palavras de Snowden. A rede BBC (em russo), por exemplo, só fez lembrar que, antes, o mesmo Canal 4 havia entrevistado o ex-presidente do Irã, Mahmud Ahmadinejad e até Marge Simpson, personagem de um desenho animado norte-americano.

Contudo, por mais que Washington [e Grã-Bretanha] tente esquecer e fazer esquecer o mais depressa possível o pesadelo das revelações de Snowden, elas continuam a influenciar a política mundial e, em algumas regras, já assumiram traços de influência propriamente estratégica.

1. Pode até haver quem diga que nos próprios EUA o programa de monitoramento eletrônico da humanidade será reformado; mas não há dúvida de que o programa sobreviverá, sobretudo no que tenha a ver com monitorar e vigiar o resto do mundo.

Por exemplo, a Comissão de Inteligência do Senado aprovou lei que aumenta o controle sobre os programas do governo norte-americano de cibervigilância em larga escala, mas não os extinguirá completamente. Em audiências secretas, a Comissão aprovou a introdução de novas limitações à operação de agências de inteligência que trabalham com grandes quantidades de dados de comunicações, e a limitação do período de armazenamento desses dados por cinco anos: 11 votos a favor das limitações e 4 contra. Depois da esperada aprovação dessa lei pelo Congresso e de o presidente ter sancionado a lei, um tribunal especial nomeará especialistas ‘independentes’ que serão encarregados de examinar questões de interpretação da lei. E o Senado terá de confirmar o nome que o presidente indique para os postos de diretor e de inspetor geral da Agência de Segurança Nacional [orig. National Security Agency (NSA)] dos EUA.

Especialistas já escreveram que “se os EUA pretendem reduzir sua perigosa dependência do duplifalar, terão de submeter-se a supervisão real e a um debate aberto e democrático sobre suas políticas. A era da hipocrisia acabou” .

A Era da Hipocrisia ACABOU
Houve momento em que essa virada deu sinais de que talvez viesse a ser efetiva e mais decisiva. Dia 16/12/2013, uma Corte Federal Distrital em Washington julgou a favor de dois norte-americanos que processavam o Estado e a Agência de Segurança Nacional dos EUA pela gravação ilegal de dados de uma conversa telefônica. A Corte decidiu que os programas de coleta de dados de conversas telefônicas violam a 4ª Emenda, que protege os cidadãos dos EUA contra escutas não autorizadas judicialmente. O mundo chegou a ver aí um prelúdio da possível reabilitação de Snowden.

Mas poucos dias depois, dia 3/1/2014, o Tribunal FISA [oficialmente Foreign Intelligence Surveillance Court] dos EUA autorizou as agências de segurança a continuar a coleta em massa de dados de conversações telefônicas dos cidadãos norte-americanos. No mesmo dia, o Departamento de Justiça protocolou um protesto na Corte de Apelação dos EUA contra a decisão da Corte Federal Distrital que bloqueara o programa de escutas clandestinas. Até agora, o “Grande Irmão” está vencendo esse round.

Michael Rogers
Espera-se que, por efeito do escândalo, o atual diretor da Agência de Segurança Nacional dos EUA, general Keith Alexander, deixe o posto na primavera de 2014, fim de seu atual mandato. Alexander dirige a Agência desde 2005. O jornal britânico The Guardian fala do vice-almirante Michael Rogers, atual comandante do Cibercomando da Marinha dos EUA [orig. U.S. Navy Fleet Cyber Command], como provável sucessor de Alexander no comando da ASN-EUA.

Alguma coisa por aí sugere qualquer tipo de restrição ao arsenal de vigilância eletrônica dos EUA? Absolutamente não. Apesar do barulho em torno do sistema de vigilância global, a Casa Branca não cogita de abrir mão da força que criou; em vez disso, cogita, isso sim, de tornar aquela estrutura ainda mais secreta, escondendo-a nos porões do Pentágono, para o qual passarão muitas das atuais funções da Agência de Segurança Nacional dos EUA, por ser “mais confiável” no que tenha a ver com preservar segredos. Essa é uma das recomendações de uma comissão especial que o presidente Obama criou, depois das revelações de Snowden. Essa comissão sugeriu especificamente que o serviço de gestão da segurança de informações da Agência de Segurança Nacional dos EUA seja transformado em agência separada e posta sob jurisdição do Pentágono.

Para os próximos cinco anos, o Pentágono planeja multiplicar por cinco as atuais dimensões do Cibercomando, uma estrutura especializada dentro das Forças Armadas dos EUA: passará dos atuais 900, para 4900 funcionários. E especialistas não descartam a possibilidade de que esse número seja aumentado. Outras divisões do Pentágono estão ameaçadas com cortes massivos de pessoal. Além disso, o Cibercomando poderá ganhar status de órgão independente. Atualmente, faz parte do Comando Estratégico dos EUA, com as forças estratégicas nucleares, os mísseis de defesa e as forças espaciais. Espera-se que o novo comando, além de proteger redes e coletar informação, conduzirá ciberataques “contra estados e organizações hostis”, a partir do território dos EUA ou de seus aliados.

