segunda-feira, 12 de julho de 2010

“UTOPIA E BARBÁRIE”

Laerte Braga

O diretor de cinema Sílvio Tendler não imaginava que o goleiro Bruno do Flamengo pudesse vir a ser o personagem principal do FANTÁSTICO da REDE GLOBO. Uma espécie de revista eletrônica, com direito a todo o aparato tecnológico que os dias de hoje permitem que se transforme da vida um mero espetáculo de vulgaridade.

Ao conceber e dar vida a UTOPIA E BARBÁRIE traçou em paralelo entre o que é humano e o que é inumano. Trouxe de volta a História.

Não sei se Kierkegaard se referia ao dizer que “vivemos para frente, mas só podemos compreender para trás” ao fogo, por exemplo. Ou ao sonho, na tentativa de mostrar o caráter unidirecional do tempo. Um certo desânimo na escuridão de janelas fechadas e pregadas, no receio de se poder enxergar uma réstia de luz.

Um amigo me disse que existe certa ingenuidade em acreditar na UTOPIA. Em tom de brincadeira acrescentou que era mais fácil transformar essa “ingenuidade” numa loura siliconada e exuberante em cada ponto e canto e pronto, o problema do vazio estaria resolvido.

Só que a BARBÁRIE é real. Não é loura, não usa silicone e tampouco conhece botox.

E nem a UTOPIA é uma ingenuidade. É o ser humano e olhar o mundo com olhos de gente.

O resgate histórico do filme é compreender para trás e tentar viver para a frente. Nisso não há ingenuidade alguma. Nem desânimo.

“Pão para o corpo e pão para o espírito. Nossa escolha é entre o pão e a estopa. E a estopa não é preciso acrescentar, que nós quase unanimemente escolhemos”. Huxley em O MACACO E A ESSÊNCIA.

A compreensão para trás se delineia mostrada, exposta, exibida.

O sonho, a UTOPIA, “e os ecos dos trovões e dos tiros têm o som de desmoronamento de montanhas. O exército de Zapata, abaixo fazendas, viva povos, abre caminho rumo à cidade do México”. Galeano.

Não enxerguei em UTOPIA E BARBÁRIE só os contrastes. Prefiro o olhar que “é tempo de andar e lutar”. O mesmo Galeano, O SÉCULO DO VENTO.

A linguagem de Tendler é a do desnudar indignado a realidade da BARBÁRIE do espetáculo que “constitui o modelo atual da vida dominante na sociedade. É a afirmação onipresente da escolha já feita na produção e o consumo que decorre dessa escolha”. Débord.

A afirmação da História.

O mesmo cineasta, Tendler, dá conta que no jornal EL MERCURIO, chileno, as forças armadas daquele país se desculparam publicamente pelo assassinato do general Carlos Pratts e sua esposa, por militares da BARBÁRIE de Pinochet. A nota fala em vergonha diante de tal procedimento. Por aqui continua o silêncio mortal da BARBÁRIE guardada em arquivos.

Pratts tinha a integridade da UTOPIA. Não se trata de almoçar enquanto se aguarda o juízo final. Não há tempo.

“É tempo de andar e lutar”.

É evidente que existe uma pedagogia da indignação que se mistura a outra do sonho e que não se cala atemorizada no grito estúpido dos fuzis.

Essas pedagogias estão no filme de Tendler. Não é necessariamente didatismo, longe disso.

O didatismo nessa forma seria como que entrar na fila e esperar a hora da execução.

Os camelôs de Contagem, município mineiro que forma a Grande Belo Horizonte, estão tendo lucros elevados com um filme estrelado por Eliza Samudio. Na capa o retrato do goleiro Bruno, cópia pirata, batendo recordes de encomendas em bancas de jornais.

O filme de Tendler são os olhos firmes e o dedo em riste apontando a História.

Não há diferença alguma entre o FANTÁSTICO, que chamam de “show da vida” e os jornaleiros que vendem os exercícios sexuais de Eliza Samudio.

E daí, solta Bruno por que a moça era assim?

Em cena a UTOPIA. A capacidade de abrir a janela enxergar a roseira e olhar o caminho sentindo a dor de cada pedra, ou grão de areia. Proclamar-se humano e vivo diante da BARBÁRIE.

Resistir.

Uma denúncia, falo do filme? Nem tanto, uma constatação histórica que a UTOPIA não é tanto utópica se nos voltarmos para o caráter humano do ser, mas a BARBÁRIE é a realidade que nos massacra.

Hiroshima ou Nagazaki. O Vietnã, ou o Iraque. Os campos de concentração recheados de judeus, negros, ciganos, hoje os palestinos.

Sílvio Tendler foi além de Kulbrick em DOUTOR FANTÁSTICO. Não importa que os gêneros sejam diferentes. As essências são idênticas. As genialidades também.

Kulbrick sugeriu num dos seus personagens a volta às cavernas. Um general preocupado com a segurança nacional.

Tendler mostrou as cavernas repletas de BARBÁRIES.

E um extraordinário espaço de luzes.

Se percorrido terminamos na UTOPIA, campos floridos e plenos de amor e vida.

Olhar o outro. Compreender todo o complexo montado para sustentar o show da BARBÁRIE.

Bruno é só uma conseqüência num determinado plano e um desvio noutro. Mas, ambos, têm a mesma raiz.

UTOPIA E BARBÁRIE resta sendo o tempo de uma geração que teima em resistir, porque é preciso resistir.

Deveria fazer parte do currículo das escolas de todos os cantos. Com direito a uma hora de meditação depois.

E a opção. Ou UTOPIA, ou a BARBÁRIE. Aí sim, pausa para o almoço.

Ao molho pardo nos palácios sombrios da BARBÁRIE, ou nos escombros do seu entorno. Ou a vida em seu sentido e sua razão de ser na UTOPIA.

Se a felicidade é impossível por ser a soma de todas as pulsões como imaginava Freud, a um só tempo, e assim a morte, a UTOPIA certamente tem espinhos, mas tem também todas as cores e matizes do ser.

E aí, a meu juízo, o segredo do filme. A chance do saber e a perspectiva real da escolha. A herança de uma geração repartida em forma de imagens e servida à mesa num extraordinário trabalho de afirmação da crença na UTOPIA.