“Diante da alternativa de horas mortas, me consolo com o pensamento de que nada é mais moderno e recente que um clássico”, diz o escritor Urariano Mota.
Luciano Siqueira e
“Eram crianças crescidas, e isto mais se ressaltava no fato de terem sido chamados, forçados, à responsabilidade de adultos. Se usassem calças curtas, e brincassem de bola, e escorregassem no tobogã...” Assim
Abaixo, o perfil de
P - Conheci-o morando solitário numa pensão, na Boa Vista. Lendo Em busca do tempo perdido, comprando discos de jazz mesmo sem ter radiola em casa. O que mais o impressionou, então: Proust, Ella Fitzgerald ou as virtudes da inquilina do quarto vizinho?
R - Morei em duas pensões, na Boa Vista. Uma, cujo prédio não existe mais, ficava na Princesa Isabel, na área do Parque 13 de maio. A outra, ficava no cruzamento da João de Barros com a Suassuna, onde hoje está uma faculdade de direito. Eu não sei em qual delas eu fui mais angustiado, sozinho. Mas sem qualquer ética ou ideal de solidão. Na Pensão Princesa Isabel, enquanto subia a escada para um quartinho isolado lá no alto, da televisão da sala vinha a música de Paulinho da Viola, Simplesmente Maria, tema de uma telenovela. Ela me lembrava sempre que estava sozinho e sem mãe, cujo nome também era Maria. À hora dessa música sempre esperava algum golpe traiçoeiro da polícia que queria nos matar. Sem Maria que nos velasse. “Na cidade, é a vida cheia de surpresa, é a ida e a vinda, simplesmente, Maria, Maria, teu filho está sorrindo, faz dele a tua ida, teu consolo e teu destino, Maria...”. Nesse tempo, sempre compreendíamos o “faz dele a tua ida” como um “faz dele a tua ira”.
O nós aqui não é plural de modéstia. Foi um tempo difícil para mim e para todos os socialistas, inclusive você. Alguns dos nossos perderam a vida, outros enlouquceram, outros ficaram com sequelas até hoje.
Já na Princesa Isabel eu ouvia “Open the window”, com Ella Fitzgerald, e por ironia profunda o meu quarto não tinha janelas, era menos que uma concessão de uma água-furtada. Mas Ella Fitzgerald me salvava. Difícil é dizer quem me impressionava mais: se Proust, se Ella, se a vizinha. Mas a vizinha, Marco, foi na pensão da João de Barros. Eu não podia dizer a vocês, na época, mas agora digo: a vizinha de quarto, a viúva, é que era. Por solidariedade eu não poderia dizer isso então, porque todos estávamos no deserto.
P - Você escreveu uma crônica para a filha da vizinha. Teve a aprovação da mãe, que queria ver a filha cercada de carinho por não viver com o pai - a filha. Acertou no gênero crônica ou criou uma tertúlia?
R - Que memória, rapaz. Ontem, caminhando, me lembrei que foi uma crônica para V., filha da viúva. Eu fazia uma aliteração de vês, lembro. “V. vê o vento”, algo assim. Não deve ter saído boa coisa. Mas perdi o texto. Eu não mostrei nem a V. nem à mãe dela. Penso que não acertei nem no gênero nem despertei ciúmes.
Você acompanhou bem parte desse processo. Naquele quarto estava um mimeógrafo debaixo da minha cama, “disfarçado” em um saco de papel. E panfletos subversivos. E o entrevistador, caçado pelo exército, escondido. A reunião de todas essas circunstâncias mortais não era coragem, você sabe. É porque era o jeito. Não tínhamos qualquer infra, a não ser dez cruzeiros mensais de contribuição dos simpatizantes.
P - Mirtes, a loira de pernas queimadas, da UBES, durante algum tempo foi a nossa madona. Era bonita, e as queimaduras nas pernas cobriam-na de uma aura de heroísmo, visto que fora queimada pelo CCC. Você escreveu alguma elegia para ela?
R - A presença de Mirtes nos perseguiu mesmo quando ela fugiu do Recife. Aquelas coxas com marcas, aquela voz quente, alta, à beira da histeria, aquele voluntarismo feminino, aquela inteligência brava, eram quase uma fixação coletiva. Penso que alguns de nós imaginou-a aos gritos na cama, acordando toda a vizinhança. Mais flamante, fuck e eloqüente que as mulheres nos filmes eróticos da Suécia que não podíamos ver. Mas a imaginávamos com muito respeito, é claro. Isso quer apenas dizer: nós a imaginávamos e com ninguém comentávamos.
