Laerte Braga
O diretor de cinema Sílvio Tendler não imaginava que o goleiro Bruno do Flamengo pudesse vir a ser o personagem principal do FANTÁSTICO da REDE GLOBO. Uma espécie de revista eletrônica, com direito a todo o aparato tecnológico que os dias de hoje permitem que se transforme da vida um mero espetáculo de vulgaridade.
Ao conceber e dar vida a UTOPIA E BARBÁRIE traçou em paralelo entre o que é humano e o que é inumano. Trouxe de volta a História.
Não sei se Kierkegaard se referia ao dizer que “vivemos para frente, mas só podemos compreender para trás” ao fogo, por exemplo. Ou ao sonho, na tentativa de mostrar o caráter unidirecional do tempo. Um certo desânimo na escuridão de janelas fechadas e pregadas, no receio de se poder enxergar uma réstia de luz.
Um amigo me disse que existe certa ingenuidade
Só que a BARBÁRIE é real. Não é loura, não usa silicone e tampouco conhece botox.
E nem a UTOPIA é uma ingenuidade. É o ser humano e olhar o mundo com olhos de gente.
O resgate histórico do filme é compreender para trás e tentar viver para a frente. Nisso não há ingenuidade alguma. Nem desânimo.
“Pão para o corpo e pão para o espírito. Nossa escolha é entre o pão e a estopa. E a estopa não é preciso acrescentar, que nós quase unanimemente escolhemos”. Huxley
A compreensão para trás se delineia mostrada, exposta, exibida.
O sonho, a UTOPIA, “e os ecos dos trovões e dos tiros têm o som de desmoronamento de montanhas. O exército de Zapata, abaixo fazendas, viva povos, abre caminho rumo à cidade do México”. Galeano.
Não enxerguei
A linguagem de Tendler é a do desnudar indignado a realidade da BARBÁRIE do espetáculo que “constitui o modelo atual da vida dominante na sociedade. É a afirmação onipresente da escolha já feita na produção e o consumo que decorre dessa escolha”. Débord.
A afirmação da História.
O mesmo cineasta, Tendler, dá conta que no jornal EL MERCURIO, chileno, as forças armadas daquele país se desculparam publicamente pelo assassinato do general Carlos Pratts e sua esposa, por militares da BARBÁRIE de Pinochet. A nota fala em vergonha diante de tal procedimento. Por aqui continua o silêncio mortal da BARBÁRIE guardada em arquivos.
Pratts tinha a integridade da UTOPIA. Não se trata de almoçar enquanto se aguarda o juízo final. Não há tempo.
“É tempo de andar e lutar”.
É evidente que existe uma pedagogia da indignação que se mistura a outra do sonho e que não se cala atemorizada no grito estúpido dos fuzis.
Essas pedagogias estão no filme de Tendler. Não é necessariamente didatismo, longe disso.
O didatismo nessa forma seria como que entrar na fila e esperar a hora da execução.
Os camelôs de Contagem, município mineiro que forma a Grande Belo Horizonte, estão tendo lucros elevados com um filme estrelado por Eliza Samudio. Na capa o retrato do goleiro Bruno, cópia pirata, batendo recordes de encomendas em bancas de jornais.
O filme de Tendler são os olhos firmes e o dedo em riste apontando a História.
Não há diferença alguma entre o FANTÁSTICO, que chamam de “show da vida” e os jornaleiros que vendem os exercícios sexuais de Eliza Samudio.
E daí, solta Bruno por que a moça era assim?
Resistir.
Uma denúncia, falo do filme? Nem tanto, uma constatação histórica que a UTOPIA não é tanto utópica se nos voltarmos para o caráter humano do ser, mas a BARBÁRIE é a realidade que nos massacra.
Hiroshima ou Nagazaki. O Vietnã, ou o Iraque. Os campos de concentração recheados de judeus, negros, ciganos, hoje os palestinos.
Sílvio Tendler foi além de Kulbrick
Kulbrick sugeriu num dos seus personagens a volta às cavernas. Um general preocupado com a segurança nacional.
Tendler mostrou as cavernas repletas de BARBÁRIES.
E um extraordinário espaço de luzes.
Se percorrido terminamos na UTOPIA, campos floridos e plenos de amor e vida.
Olhar o outro. Compreender todo o complexo montado para sustentar o show da BARBÁRIE.
Bruno é só uma conseqüência num determinado plano e um desvio noutro. Mas, ambos, têm a mesma raiz.
UTOPIA E BARBÁRIE resta sendo o tempo de uma geração que teima em resistir, porque é preciso resistir.
Deveria fazer parte do currículo das escolas de todos os cantos. Com direito a uma hora de meditação depois.
E a opção. Ou UTOPIA, ou a BARBÁRIE. Aí sim, pausa para o almoço.
Ao molho pardo nos palácios sombrios da BARBÁRIE, ou nos escombros do seu entorno. Ou a vida em seu sentido e sua razão de ser na UTOPIA.
Se a felicidade é impossível por ser a soma de todas as pulsões como imaginava Freud, a um só tempo, e assim a morte, a UTOPIA certamente tem espinhos, mas tem também todas as cores e matizes do ser.
E aí, a meu juízo, o segredo do filme. A chance do saber e a perspectiva real da escolha. A herança de uma geração repartida em forma de imagens e servida à mesa num extraordinário trabalho de afirmação da crença na UTOPIA.