terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Pepe Escobar: A verdadeira revolução “nuclear” do Irã

18/2/2014, [*] Pepe Escobar, Asia Times – The Roving Eye
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Aiatolá Ali Khamenei
As conversações nucleares entre o Irã e o grupo P5+1 (os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU mais a Alemanha) recomeçam hoje, 3ª-feira (18/2/2014), em Viena. As apostas não poderiam ser mais altas. Será estrada longa e sinuosa. Agendas ocultas dos dois lados querem muito que as conversações fracassem – e não poupam esforços nessa direção.

Gareth Porter
O Supremo Líder Aiatolá Khamenei pode ser interpretado como realista monolítico, quando diz que as conversações não levarão a lugar algum. É como se o Supremo Líder tivesse lido Manufactured Crisis: The Untold Story of the Iran Nuclear Scare [Crise fabricada: a história não contada do medo de um Irã nuclear], livro crucial, de autoria de Gareth Porter, Prêmio Martha Gellhorn, que está sendo lançado hoje em New York. No livro, Porter desmonta completamente toda a narrativa do dossiê nuclear do Irã como foi impingida ao mundo pelo governo de George W Bush, sortimento variado de neoconservadores e o Likud israelense.

E a coisa é ainda muito pior, em termos de possibilidade de que se chegue a algum acordo final ainda esse ano. Segundo Porter,

(...) o governo Obama introduziu nas negociações nucleares o tema das “possíveis dimensões militares”. Significa que os EUA exigirão explicações... para a “prova” que o livro mostra que foi fabricada. É decisão que pode ameaçar a conclusão de acordo definitivo com o Irã.

Enquanto isso, na 3ª-feira (11/2/2014) da semana passada, milhões de pessoas saíram às ruas em Teerã, em celebração massiva dos 35 anos da revolução islâmica. Como é possível?

Apesar de todos os erros econômicos, a taxa de analfabetismo no Irã caiu para bem perto de zero. As mulheres são eleitoras ativas e participantes (tente propor, que seja, o voto feminino, naquele paraíso que é a Casa de Saud). Houve notável progresso científico, mesmo sob sanções duríssimas. E é consenso nacional que o programa nuclear para finalidades civis tem de ser mantido.

Artigo – significativamente reproduzido em al-Arabiya, jornal controlado pela Casa de Saud – tenta, pelo menos, não soar totalmente como propaganda barata, e chama a atenção para a real ameaça contra a revolução islâmica, vinda de jovens alienados em todo o Irã.

Mas esse não é o ponto chave. A república islâmica não se desintegrará amanhã. Muito mais crucial é revisitar hoje as razões chaves pelas quais a revolução aconteceu há 35 anos, e por que, no que tenha a ver com a independência geopolítica do Irã, a revolução, de certo modo, continua popular até hoje.

Assim talvez se consiga lançar alguma luz sobre por que o ocidente – e especialmente os EUA – ainda se recusam a normalizar suas relações com o Irã. O que aconteceu há 35 anos no Irã não foi jamais bem compreendido, para começar, nos próprios EUA. Em termos geopolíticos, aquela foi a verdadeira revolução “nuclear” – um dos desenvolvimentos de mais longo alcance, do que Eric Hobsbawm definiu como “o curto século 20”.

E talvez esse tenha sido o significado do que disse o Supremo Líder, quando disse que as conversações não irão a lugar algum; com certeza não irão, enquanto Washington, especialmente, insistir em continuar a reduzir o Irã a um bando de fanáticos.

Aquele choque do petróleo de Kissinger

Nos idos da presidência de Harry Truman, os EUA apoiavam a ditadura do Xá do Irã, sem medir custos e consequências. Não surpreende que tantos sofram tanto pelo fim daqueles dias.

Mossadegh
Em 1953, depois do golpe da CIA contra Mohammad Mossadegh, o Xá – que vivia a maior parte do tempo na Riviera francesa – foi “convidado” a reinar como fantoche da CIA (John F Kennedy cruzou com eles em festas de arromba na Riviera, e o considerava megalomaníaco perigoso). Em troca de ter reestabelecido os “direitos” dos britânicos sobre o petróleo iraniano, Washington se autoatribuiu 55% das concessões; os britânicos ficaram com o resto.

A CIA treinou a Savak – polícia secreta do Xá. Aquilo, sim, era vida boa! O Xá não apenas foi magnífico no papel de cão de guarda dos interesses políticos e econômicos dos EUA no Golfo Pérsico; dado que o Xá não partilhava o ódio dos árabes a Israel, Telavive também ganhou acesso ao petróleo persa (o que só terminou depois que a revolução do Aiatolá Ruhollah Khomeini chegou ao poder).

O Xá reprimiu com crueldade e perseguiu com fúria todos os partidos políticos no Irã e até massacrou curdos (Saddam Hussein ia anotando tudo). Começou por acreditar em sua própria propaganda, inclusive crer no mito de que ele próprio seria um novo Rei dos Reis. Tornou-se chefe da torcida organizada a favor do choque do petróleo da OPEP de 1973, movimento para o qual obteve luz verde de ninguém menos que Henry Kissinger.

