segunda-feira, 12 de julho de 2010

Palestina, hoje

Muros, check-points, patrulhas: o exaustivo cotidiano palestino nos territórios ocupados

Por *Adriana Mabilia, diretamente da Palestina para Caros Amigos


Cerca de 700 check-points fixos ou volantes e um muro de 790 quilômetros de extensão e oito metros de altura dificultam o acesso da população palestina ao trabalho, à saúde, à diversão – à liberdade, enfim –, violando o direto de ir e vir estabelecido na Declaração dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas. O isolamento exclui os palestinos da globalização e esconde do mundo os efeitos da ocupação israelense na Cisjordânia e na Faixa de Gaza.

A destruição de casas e o confisco de terras não param. Em 1947, a partilha definida pela ONU destinava cerca de 56,5 % da área total para os judeus e 43,5 % para os árabes (ver a cronologia “Conflito que não tem fim”, nas páginas 18 e seguintes). Hoje, os palestinos vivem em 11% dos territórios que restaram depois da Guerra dos Seis Dias, de 1967 – estes mesmos correspondentes a apenas 22% da área total. Israel ignora tanto a Resolução 242 da ONU, de 1967, que determina a devolução dos territórios anexados, quanto o Acordo de Oslo, de 1993, que prevê a total retirada do exército israelense e o fim da construção de assentamentos judaicos em terras palestinas.

Há mais de 440 mil colonos judeus em assentamentos ilegais na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental. E esse número não para de crescer. Em 2005, para abrigar os colonos judeus retirados de 1.800 casas da Faixa de Gaza, o então primeiro-ministro Ariel Sharon construiu 6.500 novas casas em terras confiscadas na Cisjordânia! Com o aval dos Estados Unidos, Israel continua a ignorar as resoluções das Nações Unidas e a desrespeitar a organização. Há dois meses, o governo israelense impediu a entrada de Richard Falk no país, um relator especial enviado à região para investigar as condições de vida dos palestinos nos territórios ocupados.

Em 2007, um relatório do Conselho Econômico e Social da ONU avaliou que as restrições impostas por Israel aos palestinos são a principal causa de pobreza e crise humanitária nos territórios ocupados. “A ocupação israelense tem graves conseqüências para as condições de vida da população palestina, privada de acesso a serviços de saúde, educação, empregos, comércio e programas sociais e religiosos”, disse Amre Nour, representante do Gabinete de Comissões Regionais da ONU. O documento revelou que pelo menos 15% de todas as terras cultiváveis da Cisjordânia, principalmente as mais férteis, foram tomadas com a construção do muro erguido por Israel sob o argumento de proteger o país de atentados. E apontou ainda que a grave situação financeira dos palestinos também se deve aos US$ 60 milhões de impostos alfandegários retidos por Israel.

O número de refugiados passa de 5 milhões (ver o artigo “Os últimos dos excluídos”, nas páginas 14 e 15). É a maior população de expatriados do mundo. De cada três refugiados do planeta, um é palestino. E Israel impede o seu retorno.

Jamila, ainda menina, fugiu com os pais durante a Guerra de 1967. A família vive na Jordânia. Ela estudou, se formou, conseguiu um bom emprego, mas quis voltar à Cisjordânia. Apesar de ser palestina, conseguiu apenas um visto de visitante, por um mês. Entrou em Ramalá e não saiu mais. Fazem cinco anos. “O meu pai morreu na Jordânia e eu não pude ir ao funeral ou amparar a minha mãe. Se cruzar o check-point, eles me pegam. Nunca mais me deixarão voltar. Eu vivo com medo de ser descoberta, mas não quero ir embora. Afinal, este é meu país. Eu nasci aqui”.

Todo palestino, seja ele idoso, maduro, jovem ou criança, tem histórias para contar sobre o bloqueio israelense.

Transtornos, impedimentos e constrangimentos fazem parte da rotina diária dessas pessoas. Segundo um levantamento da ONU, o índice de desemprego nos territórios ocupados oscila entre 30% e 60%, dependendo das ações impetradas por Israel. O ataque à Faixa de Gaza, por exemplo, prejudicou o turismo na Cisjordânia.

Em 2008, mais de 1 milhão de pessoas visitou a Igreja da Natividade, na cidade de Belém. Com o início do bombardeio a Gaza, os turistas desapareceram, com medo.

O dono do hotel onde estou hospedada disse que 40 grupos cancelaram reservas feitas para o mês de janeiro. Sem movimento, os trabalhadores do setor perderam o emprego.

O efeito em cadeia atinge restaurantes, comércio, fabricantes de souvenires. Todos sofrem com a ausência dos turistas. Buscar trabalho fora da cidade nem sempre é possível. Ir e vir pode levar horas e não há garantias de chegar ao destino.

Quem mora em Belém, por exemplo, e trabalha em Ramalá leva cerca de uma hora e meia para chegar ao trabalho, em dia de sorte. E há sempre a possibilidade de a pessoa ficar retida no check-point por horas. Não há aviso ou explicação. Os soldados israelenses simplesmente têm autonomia para liberar ou bloquear a passagem.

