segunda-feira, 12 de julho de 2010

Por que os EUA estão no Afeganistão?

Petraeus: o sucesso pode ser pior que o fracasso

12/7/2010, Tom Engelhardt, Washington, Tom Dispatch – traduzido por Caia Fittipaldi

Em depoimento triunfalista à comissão do Senado reunida para aprová-lo, ocasião em que foi saudado pelos dois lados do plenário como herói conquistador vitorioso, o general David Petraeus anunciou a retirada dos primeiros 1.000 soldados norte-americanos do Afeganistão para ainda esse mês.

“É o início do cumprimento da promessa que o presidente fez ao povo norte-americano, de reduzir o número de soldados enviados para lá em 2009,” disse ele, e mais: “permitam-me destacar, como fiz ao aceitar esse encargo, que manteremos os compromissos que assumimos com o governo e o povo afegãos.”

Em julho do ano passado, quando o general Petraeus substituiu o general Stanley McChrystal como comandante da guerra do Afeganistão, Petraeus foi saudado como “herói dos EUA” pelo senador John McCain; como “o mais talentoso oficial de sua geração” por George Packer do New Yorker; e como “o primeiro guerreiro-diplomata da nação” por Karen DeYoung e Craig Whitlock do Washington Post – típicos comentários que se ouviam naquele momento, de Republicanos e Democratas, de liberais e conservadores. Petraeus, então, garantiu que os EUA estariam no Afeganistão “para vencer”.

No ano que transcorreu de lá até hoje, a guerrilha Talibã foi duramente “contida” e “chegou-se a um ponto de virada”, diz um alto oficial do exército dos EUA, atualmente servindo na International Security Assistance Force no Afeganistão, que só pode falar sob anonimato, conforme as regras de sua corporação. Segundo ele, por todos os índices mensuráveis – número de bombas de fabricação caseira ou minas de beira de estrada, ataques de homens-bomba, atentados dos Talibãs contra funcionários locais, baixas entre os aliados e civis afegãos – a intensidade da guerrilha diminuiu consideravelmente. O exército e a polícia afegãos, embora ainda não sejam capazes de liderar o combate à guerrilha em seu país, foram notavelmente fortalecidos graças às missões de treinamento de EUA e OTAN. O governo do presidente Hamid Karzai, ainda considerado fraco e corrupto, conseguiu dar “cara afegã” àquela guerra.

Deputados e senadores Democratas críticos do general Petraeus e da estratégia de “avançada” [ing. surge] do presidente Obama mantiveram-se estranhamente calados essa semana, enquanto o general visitava, uma a uma, as centrais de poder de Washington, do John Podesta’s Center for American Progress ao American Enterprise Institute, festejado como herói do momento e potencial candidato à presidência em 2016. Como em 2007, quando foi nomeado para supervisionar a “avançada” de George W. Bush no Iraque, e os críticos diziam que não havia “avançada” que desse jeito no Iraque.

Daquela vez, os impressionantes mapas que o general apresentou em seu depoimento ao Congresso, também mostraram vivamente o contrário do que tantos diziam.

A situação no Afeganistão parece estar passando agora pela mesma metamorfose que se viu acontecer no Iraque, depois de atingir o fundo do poço em julho de 2010, e críticos e apoiadores da guerra concordam que, passados nove anos, a guerra está fracassando, a estratégia de contra-insurgência deu em nada e as pesquisas de opinião nos EUA mostram que a guerra do Afeganistão é cada dia mais impopular.

“Um ano faz muita diferença!”, disse um animado alto funcionário do Pentágono. Em apenas 12 meses, como o general Petraeus gosta de dizer, ele conseguiu sincronizar os “relógios” do Afeganistão e de Washington; e no processo, como já fez ná época do Iraque, tirou os jornais e noticiários, da guerra; e a guerra, dos jornais e noticiários.

A última pesquisa Gallup mostra que 63% dos norte-americanos, hoje, “apóiam” o modo como o general vê a Guerra do Afeganistão...