Simultaneamente, surgiram sérias linhas de discordância entre a comunidade de inteligência e o governo dos EUA, quando funcionários da Casa Branca repetidas vezes tentaram fazer crer que o governo e o presidente nada teriam a ver com a atividade da inteligência, como se os agentes da inteligência espionassem por vontade própria e para finalidades só deles. A comunidade de inteligência vê essa atitude da Casa Branca como desleal e inescrupulosa, e a atitude causou indignação. Em artigo publicado no Los Angeles Times, representantes da comunidade de inteligência dos EUA refutaram a ideia de que o presidente Barack Obama e seus assessores não soubessem coisa alguma sobre as escutas implantadas, dentre outros, em gabinetes e até nos telefones privados de autoridades de outros países. Todas as gravações ilegais obtidas de telefones de governantes de países aliados dos EUA foram feitas com a aprovação da Casa Branca e do Departamento de Estado, afirmam agentes da inteligência dos EUA, em serviço e aposentados. “Há gente furiosa” – disse uma fonte de alto escalão. “É como se a Casa Branca tivesse oficialmente renegado a comunidade de inteligência”.

2. Além disso, os EUA e os demais países membros da aliança conhecida como “Cinco Olhos” [orig. Five Eyes] – Grã-Bretanha, Canadá, Austrália e Nova Zelândia [também chamado de Aliança Anglo-sionista (NTs)] – também vivem dificuldades de relacionamento político com outros países, depois que o papel deles foi revelado como elos do sistema global de ciberespionagem. E já se sabe também que os EUA não foram inteiramente honestos sequer com os seus aliados mais próximos.

Antenas operacionais da ASN em Teufelsberg Hill ou Devil's Mountain, Berlim em 5/11/2013
Os EUA assinaram tratado de não espionagem mútua com Grã-Bretanha, Austrália, Nova Zelândia e Canadá. Outros países parceiros, dentre os quais Alemanha e França, esperam ainda por acordo similar. Mas, seja como for, o que todos viram é que nenhum acordo impede a espionagem global norte-americana. Não há dúvida alguma de que a Grã-Bretanha também está sob vigilância e, muito provavelmente, também Canadá e Austrália.

Relações nessa esfera entre Londres e Bruxelas ficaram gravemente tensas; Bruxelas se organiza para mostrar diretamente aos britânicos que as práticas das agências britânicas de inteligência violam a política de segurança da União Europeia. Em conexão com o que aconteceu, a Comissão Europeia planeja recorrer à Corte Europeia, em Luxemburgo, para que ponha fim à vigilância eletrônica pelos britânicos, se violam leis da União Europeia. Decisão da Corte Europeia prevalece sobre a legislação nacional britânica. A Comissão Europeia já requereu que os britânicos apresentem justificativa legal para as atividades de espionagem do Quartel-General das Comunicações de Governo [orig. Government Communications Headquarters (GCHQ)], que recolhe informações de contatos pela Internet em mais de 200 canais de comunicação por fibra ótica. A Alemanha não está contente. A inteligência britânica comandava uma rede inteira de “postos de escuta eletrônica” instalada a poucos passos do Bundestag e espionava o gabinete da chanceler Angela Merkel, usando equipamento instalado no telhado da embaixada britânica.

A Embaixada dos EUA, à direita, fica próxima do edifícios do legislativo da Alemanha em Berlim. A chanceler Angela Merkel está entre os líderes das nações aliadas dos EUA que mais se queixaram sobre os relatórios de espionagem dos EUA
Houve problemas também nas relações entre Londres e vários países do Oriente Médio, quando se divulgou que as ações de espionagem contra seus governantes (inclusive em Israel) eram conduzidas em estreita cooperação com agências de inteligência dos EUA, a partir da base militar Dhekelia (território britânico) em Chipre, próximo da linha que separa as áreas grega e turca da ilha. Tudo isso foi confirmado por jornalistas investigativos do jornal grego Ta Nea. 

Muitos países na região do Pacífico Asiático apresentaram queixas contra Canberra, quando documentos da ASN-EUA revelaram que a Austrália também permitira que suas embaixadas na Indonésia, Tailândia, Vietnã, China e Timor Leste fossem usadas pelos norte-americanos para atividades de espionagem.

Canadá, como se soube, especializou-se em espionagem econômica para a aliança dos “Cinco Olhos”, contra México e Brasil, especialmente contra as respectivas empresas nacionais de petróleo.