Por Jerusalém, a trajeto até Ramalá é de, no máximo, 15 minutos. Mas a maioria dos palestinos é proibida de entrar na cidade. É preciso ter permissão especial para transitar por Jerusalém.

A autorização só é dada a empresários, a palestinos que tenham, também, cidadania americana e a doentes, submetidos a tratamentos especializados.

Mesmo com a permissão, o acesso é restrito, conforme está discriminado no documento. Quem for pego fora da área autorizada, será interrogado, pode ser preso e perderá definitivamente a permissão.

O check-point que dá acesso a Jerusalém, perto da cidade de Beit-Jala, é o maior de todos. Lembra um posto de pedágio das grandes rodovias brasileiras.

Passar pelos check-points é sempre um momento de tensão. Os soldados apresentam-se fortemente armados, com metralhadoras e outros equipamentos.

Eu, que entrei no país como turista, tenho o visto para visitar a região. Mesmo assim, cada vez que cruzo um bloqueio tenho a sensação de que estou fazendo alguma coisa errada e que vou ser flagrada. Talvez seja o ar de desconfiança com o qual os soldados olham para gente. É constrangedor. Embora sendo inocente, me sinto culpada, uma fora da lei. A passagem dos palestinos é mais complicada. Eles têm o carro revistado, passam por detector de metais. Os ônibus são esvaziados para cruzar o bloqueio. Todos os passageiros descem, apresentam suas permissões especiais, são submetidos a interrogatórios, têm a bolsa e a bagagem vistoriadas.

Os doentes não são poupados, nem dentro das ambulâncias. Todo esse procedimento pode levar duas, três horas. Os check-points existem até mesmo nos limites de diferentes partes dos territórios palestinos.

Muitos abandonam o emprego e deixam de visitar familiares para evitar a tensão dos bloqueios militares.

Nedaa, de 23 anos, que mora em Belém, não vê a tia e os primos há um ano.

Fayrouzn pediu demissão do trabalho. Majeda passou cinco anos sem sair de Ramalá. Hanna teve um câncer de mama e precisou se submeter a quimioterapia em Israel. Ela obteve a permissão especial para ter acesso ao hospital, mas ninguém da família, nem a mãe nem o marido nem a irmã, pôde acompanhá-la. “Eu estava física e emocionalmente fragilizada e não pude contar com o apoio da minha família. Israel negou o visto. Eu tinha que ir e voltar sozinha. Chorei muitas vezes no trajeto”.

Os casos de Nedaa, Fayrouzn, Majeda e Hanna são semelhantes às histórias contadas por qualquer palestino.

Não existe um só palestino que não seja afetado de alguma forma pela ocupação. Um levantamento da Organização Mundial de Saúde apurou que, de 2000 a 2007, 69 gestantes, impedidas de passar pelos check-points, deram à luz ali mesmo, na barreira do exército israelense.

Dos 69 bebês, 35 morreram por conta do parto improvisado.

As situações são as mais variadas. Sireen, de 28 anos, está com casamento marcado com um rapaz nascido em Jerusalém. Ela tem acesso à cidade porque estudou nos Estados Unidos e possui cidadania norte-americana. Às vésperas do casamento, Sireen ainda não sabe se o pai poderá levá-la ao altar e se a mãe e a irmã terão permissão de Israel para assistir à cerimônia. “Vou morar em Jerusalém com o meu futuro marido. Talvez a família nunca conheça a minha casa”. Suhair, uma mulher de 40 anos, que trabalha como diretora de uma organização não-governamental para mulheres, define bem a situação: “Não há como evitar. As limitações e os impedimentos da ocupação vêm até você, por mais que você queira ignorá-los e viver o seu dia-a-dia como um cidadão comum”.

Israel mantém hoje 12 mil palestinos presos. Por aqui, não há quem não tenha sido preso ou tenha familiares detidos. Khaula foi presa três vezes: duas, em 1978, aos 15 anos, quando participava de manifestações pacíficas contra a ocupação; e a terceira em 1990, quando já era casada, mãe e não mais militava.

Estava em casa, foi levada para interrogatório e a deixaram na cadeia por dois anos. “Meu marido também estava preso, acusado de fazer discursos contra a ocupação na Universidade. Ele é professor. Fiquei tão traumatizada por deixar meus filhos sem pai nem mãe, aos cuidados dos avôs, que até hoje tenho dificuldade de viajar a trabalho e deixá-los em casa. Evito sempre que posso. Mesmo sendo socióloga, recuso convites para dar palestras. Quando a viagem é inevitável, não durmo à noite, pensando neles”. O pai de Nedaa estava preso quando ela nasceu, e só a conheceu aos 6 meses de vida. A mãe também ficou alguns meses na cadeia.