O que significará “o sucesso” no Afeganistão

OK, ainda não aconteceu – e tudo indica que jamais acontecerá. Mas imaginemos, por um momento, que histórias de sucesso comecem a pipocar nos jornais e noticiários, à medida que o mais político dos generais norte-americanos volte a uma Washington agradecida.

Não há indicadores e estatísticas que demonstrem que a Guerra do Afeganistão poderia estar pior do que está hoje. A antiguerrilha, estratégia implantada pelo general McChrystal, mas concebida pelo general Petraeus, dá sinais de fracasso; e a única ‘avançada’ que se vê por lá é dos Talibãs. Em torno desses fatos, ergueu-se um coro de críticas e lamentações, da esquerda, da direita e do centro.

Há quem diga que o fracasso alimenta os críticos, como cadáveres alimentam vermes. Ou, dito de outro modo, é fácil criticar um projeto fracassado dos EUA. Mas... e um projeto bem-sucedido?

E se Petraeus realmente aparecer como o general milagreiro dos belicistas norte-americanos do século 21 – o que, se diga de passagem, só significa que ele teria de ‘conter’ a ‘avançada’ dos guerrilheiros Talibã (o que corresponde à definição moderna de vencer, dado que os belicistas norte-americanos já não usam a palavra “vitória”)?

Hoje, o fracasso cada dia mais auto-evidente da política dos EUA para o Afeganistão tem feito ouvir, cada dia mais, vozes que exigem datas definitivas para a retirada, completa ou parcial, do Afeganistão (ou, do lado dos Republicanos, vozes que protestam, exatamente, contra a fixação de qualquer data), para atacar o presidente Obama. Nessas circunstâncias, ninguém é claro, está preocupado com determinar o que significará, de fato, ter sucesso no Afeganistão. Estamos tão por baixo, há tanto tempo, que já ninguém nem tenta refletir sobre o que seria melhor para os EUA.

Pior, impossível. E temos de refletir sobre isto. Digamos, então, que Petraeus volte a Washington exibindo o que, no pé em que estão as coisas, facilmente passará por triunfo. A pergunta é: e daí? Ou, dito de outro modo: não parece razoável temer que esse tipo de sucesso no Afeganistão será ainda pior, para os EUA, do que o fracasso lá?

Consideremos que, em julho de 2011, os militares norte-americanos mal estarão conseguindo controlar as áreas chaves do país, como Kandahar, a segunda maior cidade do Afeganistão. Os EUA mantêm lá quase 100 mil soldados regulares (e, no mínimo, outros 100 mil mercenários contratados por empresas privadas); e está em marcha uma lenta retirada dos 30 mil soldados que Obama mandou para o Afeganistão em dezembro de 2009. Houve também uma “avançada” de pessoal civil, que triplicou o número de funcionários do Departamento de Estado no Afeganistão. E houve “avançada” também de pessoal da CIA – além de “avançada” de empresas que estão construindo bases militares e que, como sempre, seguem a CIA. Até julho de 2011, haverá também “avançada” dos aviões-robôs comandados pela CIA e que “avançam” todos os dias sobre as fronteiras do Paquistão. Especialistas estimam que a campanha de contraguerrilha dure vários anos, provavelmente, décadas; os aliados da OTAN só falam de sair de lá; e, outra vez segundo especialistas, os Talibãs, cada vez mais profundamente enraizados na minoria pashtun afegã, são simplesmente, em qualquer sentido da palavra, inderrotáveis.

Isso, portanto, seria “o sucesso” dos EUA no Afeganistão, depois de dez anos de guerra. Dado o pesadelo logístico que é garantir apoio a tantos soldados, agentes de inteligência, funcionários civis e empresas contratadas para operar no Afeganistão, os quase 7 bilhões de dólares que se gastam por mês hoje, são preço que os EUA teremos de continuar pagando ainda por muito tempo (calculado por baixo, se se consideram o desperdício com a guerra em si e, mais, o custo de tratar os feridos e os veteranos feridos no corpo e na alma, cujo número só aumentará sempre).

