terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Conflicts Fórum, Comentário Semanal (3-10/1/2014)

17/1/2014, [*] Conflicts Forum
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Milhões se enfrentam nas ruas das cidades egípcias. Imensa fratura social-religiosa
Egito: Mesmo antes do golpe militar que derrubou o presidente Mursi, já era claro que a sociedade egípcia estava em processo de fratura – e fratura profunda, de modo talvez irrecuperável. Uma reunião (da qual este Conflicts Fórum participou) dos principais grupos políticos do Egito (islamistas e liberais/seculares) naquele momento foi simplesmente incapaz sequer de comunicarem-se uns com os outros: muralhas de pesada artilharia verbal lançada de um lado para outro na mesma sala, de um setor da sociedade egípcia para outro, cada um desejando acertar golpe mais arrasador contra o outro. Ânimos exaltadíssimos, emoções à solda; estado psicológico cristalizado, pétreo, pouco do que uns diziam aos outros faziam qualquer sentido, e nem um grão de sabedoria.

O ânimo para qualquer tipo de concessão, completamente ausente, nenhuma possibilidade de negociação democrática naquele torvelinho de paixões. Naquele momento, eram os liberais/seculares e os cristãos que manifestavam o terrível medo existencial, temendo pela própria sobrevivência: estavam a ponto de serem politicamente e culturalmente detonados pelos islamistas, seu modo de vida posto na ilegalidade, a relevância política deles varrida para o nada, como sentiam, acreditavam e temiam.

É preocupante o número de assassinatos de cristãos no Egito
Os cristãos mostravam-se particularmente amargos. Reclamavam que o ocidente cristão cometera um erro histórico: obcecadamente focado na segurança de Israel, o ocidente aliara-se a grupos sunitas radicais, para enfraquecer o que via como ameaças a Israel (o Hezbollah e o Irã); mas os cristãos do Oriente Médio é que teriam de pagar a parte pior do preço desse estímulo tresloucado ao Islã sunita. Exibiram números da migração de cristãos para fora do Egito. E o que ardia como sal esfregado nas feridas era que cristãos e liberais/seculares não viam qualquer possibilidade de que surgisse qualquer tipo de forças que os resgatassem e os salvassem do sítio a eles imposto pelos islamistas.

Pela primeira vez em séculos, nem França, nem Grã-Bretanha, nem EUA apareceriam para salvá-los. Seriam deixados morrer lá – ou que emigrassem! – ante a avançada dos islâmicos.

Imagine-se, pois, como se sentiram, quando, no último segundo, depois de tudo parecer completamente perdido, surgiu um deus ex machina: os estados do Golfo armaram um golpe de estado para “limpar e destruir” (no jargão militar) a Fraternidade Muçulmana e varrê-la do Egito. Viraram a mesa! Militantes seculares/liberais flanavam metro e meio acima do chão, em êxtase. O general Sisi foi saudado (acriticamente) como novo Saladino/ Nasser/ Sadat.

Abdul Fattah al-Sisi
Imediatamente depois do golpe, o general Sisi fez todos os ruídos politicamente corretos: falou de “transição”, “democracia civil” e “inclusão social”. Falar é uma coisa, fazer é que são elas! E Sisi fez diferente do que falava.

Em vez de transição para a democracia, parece que agora “o povo” vai exigir que Sisi se torne presidente por aclamação popular, não por alguma “democracia civil”. Está a poucos passos de conseguir aprovar duas novas leis, a saber: uma lei que torna ilegais os protestos de rua; e outra que amplia o alcance da lei antiterrorismo.

Sisi conseguirá matar dois coelhos com uma cajadada: seu objetivo principal é eliminar a Fraternidade Muçulmana e criminalizar seus muitos apoiadores; mas, além disso, ele efetivamente dá novo corpo e nova carne às regras do (odiado) “estado de emergência”, para permitir que o establishment de segurança elimine qualquer resistência ao governo da Junta militar.

Outra vez, tudo isso está sendo feito “por mandato popular”: como o jornal nacionalista Al-Watan escreveu semana passada: “Do povo a El-Sisi [chefe das forças armadas]: Garantimos seu mandato. Agora, é degolar os terroristas!”. Outro jornal, Al-Youm Al-Sabaa, exibiu manchete semelhante: “Povo exige que a Fraternidade seja executada”.

Mas, embora essas leis visem primariamente à Fraternidade Muçulmana, o efeito combinado das duas é suficientemente amplo para enquadrar também os primeiros movimentos de mal-estar entre os seculares/liberais. Alguns seculares/liberais (poucos, se comparados aos Irmãos) foram detidos por criticar (por falta de objetivo revolucionário) o governo da junta militar. Deve-se prever que, aumentando a desilusão e o fim das esperanças que depositaram em Sisi, aumente também o número de seculares/liberais nas prisões egípcias.