"Tricky Dick" Nixon
Em resumo, foi desenvolvimento da “doutrina Nixon” de 1972, depois que se tornou absolutamente claro que a derrota dos EUA no Vietnã era assunto encerrado. Foi quando Tricky Dicky [1] começou a promover sentinelas avançadas espalhadas por todo “o mundo livre”. E nenhuma região era mais crucialmente importante que o Golfo Pérsico.

O Xá adorou a ideia. Mas vivia a reclamar de falta de dinheiro para comprar aquelas armas que o complexo industrial militar sempre lhe oferecia. Então Kissinger – moleque de recados de David Rockfeller – fez a OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo) subir os preços do petróleo.

Com essa jogada, Kissinger instantaneamente inflou os lucros do Big Oil norte-americano – que naquele momento eram cinco das “Sete Irmãs”, três das quais (Exxon, Mobil e Socal) eram propriedade de Rockfeller. Ao mesmo tempo, dado que Japão e Alemanha Ocidental e o resto da Europa ocidental dependiam muito mais do que os EUA do petróleo do Golfo Pérsico, Kissinger havia construído a máquina perfeita para devastar a competitividade industrial e comercial do Japão e da Alemanha.

Ninguém encontrará nada disso contado nos túrgidos, ambiciosos volumes que Kissinger publica; nem ninguém jamais encontrará provas disso nos registros da imprensa-empresa. Mas isso explica muito sobre o mundo que nasceu daquele “choque do petróleo”.

Como a maioria dos fantoches dos EUA – ah, húbris, húbris! – o Xá nunca compreendeu que não passava de fantoche. Seu modelo econômico corporativo multinacional aplicado ao Irã teve os efeitos previsíveis; mais ou menos como hoje (até na Europa e nos EUA), uma microscópica minoria consumindo como se não houvesse amanhã, e uma vastíssima maioria cada dia mais miserável, e o Xá insistindo em colher dinheiro, em vez de fazer uma reforma agrária que garantisse comida a milhões de camponeses – a maioria dos quais xiitas pios e analfabetos – expulsos de suas terras pelo agrobusiness norte-americano, que os expulsou, como força de trabalho descartável.

Aiatolá Khomeini
Essas massas miseráveis encheram Teerã e outras grandes cidades do Irã, e viriam a ser a base de massa para a revolução de Khomeini. E o resto é história.

Nada é inacessível

Jimmy Carter – aquele Hamlet caipira – quando estava em campanha à presidência contra Gerald Ford, em 1976, admitiu num debate que o Xá torturava. Dois anos depois, já presidente, Carter o apresentava como “um amigo” e “uma ilha de estabilidade”.

Xá Reza Pahlavi
Nos anos 1970s, era para o Irã criar “só” um programa nuclear, dentre outras funções, para intimidar o nacionalismo revolucionário árabe. Agora, na República Islâmica, um programa nuclear civil é apresentado como “ameaça existencial”.

O banqueiro do Xá era David Rockfeller, que nunca se cansava de exaltar o “patriotismo” e a “tolerância” de seu cliente, além do ímpeto modernizador – tudo devidamente papagueado pela imprensa-empresa norte-americana, apesar de a Anistia Internacional e até o próprio Departamento de Estado já terem himalaias de documentos que comprovavam que o Xá era um dos principais torturadores da história moderna. O que interessava é que o Xá trazia excelentes dividendos para o Chase Manhattan Bank.

Ninguém jamais perdeu dinheiro subestimando a ignorância da imprensa-empresa norte-americana. Quando a revolução islâmica começou, a mídia dos EUA, em uníssono, noticiou, para o mundo, que o Xá seria inderrubável; que Khomeini e seus seguidores não passavam de pequena minoria de fanáticos religiosos; e que o real motivo da revolução seria o ímpeto do Xá, de Grande Modernizador (a pauta decidida por Rockfeller), rejeitado por aqueles mesmos muçulmanos fanáticos. É justo dizer que a mesma pauta continua a ser recopiada até hoje.

Quando o Xá fugiu do Irã, toda a imprensa-empresa dos EUA noticiou que ele teria “viajado em férias”. Quando Khomeini embarcou em Paris naquele vôo da Air France e desembarcou em absoluto triunfo em Teerã, não surpreende que ninguém, nos EUA, tivesse sequer qualquer pálida ideia do que estava acontecendo. O “jornalismo” norte-americano preferiu zombar do “fanatismo” de Khomeini – que, naquele momento, empalidecia ante o fanatismo do papa João Paulo II, para o qual as mulheres seriam espécie inferior.

Eric Rouleau
A burguesia iraniana – moderna, socialdemocrata, herdeira da linha política de Mossadegh – conseguiu mobilizar forte apoio dos progressistas em toda a Europa. Num tempo em que o Le Monde ainda era jornal muito bom, não o lixo sub-EUA que é hoje, bastava ler os despachos do correspondente Eric Rouleau, um ás, para confirmar.

