14/3/2014, [*] Robert Parry, Consortium News
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Entreouvido na birosca do “Olho Seco” na
Vila Vudu: Esse artigo,
como praticamente todos os artigos dos democratas (“d” minúsculo)
norte-americanos sinceros, parte do pressuposto segundo o qual só os EUA
pensam, no universo.
Por causa disso, e ante todas as
evidências inescapáveis de que os EUA não são país democrático, os democratas
norte-americanos (sinceros, mas ingênuos), sempre mostram esse tom de frustrado
pessimismo (“vai tudo muito mal”, o “mundo está acabando”), que se lê no artigo
abaixo.
De fato, todos os democratas norte-americanos,
inclusive os mais sinceramente democratas, todos eles, cometem sempre o mesmo
erro:
– raciocinam como “se os EUA não forem
democráticos... o mundo inteiro está(ria) condenado”.
Esse pressuposto é vicioso. Não é
verdade que a democracia universal depende(ria) de haver melhor democracia nos
EUA.
A verdade é que a viciosa “democracia”
norte-americana só tem poder para DESTRUIR democracias pelo mundo, mas absolutamente não tem poder (ou não tem
desejo político democrático) para PROMOVER democracias pelo mundo.
Assim sendo, se a viciosa “democracia”
norte-americana fracassa, isso não implica que o mundo esteja fracassando. Isso
só implica que os EUA estão fracassando. E quanto mais passe o tempo, sem que
os EUA se democratizem eles mesmos, mais fracassarão.
O artigo adiante só interessa porque
expõe com bastante clareza o modo como agem, pelo mundo, as ONGs mantidas
pelo governo (que nunca é democrático, nas relações com o resto do planeta) dos
EUA.
George W. Bush - "Missão Cumprida" no Iraque... |
Em meados
da década passada, nuvens de tempestade acumulavam-se sobre os neoconservadores
norte-americanos: a “mudança de regime” que tentaram n Iraque era um desastre;
a “Missão Cumprida” do presidente George W. Bush era piada que se ouvia pelas
ruas; a imprensa começava a publicar opiniões sobre o “lado obscuro” da atuação
deles na “guerra ao terror”; e o público estava farto de sangue e dinheiro
desperdiçados.
Seria de
esperar que os neoconservadores tivessem sido banidos para os confins mais
distantes da política norte-americana, para tão longe que não se ouviria outra
vez falar deles. Pois nada disso. Em vez de sumir, os neoconservadores provaram
que são capazes de permanecer no poder e, agora, reemergem como arquitetos da
estratégia dos EUA para a Ucrânia.
Os
neoconservadores trabalharam nas coxias e instigaram o golpe de 22 de fevereiro/2014
que derrubou presidente democraticamente eleito, com a ajuda de milícias
neofascistas; os neoconservadores arrastaram a Washington oficial para um
frenesi de apoio bipartidário ao governo do golpe; e agora trabalham a favor de
uma nova Guerra Fria, caso o povo da Crimeia decida separar-se da Ucrânia e
unir-se à Rússia.
Há algumas
semanas, a maioria dos norte-americanos sequer havia ouvido falar de Ucrânia e
muito menos sabia que a Crimeia fosse parte da Ucrânia. Mas, de repente, o
Congresso dos EUA, normalmente sempre obcecado com o déficit, já está mandando
bilhões de dólares para ajudar o golpe em Kiev, como se o futuro da Ucrânia
fosse a questão mais importante que o povo norte-americano tivesse de
enfrentar.
Até
jornalistas e comentaristas que de início resistiram ao estouro da manada
comandado pelos neoconservadores já se “alinharam”, aparentemente por medo de
serem rotulados como “apologistas” do presidente Vladimir Putin da Rússia. De
fato, já é quase impossível encontrar político ou “especialista” midiático que
não se tenha alinhado ao lado dos neoconservadores em sua posição de beligerância
na questão da Ucrânia.
Pois os
céus parecem ainda mais abertos para eles. Os neoconservadores podem esperar,
que aparecerão ainda mais poderosos, à medida que o presidente Barack Obama vá
se tornando “pato manco” e, com ele, também suas iniciativas diplomáticas para
a Síria e para o Irã (em parte porque a crise da Síria distanciou muito os
presidentes Obama e Putin), e a Democrata (mas com clara tendência
neoconservadora) Hillary Clinton já conseguiu espantar, de medo, qualquer
oposição de peso à sua indicação como candidata à presidência para 2016, e até
seus rivais Republicanos já se beneficiam das bênçãos dos neoconservadores.
Hillary Clinton, candidata à presidência dos EUA em 2016 pelo Partido Democrata |
De fato,
essa virada surpreendente dificilmente seria prevista, depois que os
neoconservadores arrastaram os EUA para a catastrófica guerra no Iraque e
aquele horrível morticínio, que incluiu a morte e a incapacitação de dezenas de
milhares de soldados norte-americanos e o desperdício de talvez $1 trilhão de
dólares dos contribuintes norte-americanos.