Quando questiono os motivos das prisões. A resposta é que nem sempre havia ou há motivos. Os israelenses acusam e prendem.

A imprensa mundial repete o discurso do governo israelense que justifica os ataques a Gaza como reação aos foguetes do Hamas, sem divulgar uma linha sequer sobre o que acontece do lado palestino do muro.

Como se a verdade de Israel fosse absoluta.

A ocupação na Cisjordânia continuou durante os ataques a Gaza. Enquanto 1,5 milhão de palestinos eram atacados a bomba em Gaza, outros 3 milhões de palestinos na Cisjordânia viviam a rotina do assédio moral nos check-points e da submissão ao confinamento. E outros 5 milhões de refugiados, a maioria vivendo abaixo da linha da pobreza, estavam longe, espalhados pelo mundo, e sem poder voltar.

Não há uma linha sequer na imprensa sobre o prosseguimento da construção do Muro de Israel, chamado pelos palestinos de Muro da Vergonha.

Eu acompanhei uma manifestação contra o paredão no município de Al-Masara, a 15 minutos de Belém. Quinze pequenos agricultores protestavam à beira da estrada, quando soldados israelenses armados chegaram e cercaram os manifestantes com arame farpado para que eles não pudessem sair dali. Alguns foram detidos. Ayah, mulher de um deles, disse que o muro passa dentro da propriedade dela: “Israel tirou o nosso ganha-pão. Somos pequenos agricultores, vivemos da terra. Eles pegaram toda a terra boa. Não temos quem nos defenda”.

Quando vi o muro pela primeira vez, levei um susto. É um paredão enorme de concreto, de oito metros de altura. As guaritas onde ficam os soldados são ainda mais altas. Do hotel, fui a pé para fotografá-lo. Cinco minutos de caminhada.

Quando cheguei perto, tive a sensação de que o muro se lançaria sobre mim. Era como se ele perdesse a condição de objeto inanimado por tudo o que representa de repressão e confinamento. Fiquei parada, ali, olhando, por uns 10 minutos, até conseguir fazer a primeira foto. Centenas de palestinos perderam e estão perdendo a propriedade por causa do muro. Vi várias casas com janelas e portas a menos de um metro do paredão. O morador olha para fora e dá de cara com o muro. Muitos estão ficando doentes de desgosto. Sawsan, uma tradutora de inglês, francês e árabe, contou que o tio teve dois enfartes depois que o muro cortou a propriedade dele no meio e tomou a reserva de pedras usadas na construção civil. “O negócio foi o sustento da família por gerações. O meu tio não aguentou; morreu de tristeza.”

Os jornais locais trazem fotos e notícias sobre a repressão contra qualquer tipo de manifestação, mesmo pacífica, contra a ocupação.

Enquanto escrevo esta matéria, acesso a versão online do Ma’an. Em Jenin, um rapaz foi preso e teve o computador apreendido. Em Nablus, várias casas foram invadidas por soldados e palestinos foram levados para interrogatório. Em Belém, pelo menos dois adolescentes também foram aprisionados. Em Hebron, os israelenses mataram um motorista suspeito de estar armado.

Hebron. Nessa antiga cidade, a proximidade entre colonos judeus e palestinos gera conflitos diários. Estive lá. Entrei em uma casa destruída pelo fogo. A família estava reunida quando colonos judeus chegaram pelo telhado e atearam fogo à residência. Por sorte, todos conseguiram escapar. Samer conta que esse tipo de agressão é freqüente. “Os colonos judeus querem nos amedrontar e nos expulsar de casa. Depois, eles ocupam o imóvel. Isso aconteceu com muitos vizinhos. Mas eu vou resistir”. Samer mostra as casas de palestinos recém-ocupados por colonos judeus. A dele era a próxima, colada à residência do último vizinho que havia ido embora, com medo. Samer acusa os soldados de serem coniventes. “Se as nossas crianças se defendem com pedras, são punidas. Eles nos atacam com fogo, água fervente, facas, armas e nada acontece”.

Comerciantes palestinos também reclamam das agressões dos colonos. O tradicional comércio de Hebron fica em ruas estreitas. No vão que separa um lado do outro das vielas, existe uma tela de arame que cobre toda a extensão do trajeto. As telas estão cheias de garrafas plásticas, papel higiênico, latas. “Tivemos que nos juntar e colocar o arame para nos proteger do lixo jogado pelos judeus. Eles fazem isso para gente ir embora e deixar tudo pra eles”.

Esses colonos agressores lembram os integrantes dos grupos Irgun e Stern, terroristas que assustavam os palestinos nos anos de 1930, 1940, quando os sionistas começaram a chegar em massa na região. Próximo ao final do Mandato Britânico, em 1948, as ações terroristas recrudesceram. E o Irgun, o Stern, a Haganah e outros grupos armados se uniram para constituir o exército israelense que conhecemos hoje.

*Adriana Mabilia é jornalista. E visitou a Cisjordânia no período da ofensiva israelense a Gaza.