8/3/2014, [*] MK Bhadrakumar, Indian Punchline
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Dirigentes máximos dos países do CCG - Conselho de Cooperação do Golfo em 2010 |
O mais recente movimento da
Arábia Saudita, que incluiu
mais grupos em sua lista de “organizações terroristas”, pode parecer parte de
algum novo pensamento em Riad, para livrar-se de seus velhos laços com grupos
extremistas; na realidade, está começando um novo capítulo da política no
Oriente Médio.
Em particular, a inclusão da Fraternidade Muçulmana e do
movimento Houthi do Iêmen, na “lista” de vigilância saudita, é muito
visivelmente baseada em considerações políticas, muito mais do que motivada por
alguma ameaça de segurança.
O desafio imposto pela Fraternidade é sobretudo ideológico
e político. A atratividade do grupo político transnacional espalha-se entre a
classe média letrada saudita e o regime vê, aí, um perigo existencial.
Curiosamente a Fraternidade está usando o Qatar como base
de operações (desde depois do golpe no Egito, ano passado), para disseminar sua
mensagem política para outros estados árabes do Golfo. Criaram-se por isso
tensões nas relações sauditas-qataris, mas Doha não deu atenção às repetidas
demandas, por Riad, para que cercasse os Irmãos.
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Na 4ª-feira passada (26/2/2014), em movimento coordenado,
Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Bahrain retiraram de Doha os seus
embaixadores, em protesto contra o apoio do Qatar à Fraternidade Muçulmana. Os
qataris manifestaram desapontamento, mas mais nada; e seguiram adiante.
Mas não há dúvidas de que surgiu uma grave
divisão dentro do Conselho de Cooperação do Golfo,
que pode vir a revelar-se letal
para a própria existência, que já dura 33 anos, do grupamento.
Entrementes, Omã e Kuwait dissociaram-se do movimento dos
sauditas, de retirar os embaixadores. Mas não se veem sinais de que esses dois
países estejam interessados em acompanhar o ataque dos sauditas contra os
Irmãos. Essa é a mais recente evidência de que a capacidade saudita para
comandar as decisões dentro do CCG está corroída.
As antigas tensões entre sauditas e qataris, que já vêm de
há um século, tomaram nova direção com o advento da Primavera Árabe. O Qatar
identifica-se com o programa político da Fraternidade, para a transformação democrática
do Oriente Médio.
Nisso, tem um aliado no atual governo da Turquia do
primeiro-ministro, Recep Erdogan.
Não surpreendentemente, a junta militar que governa o Egito
já rebaixou os laços diplomáticos do Cairo com Ankara e Doha – o que não parece
ter abalado os dois países, que permanecem convencidos de que estão do lado
certo da história.
Assim também, o movimento Houthi no Iêmen é essencialmente movimento de
libertação nacional e é, mais uma, ameaça política, para a Arábia Saudita; as
credenciais dos houthis como “grupo terrorista” são difíceis de comprovar.
Menino passa por casa danificada durante confrontos recentes
entre Houthis e salafistas
armados pelos sauditas no distrito Dammaj, província
iemenita de Saada (14/1/2014).
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Os houthis são conectados a uma plataforma que exige que Riad devolva
territórios
do Iêmen, fabulosamente ricos em petróleo, que a Arábia Saudita anexou em 1934,
e que são contíguos ao território tradicional dos houthis. É claro que a Arábia
Saudita não devolverá aqueles fantásticos campos de petróleo. Agora, com o
advento da Primavera Árabe no Iêmen, os houthis identificaram-se com as
aspirações democráticas do povo.
De fato, o Qatar apoia os houthis (e o Irã também é
simpático ao grupo). A ameaça comum, que liga os Irmãos (que são sunitas) aos
Houthis (que são xiitas) é que ambos são movimentos progressistas com extensas
e profundas raízes de apoio popular de base, que pregam princípios democráticos
e tolerância política; e ambos foram vítimas de repressão pelo estado.
Pode-se dizer que o que tem de ser olhado de perto e
examinado é o passado apoio que a Arábia Saudita deu a grupos salafistas e ao
Al Islah no Iêmen afiliado da al-Qaeda. De fato, os houthis efetivamente
resistiram contra esses, sim, grupos terroristas.
Logicamente a Arábia Saudita aumentará, agora, a pressão
contra o Qatar. Talvez classifique o Qatar como “estado patrocinador de
terroristas”? Riad pode esfriar as relações com o Qatar. Mas, seja como for, o
Qatar não pode ser facilmente isolado.
O Qatar é o país mais rico do mundo em termos de riqueza per
capita e mantém política externa pragmática, que se alinha com os EUA (e às
vezes negocia abertamente com Israel), mas que também cuida de manter boas
relações com o Irã e com o Hezbollah no Líbano. O Comando Central dos EUA está
baseado no Qatar, o que não impede o Irã de manter contatos com Doha (e
vice-versa).
Com a aproximação da Copa do Mundo da FIFA de 2022, as
frustrações sauditas só crescerão. Qatar, como país anfitrião, espera usar o
evento para integrar-se ainda mais à comunidade internacional. E mobilizará
tudo que o dinheiro possa comprar.
Também nisso o Qatar agarra-se à modernidade como peixe às
águas; em comparação, a Arábia Saudita parece poça de água podre. Mas as
ambições do Qatar permanecem como enigma, envoltas em mistério. Como explicar
as afinidades do Qatar com a Fraternidade e com os houthis?
A verdade nua e crua é que ambos, os Irmãos e os Houthis,
são perigo existencial aos olhos da família real saudita. Mas o Qatar não é
exatamente uma pujante democracia.
Para entender paradoxos, às vezes, é útil remexer na
história e recordar, nesse caso, que, em 1913, o fundador do moderno estado
saudita, Abdul Aziz, tomou a fatídica decisão de ocupar o Qatar e anexá-lo à
província Ahsa da Arábia Saudita; foi necessária imensa pressão, pelo então
patrão imperial britânico por dois anos, para dissuadir o saudita de sua
intenção, e convencê-lo a, em vez da anexação, fazer o reconhecimento formal
das fronteiras do Qatar.
Mesmo assim, muitos anos depois, já em 1965, Riad usou
forças militares para tomar do Qatar o posto de fronteira de al-Khafous. E,
claro, o Qatar fez muito barulho para expor o papel dos sauditas como
articuladores de um golpe militar abortado, em 1995. Como tantas vezes
acontece, há memórias históricas que simplesmente se recusam a morrer e
permanecem aninhadas na consciência dos povos.
[*] MK Bhadrakumar foi diplomata de carreira
do Serviço Exterior da Índia. Prestou serviços na União Soviética, Coreia do
Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão e Turquia. É
especialista em questões do Afeganistão e Paquistão e escreve sobre temas de energia
e segurança para várias publicações, dentre as quais The Hindu, Asia Online e Indian Punchline. É o filho mais
velho de MK Kumaran (1915–1994), famoso escritor, jornalista, tradutor e
militante de Kerala.
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