Na eleição
de 2006 para o Congresso, os candidatos do “Velho Grande Partido” [orig. Grand
Old Party, GOP (os Republicanos)] levaram uma surra, porque Bush e
os Republicanos estavam associados, muitos deles, com os neoconservadores. Na
eleição de 2008, a
senadora Hillary Clinton, neoconservadorista, que havia votado a favor da
Guerra do Iraque, perdeu a indicação como candidata Democrata para o senador
Barack Obama, que se opusera à invasão do Iraque. Na sequência, na eleição
geral, Obama derrotou o porta-estandarte dos neoconservadores, John McCain, e
chegou à Casa Branca.
Naquele
momento, parecia que os neoconservadores enfrentavam sérios problemas. De fato,
vários deles tiveram de limpar as gavetas de deixar o governo, para procurar
emprego em think tanks, institutos ou fundações e em outras organizações
não governamentais (ONGs) amigas de neoconservadores.
Ainda mais
significativo: a grande estratégia neoconservadora parecia ter caído em
descrédito. Muitos norte-americanos viam o sonho dos neoconservadores, de mais “mudança
de regime” no Oriente Médio – em países que se opunham a Israel, principalmente
Síria e Irã – como nada além de um pesadelo sem fim de morte e destruição.
Depois de
assumir o governo, o presidente Obama falou a favor do fim das guerras de Bush
e de os norte-americanos cuidarem melhor de “construir a nação em casa”. O
grande público pareceu concordar. Até alguns Republicanos de direita estavam
começando a repensar a defesa que os neoconservadores faziam de um Império
Norte-Americano, e a reconhecer o impacto devastador daquele projeto sobre a
República Norte-americana.
O revide
Mas os
neoconservadores de modo algum estavam derrotados. Eles se haviam posicionado
muito espertamente.
Ainda
controlavam as operações pagas pelo governo norte-americano, como o Fundo
Nacional para a Democracia [orig. National Endowment for Democracy (NED)];
ainda mantinham posições proeminentes nos think-tanks, institutos e
fundações, do Instituto das Empresas Norte-americanas [orig. American
Enterprise Institute] ao Conselho de Relações Exteriores [orig. Council
on Foreign Relations] e à Brookings
Institution; tinham aliados poderosos no Congresso, como os senadores
McCain, Lindsey Graham e Joe Lieberman; e dominavam todos os programas de
entrevistas e “análises” da televisão comercial e as colunas assinadas em
jornais da imprensa-empresa, especialmente no Washington Post, o jornal
da capital.
John McCain (R-Arizona) e Lindsey Graham (D-Carolina do Sul) |
Desde o
final dos anos 1970s e início dos 1980s, quando pela primeira vez emergiram
como força notável em Washington, os neoconservadores tornaram-se “fonte
interna”. Eram, simultaneamente, admirados e temidos por sua ferocidade
discursiva, mas – mais importante para sua sobrevivência de longo prazo –
haviam assegurado livre acesso ao dinheiro do governo, inclusive ao dinheiro
grosso do Fundo Nacional para a Democracia [orig. National Endowment for Democracy (NED)], cujo
orçamento passou a ser superior a $100 milhões durante os anos Bush.
O Fundo
Nacional para a Democracia [orig. National Endowment for Democracy (NED)], fundado em 1983, é mais
conhecido por investir na “construção da democracia” em outros países (quer
dizer: em campanhas de desestabilização estilo CIA, conforme o ponto de
vista do leitor), mas grande parte do dinheiro do Fundo Nacional para a
Democracia [orig. National Endowment for Democracy (NED)] vai, na realidade, para ONGs
em Washington, o que implica que viraram linha de sobrevivência para operadores
neoconservadores que se viram ameaçados de desemprego com a chegada de Obama.
Enquanto
defensores ideológicos de outros movimentos fracassados tiveram de voltar para
casa ou mudar de profissão, os neoconservadores encontraram meios financeiros
de sobrevivência (do Fundo Nacional para a Democracia [orig. National
Endowment for Democracy (NED)]
e de outras muitas fontes), e o barco de propaganda ideológica deles pôde atravessar
os dias de mau tempo.
Barack Obama |
E, apesar
da oposição de Obama à obsessão dos neoconservadores com guerras sem fim, ele
não os excluiu de seu governo. Neoconservadores que se haviam implantado fundo
no governo dos EUA como “funcionários civis” ou “oficiais de carreira do
serviço diplomático” permaneceram como “força de retaguarda”, procurando novos
aliados e aproveitando o tempo.
Obama criou
esse problema de “força de retaguarda” com a fatídica decisão, tomada em
novembro de 2008, de encampar a tendenciosa ideia de “uma equipe de rivais”,
que incluiu manter o agente Republicano (e aliado dos neoconservadores), Robert
Gates, no Departamento de Defesa, e pôr a Democrata-mas-com-tendências-a-falcão-Republicano
Hillary Clinton, também aliada dos neoconservadores, no Departamento de Estado.