Khalil Al-Anani
Em resumo, a contrarrevolução que o Golfo orquestrou no Egito contra os levantes árabes de 2011, agora sob o comando do General Sisi, está sendo empurrada na direção da mais ampla, total e irrestrita repressão.

Como Khalil Al-Anani comenta, a proscrição da Fraternidade Muçulmana fortalece “a ideia de um inimigo comum, de uma ameaça existencial ao estado e à sociedade”. “Outra razão para a proscrição”, continua ele, “é mobilizar o público para que vote “sim” no referendo da Constituição, que o governo provisório vê como meio para resolver a própria falta de legitimidade. Fechar o espaço público para qualquer tipo de ação de protesto, sob a alegação que o fechamento é ação de contraterrorismo (...) e declarar a Fraternidade “grupo terrorista”, fecha a porta para qualquer reaproximação futura entre a Fraternidade e os grupos revolucionários”.

Não se trata apenas de criminalizar parte muito substancial da população egípcia (pelo crime de enunciar apoio direto ou indireto à Fraternidade Muçulmana – crime que passa a receber pena de cinco anos de cadeia), mas os “vigilantes” já estão sendo encorajados por jornalistas e outras figuras “midiáticas”, pelos jornais e pelas televisões, a incendiar residências de Irmãos e depredar suas empresas e escritórios. Criaram-se linhas de disque-denúncia, para que todos possam facilmente denunciar nomes e endereços de pessoas suspeitas de simpatia com a Fraternidade Muçulmana. Empresas-imprensa, em toda a “mídia”, ecoam e repercutem o incitamento contra os “terroristas”. Pessoas suspeitas de contatos com os Irmãos estão sendo sequestradas, torturadas e mortas. A fratura na sociedade egípcia de que falamos no início, já se expande: agora se vê um cisma.

Líderes da Fraternidade Muçulmana discurso quando do golpe militar que derrubou o presidente democraticamente eleito, Mohamed Mursi
Qual será a resposta? No Egito tudo anda devagar, mas já se veem alguns indicadores claros. A Fraternidade Muçulmana já mergulhou na clandestinidade. As lideranças (membros da Shura e o Gabinete de Orientação) já foram presas ou sumiram na clandestinidade. O movimento sobrevive reativando seu antigo sistema de “células”, de sete, oito pessoas, que se reúnem na cada do líder da célula. Mas também esse sistema, que manteve vivo o movimento em outros momentos de perseguição cerrada, está sob forte estresse, e os líderes de célula encontram grandes dificuldades para manter ativas as comunicações entre as células e para cima, na hierarquia, para quem quer que ainda esteja ativo na liderança.

A geração mais velha da Fraternidade Muçulmana não quer guerra aberta contra Sisi: sabem que não têm qualquer chance de vitória. Em vez disso, a estratégia é manter a liderança com manifestações “relâmpago” (“Não temos escolha: Sisi nos encurralou”) e esperar que a própria Junta se autodesmoralize, enquanto a economia despenca. A FM sabe que há tempos muitos difíceis adiante, para a economia egípcia; e acredita que nada tenham a fazer, além de esperar e capitalizar o inevitável (segundo os Irmãos) tombo da Junta, aos olhos da opinião pública. Simultaneamente, a FM está trabalhando com seus apoiadores dentro do Exército, para inflar o descontentamento, entre os militares, contra o alto comando. (Um quadro político russo de alto escalão diz que a Rússia estima que cerca de 70% dos quadros inferiores da hierarquia militar egípcia opõem-se ao rumo que o comando está dando ao exército).

Mas essa “opção segura” nem está funcionando, nem satisfaz os membros mais jovens da FM. A política de não violência da FM não está se implantando em todo o movimento como os líderes esperavam que se implantasse. O recente ataque à bomba em Mansour, no qual morreram 16 policiais, quase com certeza não foi obra da FM (um grupo salafista do Sinai já se apresentou como responsável, e é perfeitamente possível que sejam os autores), mas a FM já foi imediatamente acusada – e jornalistas e “especialistas” da imprensa-empresa governista já conseguiram persuadir significativa maioria dos egípcios de que a FM, sim, é o “grupo terrorista” responsável pelo atentado.

Os jovens  da Fraternidade Muçulmana lutam diuturnamente contra o golpe militar
Os Irmãos mais jovens, que perderam amigos e parentes nos confrontos à bala contra a polícia, não admitirão essa posição “contemplativa” da ala mais velha. Para esses jovens, a lição a aprender do Golpe é que os Irmãos foram ingênuos. Entendem que a FM deveria ter “destruído o sistema” no instante em que chegou ao poder. Teriam de ter promovido um expurgo no exército; e que todo o “estado profundo” teria de ter sido destruído. Essa, dizem eles, é a lição da Argélia, do Hamas em 2006, e, agora, também do presidente Mursi. Muitos desses – impossível avaliar quantos – tomarão o rumo dos movimentos islamistas revolucionários violentos que partilham e defendem a “ideia” da al-Qaeda. Essa não é tendência que exploda repentinamente, mas crescerá com o tempo – e contará com armas e combatentes vindos da Líbia, que já se disseminam por todo o norte da África.

