2/1/2014, Euronomade, [*] Autores: Sandro Mezzadra
e Toni Negri
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Países da Zona do Euro (moeda única da Europa) (clique na imagem para aumentar) |
Quem, como nós, não tem interesses eleitorais, está na
melhor posição para reconhecer a grande importância que terão em 2014 as
eleições ao Parlamento Europeu. É fácil prever que na maior parte dos países
implicados haverá alta abstenção e significativa afirmação das forças
“eurocéticas”, unindo à retórica da “soberania nacional”, a hostilidade contra
o euro e contra os “tecnocratas de Bruxelas”. Para nós, não é nada bom.
Estamos convencidos há tempos de que por baixo do perfil
normativo, como por baixo da ação governamental capitalista, há uma Europa cuja
integração já ultrapassou o portal do irreversível. O realinhamento geral dos
poderes na crise – em torno da centralidade do Banco Central Europeu e o que se
define como “federalismo executivo” – modificou sem dúvida a direção do
processo de integração, mas não pôs em discussão a continuidade daquele
processo. A própria moeda única mostra-se hoje consolidada na perspectiva da
união bancária: é necessário responder à violência com que essa união bancária
manifesta o mando capitalista; mas volta às moedas nacionais significa não
entender qual é o terreno no qual se disputa hoje a luta de classes.
É verdade que a Europa é hoje uma “Europa alemã”, cuja
geografia econômica e política vai-se reorganizando em torno de relações
concretas de força e de dependência, que se refletem até no nível monetário.
Mas só o feitiço neoliberal explica que se confundam a irreversibilidade do
processo de integração, de um lado; e de outro a impossibilidade de modificar
os conteúdos e as direções; de fazer agitarem-se dentro do espaço europeu a
força e a riqueza de uma nova hipótese constituinte.
Quebrar esse feitiço neoliberal significa redescobrir hoje
o espaço europeu como espaço de luta, de experimentação e de invenção política.
Como terreno sobre o qual a nova composição social dos trabalhadores, das
trabalhadoras e dos pobres abrirá talvez uma perspectiva de organização
política. Lutando sobre o terreno europeu, uma organização assim terá a
possibilidade de golpear diretamente a nova acumulação capitalista. E só no
terreno europeu é possível propor tanto a questão do salário como da renda;
redefinir os direitos como nova dimensão do Welfare; tanto as
transformações constitucionais internas nos países individuais, como a questão
constituinte europeia. Hoje, não há realismo político se não nesse terreno.
Parece-nos que as forças de direita compreenderam há tempo
que a irreversibilidade da integração assinala hoje o perímetro do que resulta
política e praticamente pensável na Europa.
Angela Merkel |
Em torno da hipótese de aprofundamento substancial do
neoliberalismo, já se organizou um bloco hegemônico que inclui variantes
significativamente heterogêneas (das aberturas não só táticas na direção de uma
hipótese socialdemocrata de Angela Merkel, à violenta constrição repressiva e
conservadora de Mariano Rajoy). As mesmas forças de direita que se apresentam
como “antieuropeias”, pelo menos nos seus componentes mais informados, jogam
sua opção sobre o terreno europeu, com vistas a ampliar os espaços de autonomia
nacional que estão bem presentes na Constituição Europeia, e recuperando, num
plano meramente demagógico, o ressentimento e a fúria disseminados em amplos
setores da população, depois de anos de crise.
A referência à nação mostra-se como o que é: transfiguração
de um sentido de impotência em agressividade xenófoba; defesa de interesses
particulares imaginados como arquitrave de uma “comunidade de destino”. Por
outro lado, a esquerda socialista, embora não fazendo parte do bloco hegemônico
neoliberal, não consegue diferençar-se eficazmente daquele bloco no momento de
elaborar propostas programáticas de signo claramente inovador. A candidatura de
Alexis Tsipras, líder do partido Syriza, à presidência da Comissão
Europeia, tem importância indubitável nessa ordem de coisas; já determinou em
muitos países uma positiva abertura do debate de esquerda. Em outros países,
contudo, ainda parecem prevalecer os interesses de pequenos grupos ou
“partidos”, incapazes de desenvolver discurso político plenamente europeu.
Com as coisas nesse pé, por que as eleições europeias de
maio próximo nos parecem importantes?
Alexis Tsipras |
Em primeiro lugar, porque tanto o relativo reforço dos
poderes do Parlamento, como a designação pelos partidos de um candidato à
Presidência da Comissão, fazem da campanha eleitoral, necessariamente, um
momento de debate europeu, no qual as diversas forças ficarão obrigadas a
definir e anunciar, pelo menos, algum esboço de programa político europeu.
Parece-nos pois que aqui se apresenta a ocasião para uma intervenção política
dos que se batem para quebrar tanto o feitiço neoliberal como seu corolário,
segundo o qual a única oposição possível à atual forma da União Europeia seria
o “populismo” antieuropeu.
Não se exclua, de início, que essa intervenção possa
encontrar interlocutores entre as forças que se movem no terreno eleitoral. Mas
estamos pensando, antes de tudo, numa intervenção de movimento, que consiga
deitar raízes no interior das lutas que se desenvolveram nos últimos meses,
embora de diferentes maneiras, em muitos países europeus – com intensidade
significativa inclusive na Alemanha. É decisivamente importante voltar a
habilitar um discurso programático – e isso não é possível exclusivamente
dentro e contra o espaço europeu.