Não escrevi uma elegia endereçada a ela diretamente. Mas a pessoa de Mirtes entrou como um compósito na personagem Cíntia, de “Os corações futuristas”. Agora, uma curiosidade estranha, muito esquisita: Mirtes, depois de ler o romance, me perguntou ao telefone de onde eu havia retirado o nome Cíntia. Eu respondi, não sei, eu procurei um nome que coubesse na personagem e não achei outro. Resposta dela: “Cíntia nasceu na zona da mata pernambucana,
Há uma bruxaria na criação literária que é absolutamente inexplicável.
P - Numa reunião que fizemos num sítio em Igarassu, você fez a segurança. Enquanto nos reuníamos sob uma árvore, você, num lugar alto, com boa visão, ficava sentado, escrevendo. Lembra-se do que escreveu? Ou melhor: da revolução que sonhávamos você fazia um episódio literário?
R - Putz, a tua memória é um flagra. Eu não lembro do que escrevia. Mas sobre aquela reunião escrevi depois o texto “Raquel, a viúva”, Na reconstrução da memória, aquele momento ficou assim:
“Estávamos em um encontro da União Brasileira de Estudantes Secundaristas... E para isso Raquel nos cedeu a sua granja, uma vez mais. Pois bem, não pensem por favor que sou humorista: eu era o segurança. Estava ali para cuidar da segurança de todo o grupo, onde sobressaía a pessoa ruiva, de coxas laceradas por ácido, cujo nome era Mirtes. Melhor, éramos dois seguranças, e não pensem de novo que sou humorista, os seguranças éramos eu e Spinelli. Amigo de infância, alto, magro e com habilidade para uma corrida de tartarugas, Spinelli era o parceiro ideal para sondar e perscrutar o horizonte, se policiais, facínoras e exércitos com metralhadoras nos assaltassem. Que armas tínhamos? – Os olhos. Que instrumentos de prospecção possuíamos? – Eu, um livro de Hemingway, Paris é uma festa (“Esse cara é revolucionário, lutou na Guerra Civil da Espanha”, eu dizia), Spinelli, um volume de Lukács, cuja luz deveria iluminar a nossa vigilância. Posto de observação? – Duas redes, que balançavam e eram boas, na fresca das matas da tarde.
Súbito, um movimento ao longe. Um ser magro e pequeno como uma ave avança por entre as árvores. Eu sabia quem era, na época eu enxergava bem, eu sei na hora que se trata de Geraldo Sobreira, mais conhecido pelo honroso nome de Galo Cego. Ele assim se chamava porque era míope profundo, e descarnado como os galos magros e sem pêlo. Por isso, de brincadeira, anuncio a meu companheiro de segurança:
- Atenção. Um cego sobe o caminho.
Ao ouvir isso, o meu companheiro na segurança corre, à sua maneira corre, para anunciar ao grupo que discutia a luta contra a ditadura:
- Um cego! Cuidado! Um cego vem aí!”
P - Os corações futuristas é um romance de fôlego. Na narrativa, a vivência de um tempo de aprendizado; no título, a gratidão a Edgar Moraes. Você é um romancista telúrico?
R - É impressionante como a história volta. Agora mesmo, meu filho ouve London, London, de 1970, sem saber que escrevo sobre um romance daqueles malditos anos. À primeira vista, o título do livro vem de um verso do frevo de Edgard Moraes, Valores do passado:
“Bloco das Flores, Andaluzas, Cartomantes
Camponeses, Apôis Fum
e o Bloco Um Dia Só
Os Corações Futuristas...”
Mas quando escrevi o romance, o título original ia ser “Os anjos da noite”, para falar da luta subterrânea, que não podia aparecer à luz do dia. Enquanto o escrevia, visitei o ateliê de Zé do Carmo, e lá vi um quadro com os anjos que eu queria para a capa do livro. Como não tinha dinheiro para comprá-lo, fiquei sem o título. Então evoluí para o frevo de Edgard Moraes, porque “futurista” também remete ao tempo futuro de socialismo que os personagens sonhavam, e para isso e por isso entregaram suas vidas.