Os frágeis exército e polícia afegãos terão de receber treinamento longo e continuado, num país em que o orçamento nacional é mínimo e que (diferente do Iraque) não tem petróleo nem qualquer fonte de renda imediata; caberá também aos EUA construir e manter o exército e a polícia afegãos. Tudo isso, sem esquecer que a Força Aérea dos EUA terá de ser, ainda por muito tempo, a Força Aérea do Afeganistão. Em outras palavras: “sucesso dos EUA no Afeganistão” significará que os EUA terão de manter o Afeganistão ainda por muito tempo.

Assim sendo, o que de fato os EUA têm a mostrar, obtido em troca de tanto dinheiro, esforço e vidas?

Dando tudo certo, teremos ganho – e vitória sempre precária – um território dividido, arruinado, restos de 30 anos de guerras, terras remotamente distantes dos EUA, do outro lado do planeta. Os EUA teremos ocupado o 5º país mais pobre do mundo. Os EUA teremos ocupado o 2º país mais corrupto do mundo. Os EUA teremos ocupado o principal narcoestado do mundo, o único Estado que produz, com magnitude de monocultura, uma planta que ninguém come e que só serve para produzir ópio. Em termos de guerra global ao terror, os EUA teremos ocupado um país que, segundo cálculos do diretor da CIA, abriga de 50 a 100 (“provavelmente nem isso”) agentes operacionais da Al-Qaeda – que se suspeita que ainda vivam lá, porque lá encontrariam “paraíso seguro”. Em troca disso – e do que virá, sempre pior que isso –, os EUA gastarão, no mínimo, 84 bilhões por ano.

Se se considera o objetivo declarado da guerra – “Não podemos permitir que a Al Qaeda ou qualquer outro grupo transnacional de extremistas estabeleçam santuários fixos em pontos dos quais possam atacar nossa pátria ou nossos aliados”, nas palavras do general Petraeus no discurso ante o Congresso, quando foi aprovado, no final de junho de 2010 –, o sucesso dos EUA no Afeganistão significa praticamente nada, e menos a cada momento. O Afeganistão jamais foi importante, em si, para a al-Qaeda. Sempre foi local (relativamente) conveniente, nunca mais que isso. Os EUA teriam de ocupar muitos outros países aos quais, sendo o caso, seria preciso impedir o acesso da al-Qaeda.

De fato, o que resta da Al-Qaeda original – segundo estimativas da inteligência dos EUA, não chegam a 300, entre líderes e agentes – parece ter-se fixado nas áreas tribais do Paquistão, áreas que o exército dos EUA jamais ocupará, por mais ataques com aviões-robôs que a CIA tente. A inteligência dos EUA sugere, cada dia mais insistentemente, que a Al-Qaeda está em processo de fusão com pequenos grupos jihadistas locais naquelas fronteiras, no Iêmen, na Somália, no Norte da África e sabe-se lá onde mais. Trata-se de uma rede “amorfa e dispersa”, ou talvez já seja só uma ideia de ideologia crua, que existe mais online do que em algum ponto específico do planeta.

Nesse sentido – e essa é a única razão jamais apresentada para a presença dos EUA no Afeganistão –, qualquer “sucesso” da estratégia de contraguerrilha jamais significará coisa alguma, a menos que os EUA, baseados no mesmo pensamento estratégico, invadissem a seguir o Paquistão, a Somália, o Iêmen e inúmeros outros países. Em outras palavras, os EUA teriam de conseguir fazer algo que os anos Bush provaram, definitivamente, que os EUA não conseguem fazer: impor a Pax Americana em todo o planeta Terra.

Sim, o governo Bush ofereceu outras explicações para a Guerra do Afeganistão, inclusive dar cobertura contra o que chamavam de “arco de instabilidade”, que iria do Norte da África à fronteira da China (essencialmente, onde está o coração de petróleo do planeta); empurrar a Rússia de volta para seu velho ‘quintal’ soviético na Ásia Central; e garantir o fluxo do petróleo do Mar Cáspio rumo oeste. Mais recentemente, com a revelação de que há um trilhão ou mais de dólares, em recursos naturais, no subsolo do Afeganistão, o que obriga a acrescentar àquela lista de “causas” da guerra também o interesse das mineradoras ocidentais. Mas o governo Obama nada explica; sendo governo por natureza gerencial, mais que visionário, no que tenha a ver com a política exterior dos EUA, talvez sequer conheça alguma explicação de por que os EUA estão em guerra no Afeganistão.

