7/3/2014, [*] Conflicts Fórum’s
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
O que
interessa é que, seja como for, alguma “transição” já está em andamento na
Síria. Se se considera o exemplo iraniano, a transição não aconteceu pela
remoção e substituição do principal líder político [“mudança de regime”].
Também na Síria, a mudança aconteceu quando a liderança política instalada em
Damasco fez funcionar o próprio sistema político sírio existente. No Irã, o
ímpeto para uma grande deriva no sentimento e no estado de espírito da
população aprofundou uma grande transição, baseada no consenso em torno de uma
abertura nacional, em vez de insistir-se numa entente focada exclusivamente
em planos dos EUA.
Participantes da Revolução Verde no Irã (2008/2009) |
Parecia
irremediável: se se olha atrás, para 2008 e 2009, uma pequena, mas
significativa parte da política iraniana parecia ter-se destacado e dirigia-se
na direção de vir a constituir dissidência importante.
Alguns
comentaristas previram que aquela tendência “verde” cresceria e engolfaria toda
a nação numa polarização amarga (embora, sim, outros tenham alertado que aquela
dissidência, localizada principalmente na região norte de Teerã, não tinha base
real na população em geral). As divisões pareceram, a alguns observadores,
estar selando o futuro do Irã, condenando o país a conflito interno cada vez
mais difícil.
Pois
afinal, como se viu, nada daquilo aconteceu. O Irã manteve-se consistente. Seu
complexo sistema político funcionou. Uma eleição presidencial garantiu
autoridade legítima e clara, e um impulso na direção da transição. Um novo
governo emergiu para avançar nessa nova direção, e – diferente do que diziam as
previsões externas – os dissidentes organizaram-se de volta nas grandes
correntes políticas, em vez de cavar cismas mais profundos. Obteve-se um
acordo. O Irã cederia na autodefesa sempre agressiva ante o mundo exterior, e
retomaria o rumo interno de constituir-se como grande potência regional – mas
não, basicamente, mediante qualquer entendimento com os EUA, como os
Reformistas haviam tentado antes; em vez disso, o Irã optou por uma “abertura global”,
que os Principistas também pudessem aceitar. E isso levaria o Irã a reassumir
seu lugar como importante potência regional e econômica – sem qualquer necessidade
de os EUA aquiescerem. Até aqui, essa transição está sendo um sucesso.
De fato, já
há alguns, na região, que já entendem que nem um fracasso total das
conversações do P5+1 levará, ou possa levar, a um retorno à situação anterior.
O molde quebrou e foi descartado.
Algo
semelhante a isso está novamente acontecendo – nem tanto no Irã, mas na região
como um todo e também no micronível.
Uma visita
à Síria sugere que a Síria já iniciou, precisamente, uma “transição” similar, embora
não idêntica, à do Irã.
O “clima”
emocional em Damasco é, em geral, de otimismo. Os cidadãos comuns não falam
sobre o “processo” de Genebra – de fato, o tema não é sequer mencionado, ou só
muito raramente mencionado internamente. Os pensamentos, em vez disso, estão
concentrados no “processo
de reconciliação”, que vai
ganhando velocidade em todo o país. É fonte de muito otimismo, embora, é claro,
ainda esteja em estágio inicial – e ainda vulnerável à furiosa hostilidade
dos rejeicionistas.
Em vários
locais, vilas e cidades, ex-insurgentes de oposição já negociam acordos locais
com o exército sírio. Sob os termos dos vários acordos, os ex-insurgentes
mantêm as armas (leves) e mantêm também o próprio status e o orgulho como
combatentes, e vão-se integrando formalmente como parte do Exército Sírio – em
unidades locais específicas (a Força Nacional de Defesa). Em resumo,
integram-se à infraestrutura de segurança – protegendo suas vilas e o Estado,
contra os ataques dos takfiri – os jihadistas takfiri,
evidentemente, opõem-se a todas as iniciativas de reconciliação.
Claro que
esse processo não é sempre sem obstáculos. Muita gente, em toda a Síria, perdeu
familiares e amigos e muito
se ressente de que aqueles “bandidos” sejam reabsorvidos
na sociedade, sem qualquer punição ou com alguma espécie de “arranjo” com os
que eles feriram tão profundamente. Mas esse é o custo conhecido de todos os
processos de reconciliação. E essa reconciliação não está acontecendo num
vácuo; está andando passo a passo, paralela e ligada ao processo dos diálogos
nacionais, com consultas a pessoas de todos os níveis sobre como o estado deve
ser modificado para o futuro. Assim como com os aliados da Síria – Rússia e Irã
– há forte sentimento dentro da Síria, de que as coisas não podem voltar e não
voltarão ao modo como foram. Inevitavelmente, depois de conflito político e
social tão profundo, haverá transição significativa.