O caso dos salafistas é mais complicado. Financiados por Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Kuwait, a liderança quase toda apoiou a Junta, exibindo notável “flexibilidade” nas questões constitucionais em respeito ao Islã. Mas eles também já perderam os membros jovens. Muitos desses salafistas veem o ataque das forças de segurança contra os Irmãos, e a deposição do presidente Mursi, não como ataque à Fraternidade Muçulmana per se; mas como ataque contra o próprio Islã. Esse grupo dos salafistas portanto virou-se contra a Arábia Saudita – tanto quanto também contra Sisi.

Por fim, partes do Egito (Sinai, partes de Alexandria e Suez) estão-se convertendo numa Idlib egípcia – sob o “controle” (não há palavra adequada para descrever a ambígua ‘'rede'’ de intimidação posta em ação) de grupos jihadistas de várias tendências – todos eles ferozmente hostis à Fraternidade Muçulmana, vendo os Irmãos como apóstatas.

Mapa ferroviário do norte do Egito e as distâncias entre as cidades envolvidas
A que tudo isso leva o Egito? O problema é que, por mais que Sisi tenha conseguido criar um culto que toma grandes fatias da população, para esmagar os chamados “terroristas” (a FM), ainda não se vê solução suficiente para os profundos problemas econômicos que o país enfrenta. Os estados do Golfo deram (embora nem tudo sejam doações) cerca de US$ 12 bilhões, mas a maioria dos especialistas estimam que o Egito precisa de mais de US$ 50 bilhões para manter-se à tona. Cerca de 43% da população vive em condições desesperadoras de miséria (com renda familiar de menos de US$ 2/dia, e muitos desses pobres são ex-beneficiários dos serviços caritativos da Fraternidade, apoio que agora foi cortado).

E que visão Sisi oferecerá: reformas econômicas “liberais” à moda do FMI – com metade da população sobrevivendo com menos de US$ 2/dia? O nacionalismo árabe (estilo neonasserista) é hoje viável? Difícil supor que sim. Não há dinheiro para isso. E o nacionalismo árabe entrou em fase de longo declínio depois da Guerra de 1973, da qual não se recuperou.

E que visão a Fraternidade Muçulmana pode oferecer? Um retorno à Da’wa e aos serviços sociais caritativos? Nisso, tampouco, já quase ninguém acredita. Nem a FM poderá esperar passivamente que o colapso econômico do Egito mate a fome dos que esperam qualquer “solução” para suas muitas misérias e alguma visão de futuro promissor.

A única visão que parece ressoar na rua é a récita salafista de simples “certezas” às quais as pessoas possam pendurar-se, em desespero, num momento de tumulto e ordem em liquefação. Paradoxalmente, nesse nível, vê-se convergirem os salafistas e Irmãos mais jovens, que se vão aproximando entre eles em torno de uma visão de mundo salafista, e emergindo, talvez, como únicos reais beneficiários do atual estado de coisas.

O ocidente adotou visão de curto prazo:

Todos temos pequena influência; tratamos a questão como assunto interno do país (como os eventos na Síria) e apoiamos Sisi, porque tem o único instrumento (o exército e as forças de segurança) capazes de prover (a palavra é péssima) “segurança”.

Mas a brutal repressão garantirá a tal “segurança” de que fala o ocidente, no longo prazo. A lição do colapso de Sykes-Picot a que assistimos em toda a região não é prova, precisamente, de que não?

O sinal de aviso e alarme é cuidado para não criarem novas al-Qaedas.

O Egito parece a caminho de mais e mais fraturas, e de tornar-se mais violento no confronto com a ressurreição do “sistema árabe”, sob a forma do general (e provável presidente) Sisi.


[*] Conflicts Fórum visa mudar a opinião ocidental em direção a uma compreensão mais profunda, menos rígida, linear e compartimentada do Islã e do Oriente Médio. Faz isso por olhar para as causas por trás narrativas contrastantes: observando como as estruturas de linguagem e interpretações que são projetadas para eventos de um modelo de expectativas anteriores discretamente determinam a forma como pensamos - atravessando as pré-suposições, premissas ocultas e até mesmo metafísicas enterradas que se escondem por trás de certas narrativas, desafiando interpretações ocidentais de “extremismo” e as políticas resultantes; e por trabalhar com grupos políticos, movimentos e estados para abrir um novo pensamento sobre os potenciais políticos no mundo.



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