3. Apesar da disposição que os EUA manifestaram para resolver “amigavelmente” as complicações geradas por suas ações de espionagem contra aliados próximos, o verme da dúvida implantou-se e não desaparecerá facilmente. Já não é possível explicar esses fatos por necessidades do combate ao terrorismo. Tornou-se óbvio para os governos de países aliados de Washington que os EUA os mantém sob constante vigilância, o que põe os norte-americanos em posição de vantagem desleal inadmissível em todas as negociações. Poucos falam sobre isso, mas não há dúvida de que todos conjecturam e concluem. (...)

Viviane Reding
Viviane Reding, Comissária de Justiça, Direitos Fundamentais e Cidadania da União Europeia, já disse que: “Não se pode negociar num amplo mercado transatlântico, se houver qualquer mínima suspeita de que nossos parceiros mantêm escutas dentro do gabinete de nosso negociador chefe”.

Mesmo assim, seria ingenuidade assumir que Washington, que tem posições estáveis e de raízes profundas na Europa, cederá facilmente nesse seu forte ciberabraço pouco amistoso. Foi o que ficou bem evidente, ano passado, quando se cogitou de convocar Edward Snowden para uma audiência do Parlamento Europeu dia 18 de dezembro, ou de ouvi-lo por videoconferência. Um representante do Partido Popular Europeu [orig. European People’s Party] “consistentemente pró-atlanticista”, com ampla maioria no Parlamento Europeu, comunicou, dia 12/12, que membros conservadores do Parlamento haviam votado contra qualquer contato, mesmo por vídeo, entre Snowden e parlamentares europeus; e a proposta foi bloqueada. Segundo esse deputado europeu “consistentemente atlanticista”, tal iniciativa teria “consequências negativas nas relações transatlânticas, altamente indesejáveis nesse momento, às vésperas da assinatura de um acordo de livre comércio entre EUA e União Europeia”.

Jonathan Pollard - Cana brava por espionagem nos EUA pró Israel...
Até Israel, aliado estratégico dos EUA já se inclui entre as vítimas; soube-se que líderes israelenses estavam sob total vigilância, inclusive em quartos de hotel em Jerusalém, alugados como base de escutas clandestinas, próximos de instalações do governo. E, isso, quando os EUA recusam-se, há muitos anos, a devolver a Israel o agente israelense Jonathan Pollard, condenado a prisão perpétua e mantido numa prisão norte-americana, por sentença que declara que seus atos de espionagem são comportamento “amoral e inaceitável em relações entre aliados próximos”. Agora, Israel já fala da “hipocrisia monstruosa da Casa Branca” e já exigiu a imediata libertação de Pollard, em termos de, praticamente,  um ultimato.

[Continua]




Nota dos tradutores

[1] ORWELL, George [1948], 1984, São Paulo: Companhia das Letras, 2009, 416 p. (Há outras edições.)

Um comentário:

  1. Manchete do Huffington Post​ (de 17/1/2014)​, depois da fala (e do besteirol) de Obama: "VINGADO!", acima de foto de Snowden​.​((em http://www.huffingtonpost.com/).

    Achamos MUITO PRECIPITADA, a manchete. A única segurança de vida que ainda protege Snowden são os documentos que ele tenha guardados, que os EUA não sabem quais são. No instante em que Snowden entregar tudo, ele passa a ser alvo vivo, onde quer que esteja -- e não há dúvidas de que será morto. Como assim... "Vingado!"?!

    Boa notícia é que o Twitter (se se segue as pessoas que interessa ouvir) já está dizendo TUDO q interessa dizer:

    (1) Obama falou como se o único problema da espionagem norte-americana fosse a agressão à tal de "privacidade". (em: http://www.huffingtonpost.com/2014/01/17/obama-edward-snowden_n_4617970.html) Nem uma palavra sobre a espionagem econômica, comercial, industrial, científica...
    (Comentário enviado por e-mail e postado por Castor)

    E o grande problema da espionagem norte-americana é que ela é espionagem econômica, comercial, industrial, científica: o estado norte-americano espiona A SERVIÇO DAS EMPRESAS NORTE-AMERICANAS e a favor do Império anglo-sionista.

    Mas nem Snowden nem ninguém fala disso. Então... qualquer coisa é qualquer coisa, nesse trololó liberal: não se podem espiar os namoros de dois capitalistas. Mas podem-se espionar os negócios dos mesmos dois capitalistas.

    Obama disse, excepcionalista arrogante idiota: "Afinal, os EUA não podemos ser castigados por que nossos serviços são melhores que os do resto do mundo".

    Foi como se dissesse: dados que somos capazes de obter informações empresariais e industriais e comerciais e científicas com mais eficácia que a concorrência... a concorrência que coma poeira, ora bolas!"

    Pensando bem... no mundo do capital, Obama está coberto de razão: "Ladrão que rouba ladrão tem 100 anos de perdão".

    Mas, se tudo é, sempre, a questão da PROPRIEDADE PRIVADA, se a riqueza pertence, por 'direito' ao mais forte... pra ke ki serve e ke ki minteressa essa porra de privacidade?!

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