Mariano Rajoy |
Não vemos como se poderia questionar sociologicamente, de
modo adequado, a “composição técnica de classe” de um ponto de vista messiânico
acima da “composição política” adequada. Do mesmo modo, não haverá movimentos
de classe vitoriosos que não tenham interiorizado a dimensão europeia. Não
seria a primeira vez, mesmo na história recente das lutas, que esses movimentos
ver-se-iam forçados pelo marco político a se modificarem, voltando a
experiências locais, até se verem asfixiadas em clausuras sectárias. Trata-se de
reconstruir imediatamente um horizonte geral de transformação, de elaborar
coletivamente uma nova gramática política e um conjunto de elementos de
programa que possam agregar força e poder no interior das lutas. Aqui e agora –
repetimos – a Europa nos parece ser o único espaço no qual isso é possível.
Um ponto nos parece particularmente importante. A violência
da crise fará sentir seus efeitos ainda por muito tempo. Não há “recuperação” à
vista, se por recuperação se entender diminuição significativa do desemprego,
diminuição do precarismo [1] e relativo reequilíbrio dos
ganhos. Mesmo assim, parece que se possa descartar o aprofundamento da crise. O
acordo sobre o salário mínimo, sobre o qual de fundamenta a nova coalizão na
Alemanha, parece indicar, mais, um ponto de mediação no terreno do salário
social que pode funcionar – em geometria e geografia variáveis – como critério
de referência geral para a definição de um cenário de relativa estabilidade
capitalista na Europa.
É um cenário, não a realidade atual, e é um cenário de
relativa estabilidade capitalista. Para a força de trabalho e para as formas da
cooperação social, esse cenário assume como dados de partida a extensão e a
intensificação do precarismo, a mobilidade forçada dentro do espaço europeu e
fora dele, o desclassamento de quotas relevantes do trabalho cognitivo e a
formação de novas hierarquias dentro do trabalho cognitivo, determinados pela
crise.
Mas em geral, o cenário de relativa estabilidade de que
falamos constata a plena hegemonia de um capital cujas operações fundamentais
têm natureza extrativa, quer dizer: combinam a persistência de uma exploração
de tipo tradicional, com intervenções de “subtração” direta da riqueza social
(mediante dispositivos financeiros, mas também porque assumem “bens comuns”,
como, dentre outros, saúde e educação, como terreno privilegiado de valoração).
Não por acaso, os movimentos compreenderam que nesse terreno travam-se as lutas
que podem golpear o novo regime de acumulação.
Nesse cenário trata-se, obviamente, de saber perceber a
especificidade das lutas que se desenvolvem, de analisar sua heterogeneidade; e
de medir sua eficácia em contextos políticos, sociais e territoriais que podem
ser muito diferentes.
Mas trata-se também de propor os problemas de tal modo que
as lutas possam convergir, multiplicando sua própria potência “local”, mas
dentro do marco europeu. Enquanto isso, delinear os novos elementos do programa
pode ser feito mediante a escrita coletiva de uma série de princípios dos quais
não se pode abrir mão, no terreno do Welfare e do trabalho; da
fiscalidade e da mobilidade; das formas de vida e do precarismo, em todos os
terrenos sobre os quais se expressaram os movimentos na Europa.
O que estamos pensando não seria uma carta de direitos
redigida de baixo para cima que se apresentaria a alguma instância
institucional: é, mais, um exercício de definição programática que, como começa
a mostrar a “Carta de Lampeduza” essas semanas, no que tenha a ver com migração
e asilo, possa converter-se em instrumento de organização no nível europeu. Sem
esquecer que, nesse trabalho, podem aparecer impulsos decisivos, mesmo,
imediatos, para construírem-se coalizões de forças locais e europeias, sindicais
e cooperativas, em movimento.
[1] Há uma tendência no Brasil, a preferir-se “precariedade” a “precarismo”.
Optamos por “precarismo” para evitar uma arapuca semântica: todos os
substantivos construídos com o sufixo “-idade” (como “precariedade”) são,
necessariamente, sempre, substantivos abstratos (de fato, em
praticamente todas as línguas em que o sufixo ocorre). Não nos parece razoável
acrescentar, a todas as dificuldades do precariato, mais essa dificuldade –
terrível! – apresentar precariato mediante exclusivamente por um traço
abstrato. Por piores que sejam os “-ismos”, entendemos que nenhum deles
seria o que é sem a luta muito concreta dos que lutaram por eles, ou neles e,
claro, também contra eles.
______________________
[*] Autores: Sandro Mezzadra e Toni Negri
Sandro Mezzadra é professor na Universidade de Bolonha. Os seus
estudos concentram-se na história das ideias políticas e na teoria política.
Nos últimos anos, tem-se debruçado sobre a relação entre globalização, migração
e cidadania. Esteve igualmente envolvido na luta pelo direitos dos migrantes,
nomeadamente no âmbito do primeiro dia de acção contra a reunião do G-8 em
Génova (Itália) em 2001, dedicado às questões da migração, bem como nos fóruns
sociais italianos. Entre as suas publicações, destacamos Diritto di fuga. Migrazioni, cittadinanza, globalizzazione,
Verona, Ombre corte, 2001.
Antonio Negri,
também conhecido como Toni Negri é
um filósofo político italiano, tradutor dos escritos de Filosofia do
Direito de Hegel, especialista em Descartes, Kant, Espinosa, Leopardi, Marx e Dilthey,
tornou-se conhecido no meio universitário sobretudo por seu trabalho sobre
Espinosa, mas sua atividade acadêmica sempre foi intimamente ligada à atividade
política. Negri ganhou notoriedade internacional nos primeiros anos do século
XXI, após o lançamento do livro Império - que se
tornou um manifesto do movimento anti-globalização - e de sua sequência, Multidão,
ambos escritos em co-autoria com seu ex-aluno Michael Hardt.
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