Seja qual for a explicação do dia, as guerras dos EUA no Iraque e no Afeganistão contam história diferente de todas as explicações já aparecidas.

O que de mais singular parece ter sido produzido pela Guerra do Iraque é, no máximo, o aumento da influência do Irã sobre o Iraque. Economicamente, o Iraque é hoje local mais seguro para que lá operem as petroleiras ou controladas ou de propriedade do Estado, de China e Rússia, além de outras, de outras nações não-ocidentais. No Afeganistão, em termos desses recursos naturais futuros, os EUA parecem estar em guerra para tornar o Afeganistão mais seguro para os investimentos chineses (assim como as recentes sanções ‘debilitantes’ aplicadas contra o Irã também ajudam a tornar o Irã mais ‘seguro’, só no que tenha a ver com ser controlado pelos chineses).

O ponto [final, de interrogação?], da questão afegã

Tudo isso faz com que os massivos investimentos de recursos norte-americanos, inclusive vidas, no Afeganistão, continue a ser impenetrável mistério que não se discute e do qual ninguém fala. Por aí, seja nos vastos campos de papoulas do Afeganistão, seja entre as paredes da burocracia encarregada da segurança nacional em Washington, vagueia uma enorme pergunta jamais perguntada. A mesma pergunta vagueou também, embora claramente perguntada, há quase meio século, sobre o Vietnã, a guerra que os EUA perderam e à qual David Petraeus retornou, em 2006, como fonte a partir da qual produziu o manual de contraguerrilha do Exército que é a base da atual “avançada”.

A pergunta foi: por que estamos no Vietnã? (Foi até título de romance de Norman Mailer.) Em 1965, o governo do presidente Lyndon Johnson produziu um filme de propaganda exclusivamente para responder àquela pergunta, que já começava a arrastar para o fundo do poço os números das pesquisas eleitorais do próprio Lyndon Johnson e de sua “Grande Sociedade”. O filme recebeu o nome de “Why Viet-Nam” [Por que Vietnã?]. Não levava ponto de interrogação, e muito se discutiu esse ponto, no sentido mais literal da discussão, dentro do governo.

O filme começava com o presidente lendo uma carta que recebera de “uma mãe do meio-oeste”, cujo filho estava no Vietnã. Ouve-se a voz do presidente, com aquele sotaque, assumir a pergunta da mulher como se fosse pergunta sua. “Por que Vietnã?”, ele repetia três vezes, enquanto o título do filme surge na tela. Só então, oficial ou extra-oficial, aparecia um grande ponto de interrogação, cobrindo toda a tela, como se cobrisse a própria guerra.

Em certo sentido, esse mesmo ponto de interrogação reapareceu depois da invasão do Iraque em 2003. Mas ainda não apareceu associado ao Afeganistão.

Por causa do 11/9, a Guerra do Afeganistão continuou durante anos a ser considerada guerra (relativamente) “boa” (e em grande medida, guerra esquecida). Até que o fracasso visível trouxe à tona o que os EUA efetivamente já estão pensando sobre o Afeganistão.

É hoje mais que hora de nos propormos a mesma pergunta, apesar de o governo Obama viver a repetir o mantra da Al-Qaeda dos anos Bush, quase palavra a palavra e com as mesmas explicações (nenhuma).

Por que os EUA estamos no Afeganistão? Por que estamos consumindo lá, todas as riquezas que nos faltam aqui?

Já ninguém duvida de que o fracasso da guerra de contraguerrilha no Afeganistão será catástrofe cara demais, à qual os EUA não se podem expor.

Não percamos mais um ano para descobrir que o futuro que lá nos espera é ainda mais terrível que o presente, um “sucesso” que nos prenderá lá por anos e anos, enquanto, em casa, nossos problemas só engordarão.

Quem precisa, além das dificuldades de hoje, também de uma Síndrome de Patraeus?

A artigo original, em inglês, pode ser lido em: Why Are We in Afghanistan?