Imagino que sou telúrico não porque eu quero ser, uma busca. Narro o Recife, escrevo sobre o Recife porque sou filho de dona Maria e seu João, nascido e criado no subúrbio de Água Fria, ao lado do mercado público. Como se não bastasse, todos os meus amigos são recifenses. Como fugir desse destino? Já tentei viver em outras cidades, Goiânia e São Paulo, mas não consegui. Havia sempre em todas as ruas uma falta, ora do cheiro de mar, do Capibaribe, ora do suco de graviola, de cajá, de feijão com charque e jerimum, das coisas mais caras que fazem uma identidade. Uma vez, fiquei amigo de uma adolescente em São Paulo porque ela conhecia Ascenso Ferreira. “Pega o pirão, esmorecido!”. Quando vou ali em Carpina já sinto saudade do Recife.
P - Entre Os corações... e Soledad no Recife há diferenças no estilo. No primeiro, há revoluteios, excessos; no segundo, há precisão... diria uma precisão poética, densa, tão densa que o comprometeu com o porvir. Concorda?
R - Esta é uma pergunta difícil. Neste domingo, às 13 e 30 da tarde, me levanto da cadeira para olhar a rua da janela. Dez minutos depois, volto e respondo.
Concordo, em parte. O interessante é que ambos os livros têm a mesma paisagem física, política e histórica. Mas são, de fato, diferentes.
Um delas é a pretensão do autor. Em “Os corações futuristas” tentei escrever um romance de formação, do tempo em que os jovens, os melhores jovens que conhecemos na ditadura, eram socialistas. Que gente, que pessoas! A minha pretensão não foi pequena – tentei narrar, fazer uma gênese das ideias de esquerda, de generosidade, nas cabeças e vida desses jovens. Penso que não consegui. Mas ainda assim, em “Os Corações Futuristas” há capítulos de que não me envergonho, que releio sem sofrimento, de negação, sem me dizer eu não deveria ter escrito isso. Como aqui Em “Soledad no Recife”, no entanto, não há o objeto buscado de romance de formação. Mas nem por isso o livro é menos ambicioso. A densidade, a precisão, vem da escolha, da economia de espaço e duração.
Em qualquer obra, há um tempo dramático, onde não há cirurgia ou reparo de remédio de salvação. No tempo dramático há uma exigência foderosa que não perdoa nem dá segunda chance. Os personagens, nesse tempo, crescem, crescem e somem. E somam por isso. É claro, fracassei muitas vezes para construir esse livro, que “Os corações futuristas” já anunciava naquele clímax do ano de 1973, no amor por Cíntia. Mas onde eu batia antes nas paredes, como um morcego nas cavernas à procura de saída, Soledad me deu.
De fato, em “Soledad no Recife” sei e sinto que estou mais maduro e exigente com minhas próprias possibilidades de escritor. É verdade, ainda, que nele eu amei com todas as minhas forças essas heroína de quatro povos, de que falava Mário Benedetti. É como se fosse possível salvá-la do cabo Anselmo. É como se o amor que não pudemos falar, agora se falasse, livre. E o que é o amor se não a expressão mais alta de liberdade?
P - Numa entrevista você se confessou apaixonado por Soledad. Foi empatia? Sentiu vontade de se insurgir contra as horas, por nãopoder retroceder no tempo, falar com Soledad e adverti-la do perigo iminente?
R - Diabo! Respondi antes, mas continuo. Sim, foi empatia, mas empatia ainda não diz. Foi uma declaração de amor a todas as mulheres que não pudemos amar. Foi uma declaração a todas que não pudemos salvar, de nós mesmos, da nossa incúria e da maldição daquele tempo da ditadura. É como se fosse uma salvação pela literatura. Quando pinguei o ponto final no livro, fiquei sem saber o que iria fazer a partir dali.
Amei e amo Soledad com todas as minhas forças. Por ela, pela literatura, passei a andar de avião, a enfrentar até mesmo as ameaças da extrema-direita, do cabo Anselmo, que continua ativo e com apoio até hoje. Logo eu, que sou covarde, covardão em um nível insuportável. Todas as vezes em que viajo de avião, em que estou lá em cima, em zona de turbulência, por entre as nuvens, e nada tenho de mim além de mim, este ateu que sabe não terá outra vida se diz: “a que Soledad me leva...”.
P - Numa crônica você confessou que viu um exemplar d'Os corações.. no sebo. A edição do livro foi bancada por você, autor. Sentiu-se um escritor esquecido?