Khomeini, por seu turno, tinha carisma (e aquela voz espectral que se ouvia de fitas cassetes) e foi apoiado pela única organização política que o Xá deixara sobreviver, os cerca de 160 mil mulás, que mobilizaram devidamente aquelas massas de miseráveis desalojadas e desempregadas pelos interesses do agrobusiness norte-americano.

Mas, desde o início, Khomeini negociou com a burguesia – como quando nomeou Mehdi Bazargan Primeiro-Ministro e Bani Sadr, Presidente (modernizador de estilo ocidental e socialista). Só depois que o sistema do Xá já fora totalmente erradicado é que Khomeini partiu para expurgar todos que não fossem seus seguidores religiosos – e recriou, em escala menor, o inferno do Xá, só que em nome de Alá. É. Como disse Mao, nenhuma revolução é um piquenique.

Quanto a Jimmy “Hamlet” Carter, jamais reconheceu oficialmente Khomeini como líder iraniano. Washington sequer tentou conversar com ele. Um lampejo de inteligência geopolítica teria feito os norte-americanos tentar uma aproximação, uma chávena de chá, quando ele ainda vivia exilado em Paris... Mas David Rockfeller e Kissinger, seu papagaio de repetição teriam protestado, furiosos; e um Carter acovardado recolheu-se de volta à sua concha. Depois da revolução islâmica, Washington jamais devolveu os estimados US$60 bilhões que o Xá, família e agregados roubaram do povo do Irã.

Esse catálogo de desinformação durante os anos 1970s e 1980s reproduz-se hoje na desinformação dos anos recentes sobre o programa nuclear iraniano. Não surpreende que a maioria dos norte-americanos – e muitos europeus – permaneçam na mais total ignorância.

Dariush Shayegan
Quando Khomeini morreu – e lembro claramente que todos os jornais na Europa, do dia 5/6/1989, dividiam a primeira página, Khomeini e o massacre da Praça Tiananmen ordenado por Deng Xiaoping – o grande filósofo Daryush Shayegan, ex-professor da Universidade de Teerã, publicou artigo soberbo no Libération em que explicou o Grande Quadro, do “legado” do Xá até Khomeini.

Shayegan escreveu que os dois homens, o Xá e o imã, cometeram os mesmos erros fatais e “encarnaram, cada um a seu modo, dois traços tipicamente iranianos: a esquizofrenia cultural e o sonho de grandeza”. O drama todo, portanto, tinha a ver com dois Irãs justapostos: o Irã Imperial e o “Irã que sofre pelo sangue do Mártir”. Os dois manifestavam sonho impossível e, como diria Ruzbehan de Xiraz, o poeta místico do século 12, também a mesma “demência do inacessível”.

Hoje, 35 anos depois da revolução islâmica, o que o iranianos buscam nada tem de inacessível: o fim das sanções ocidentais e que um setor do Ocidente deixe de tratar o país, eternamente, como um bando de “fanáticos” religiosos.

Rússia, China, Turquia, Paquistão, outras nações asiáticas, todas as nações latino-americanas, todas as nações africanas, todos tratam o Irã de igual para igual. À parte o choque entre a “flexibilidade heroica” e o “excepcionalismo” norte-americano, se, pelo menos, o establishment dos EUA conseguisse superar e começar a lidar – com realismo – com o que aconteceu em Teerã há 35 anos! Porque só depois que isso acontecer, aquelas conversações em Viena poderão afinal andar rumo a alguma coisa e, talvez, se possa ter um acordo nuclear definitivo ainda em 2014.




Nota dos tradutores
[1] Lit. “Ricardinho, o Sujo”; aplica-se aí a Richard Nixon; mas vale consultar o Urban Dictionary em Tricky Dick sobre outras possibilidades.
___________________________

[*] Pepe Escobar 1954) é jornalista, brasileiro, vive em São Paulo, Hong Kong e Paris, mas publica exclusivamente em inglês. Mantém coluna (The Roving Eye) no Asia Times Online; é também analista de política do blog Tom Dispatch e correspondente/ articulista das redes Russia Today, The Real News Network Televison e Al-Jazeera. Seus artigos podem ser lidos, traduzidos para o português pelo Coletivo de Tradutores da Vila Vudu e João Aroldo, no blog redecastorphoto.
Livros:
 Obama Does Globalistan, Nimble Books, 2009.

2 comentários:

  1. Amigo Castor,
    A tradução correta é estrada longa e sinuosa " the long and winding road", música dos Beatles.
    Abraços,
    Marroni

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Grato, Marroni
      Já acrescentei o "link"e a correção. "Dasveiz" escapa...
      Abraço

      Excluir

Registre seus comentários com seu nome ou apelido. Não utilize o anonimato. Não serão permitidos comentários com "links" ou que contenham o símbolo @.