No
“Comentário semanal” da semana
passada, vimos como a formação
do novo governo libanês produziu uma fórmula pela qual o Movimento Futuro
(sunita) e seus aliados ocupam agora os postos chaves da Segurança e das
Comunicações (o que afasta qualquer possível reserva ou hesitação que o
ocidente tivesse contra manter contatos com agências que mantivessem laços com
o Hezbollah). Esse novo governo libanês passa para o “establishment” sunita a
responsabilidade por proteger o Líbano contra o extremismo sunita. É, como se viu, caso de pôr-se a raposa a
vigiar outras raposas, dado que se sabem dos laços opacos e ambíguos, além de
antigos, que ligam o Movimento 14 de Março àqueles grupos. No Comentário da semana
passada, sugerimos que a formação do governo, como foi feita,
representava um “piloto” para a região como um todo – e para a Síria em
particular.
O Hezbollah
(e implicitamente o Irã), nessa iniciativa libanesa, reconheceram efetivamente
os medos e a sensação de vulnerabilidade dos sunitas (e sauditas). E, para
equacionar também isso, ofereceram uma concessão “piloto”, e teste.
A
infraestrutura da região está sendo reorientada para testes que verificarão se
os sunitas, que podem ter usado jihadistas para suas próprias finalidades,
podem agora confrontá-los, e se os confrontarão. Em certo sentido, é teste para
verificar se um “acordo” regional mais amplo, nessa linha, é possível.
A Síria
também já anda pelo mesmo caminho: está entregando a segurança local a
ex-insurgentes armados (na verdade, a segurança nacional na Síria sempre
incluiu grande porcentagem de sunitas). Se a tentativa der certo, talvez
vejamos o Irã, a Síria e seus aliados dispostos a tentar acomodar também as
ansiedades sunitas e sauditas, em troca de provas de que estão dispostos a
derrotar o extremismo sunita que eles mesmos, antes, incendiaram, mas que agora
já se converteu em conflagração que ameaça consumir também os sunitas
moderados.
Haverá quem
diga que essa não é a “transição” que se exige do governo sírio. O ocidente
enquadrou a transição na Síria nos estreitos limites de “mudança” na própria
chefia do Estado – e nada exige dos insurgentes, além de maior unidade. O
ocidente manteve essa “exigência”, sem considerar suas consequências –
esquecendo todos os riscos muito visíveis de que o conflito civil se
aprofundasse a ponto de gerar anarquia.
Rebeldes passam através de um quintal na aldeia de
Morek, área rural da cidade síria de Hama, em 07/3/2014. Foto: Ali Nasser. |
Pode ser
que essa forma de “transição” venha também a emergir plenamente na Síria (e
talvez no Iraque e no Líbano): uma ampla acomodação das ansiedades sunitas (e
da sensação de serem as vítimas), trará, como retorno, uma real mudança na
atitude dos sunitas ante os jihadistas takfiri. Pode não ser o que
desejam alguns no ocidente, mas pode ser o máximo que conseguirão – se se
provarem positivos os vários testes que estão em curso, na região, nessa
direção.
A questão
é: o establishment da política externa dos EUA e seus agitadores
profissionais tolerarão essas “transições” geradas e administradas
regionalmente? Talvez consigam tolerar. É do interesse dos EUA enfrentar os
jihadistas takfiri, ainda que isso implique fazer surgir o Irã e a Síria
como potências regionais mais fortes.
[*] Conflicts Forum’s visa mudar a opinião ocidental em direção a uma compreensão
mais profunda, menos rígida, linear e compartimentada do Islã e do Oriente
Médio. Faz isso por olhar para as causas por trás narrativas contrastantes:
observando como as estruturas de linguagem e interpretações que são projetadas
para eventos de um modelo de expectativas anteriores discretamente determinam a
forma como pensamos - atravessando as pré-suposições, premissas ocultas e até
mesmo metafísicas enterradas que se escondem por trás de certas narrativas,
desafiando interpretações ocidentais de “extremismo” e as políticas
resultantes; e por trabalhar com grupos políticos, movimentos e estados para
abrir um novo pensamento sobre os potenciais políticos no mundo.
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