R - Sim, claro. Um livro que a gente escreve é mais que orgânico. Na verdade, todos os livros que amamos ou temos em alta conta são inestimáveis, são um caso pessoal. Eu brigo às vezes com meus filhos quando eles jogam o meu dicionário de lado, como se fosse um objeto-livro apenas. Eu lhes digo: “Não é assim. Isso é um dicionário, entende?”. Ora, ninguém pega uma joia e arremete a um canto. Um livro, que é parte de nós, é muito mais importante que uma joia. É mais que um filho desprezado à calçada pública. Eu não vi o livro na calçada no antigo Trianon, na Avenida Guararapes. Mas um amigo viu e me disse: o canalha, pobre, vilão do camelô anunciava: “Aqui só tem filé”. Entre os filés, a carne dura de “Os corações futuristas”. Eu fiquei tão magoado, que pedi ao amigo pra voltar lá e comprar o “filé”, porque eu tinha vergonha de eu mesmo ir comprá-lo. Vai que por azar alguém me visse no flagrante de amante rejeitado a recolher a sua amada?
Mas para a minha sorte ou azar o livro já havia sido vendido.
P - Você compra livros de autores novos, atuais, ou permanece fiel aos clássicos, aos russos que tinham Tolstói como paraninfo, ou aos franceses da escola de Maupassant?
R - Marco Albertim, o nosso tempo é muito curto, você sabe. Hoje mais do que nunca, pelo tempo que nos resta. Por isso eu prefiro deixar a novidade correr mais, à espera de que outras opiniões, que respeito, recomendem os novos. É um risco, admito. Mas diante da alternativa de horas mortas, me consolo com o pensamento de que nada é mais moderno e recente que um clássico.
Os últimos novos que li foram os chamados poetas marginais do Recife. Senti um alumbramento.
P - Sente enfado por Tchekhov não ser mais uma novidade para você, por já ter passado o prazer da primeira leitura?
R - De modo algum. Tchekhov sempre me surpreende, mesmo quando releio um conto já lido. É claro, a esta altura, na releitura temos um filtro que nota fraturas onde antes pensávamos existir só construção inteiriça. Mas ainda assim há textos impressionantes, moderníssimos, acabados de escrever agora, como aquele sobre o cocheiro que tem uma desgraça e ninguém o escuta. Ou momentos, trechos em contos, onde uma senhora abastada responde que não precisa publicar os livros que escreve, “porque somos ricos”. Ou aquele em que um velho professor diz à filha que lhe pede uma razão para viver: “Eu não sei”. Não vou mais citar de memória nem lembrar “A dama do cachorrinho” nem o conto da Enfermaria, porque você, bom escritor e amante de Tchekhov, conhece tanto ou mais que eu.
P - Algum autor ou autores atuais o impressionam? Quem? Quais?
R - Alberto da Cunha Melo, poeta maior da língua portuguesa, que tem uma obra extraordinária e poemas eternos, que já nasceram eternos. E Nei Duclós, que para mim é o melhor cronista do Brasil hoje. Nei é um escritor de lirismo e contundência impressionantes. Ele vai além deste presente, sem dúvida. E Alberto da Cunha Melo, repito. O nosso último clássico.
P - Se lhe encomendassem uma hipotética entrevista com Machado de Assis, qual pergunta não deveria faltar?
R - Esta é a pergunta mais difícil. Ela é uma ótima sugestão para um próximo texto, para uma possível entrevista que faria com Machado se ele fosse vivo, se ele estivesse vivo e bulindo. Procuraria esquecer que ele é o nosso maior escritor, procuraria não repetir uma “acusação” de que ele se omitiu frente à escravidão negra. Isso porque o conto “O caso da vara” e a crítica de Astrojildo Pereira já responderam. Mas enquanto o texto sugerido por sua pergunta não vem, eu começaria a conversar com Machado pelas beiras, como dizemos no nordeste. Começaria assim:
- Machado, fale por favor de José Alencar.
Depois:
- E a esposa de José de Alencar, como você a vê?
E por último:
- O que o filho de José de Alencar é para você?
A razão de tais circunlóquios se prende ao fato de que diziam, na época, que Machado é que era o verdadeiro Escobar. O filho de José de Alencar seria dele.
Por Marco Albertim
Enviado por Luciano Siqueira