Os neoconservadores, provavelmente, quase nem acreditaram na própria sorte!
De volta às
boas graças do poder
Longe de
terem sido marginalizados e afastados – como com certeza mereciam ser, depois
do fiasco da Guerra do Iraque – neoconservadores chaves continuaram a ser alvo
da mais alta e distinta consideração. Como se lê em suas memórias Duty,
Gates deixou que o teórico militarista neoconservador Frederick Kagan o
persuadisse a apoiar a “avançada” de mais 30 mil soldados norte-americanos,
enviados para a Guerra do Afeganistão, em 2009.
Robert Gates |
Gates
escreveu que:
(...) uma importante estação do meu “pilgrim’s progress” [1]
do ceticismo até o apoio a enviar mais
soldados para o Afeganistão, foi um ensaio do historiador Fred Kagan, que me
enviou um rascunho antes de o ensaio ser publicado.
O
secretário da Defesa, na sequência, colaborou com remanescentes do alto comando
de Bush, inclusive com o general favorito dos neoconservadores, David Petraeus,
e com a Secretária de Estado Clinton, para empurrar Obama para cordas
políticas, nas quais ele sentiu que não teria escolha senão acolher a
recomendação dos dois para a “avançada”.
Obama, como
se sabe, arrependeu-se da decisão quase imediatamente depois de tomá-la. A
“avançada” afegã, como, antes, a “avançada” na Guerra do Iraque, custou a vida
de mais mil e tantos soldados norte-americanos, mas, feitas as contas, nada
mudou na direção estratégica da guerra.
Robert Kagan |
No
Departamento de Estado de Clinton, outros neoconservadores foram postos em
cargos influentes. O irmão de Frederick Kagan, Robert, neoconservador do
governo Reagan e cofundador do projeto neoconservador Projeto para um Novo
Século Norte-Americano [orig. Project for the
New American Century], foi nomeado
conselheiro do Foreign Affairs Policy Board. E a
secretária Clinton também nomeou a esposa de Robert Kagan, Victoria Nuland, ao
cargo de porta-voz do Departamento de Estado.
Embora a
tal “equipe de rivais” de Obama tenha na sequência deixado a cena (Gates, em
meados de 2011; Petraeus num escândalo sexual no final de 2012; e Clinton no
início de 2013), todos esses três garantiram aos conservadores tempo
crucialmente importante para respirar, reagrupar-se e se reorganizar. Assim,
quando o senador John Kerry substituiu Clinton como Secretário de Estado (com a
considerável ajuda de seu amigo neoconservador John McCain), os
neoconservadores do Departamento de Estado estavam outra vez posicionados para
retorno com muito poder.
Nuland foi
promovida a secretária de Estado assistente para Assuntos Europeus, e assumiu
como missão principal derrubar o governo da Ucrânia, que se tornara alvo
preferencial dos neoconservadore porque mantém laços próximos com a Rússia,
cujo presidente Putin estava dificultando as estratégias de “mudança de regime”
dos neoconservadores na área que eles mais valorizam, o Oriente Médio. Pior
ainda: Putin estava ajudando Obama a evitar guerras na Síria e no Irã.
Assim, como
o presidente do Fundo Nacional para a Democracia [orig. National Endowment
for Democracy (NED)] Carl
Gershman escreveu no Washington Post em setembro de 2013, a
Ucrânia tornou-se “o maior prêmio”; mas acrescentou que alvo ainda mais
sumarento, além da Ucrânia, era Putin, o qual, Gershman acrescentou, “pode
descobrir-se no lado perdedor, não na região próxima, mas dentro da própria
Rússia”.
Em outras
palavras, o objetivo final no jogo da Ucrânia não é só “mudança de regime” em
Kiev, mas “mudança de regime” em Moscou. Se conseguir livrar-se de Putin, homem
de pensamento independente e vontade firme, os neoconservadores, ao que parece,
deliram com conseguir pôr um de seus delegados (talvez uma versão russa de
Ahmed Chalabi) no Kremlin.
Isso feito,
então os neoconservadores poderão avançar, sem empecilhos, na direção de seu
plano original de “mudança de regime” no Oriente Médio, com guerras contra a
Síria e o Irã.
Fato tão
perigoso – e ensandecido – como essa visão dos neoconservadores (que levanta o
espectro de possível confronto nuclear entre EUA e Rússia), os neoconservadores
parecem estar claramente de volta ao controle da política exterior dos EUA. E
em posição na qual quase não podem perder, se se consideram os seus exclusivos
interesses, tome a crise da Ucrânia o rumo que tomar.
Vladimir Putin |
Se Putin
recuar ante os “ultimatos” dos EUA sobre Ucrânia e Crimeia, os neoconservadores
poderão bater no peito e declarar que os mesmos ultimatos devem ser feitos aos
outros alvos dos neoconservadores, isto é., Síria e Irã. E se esses países não
se submeterem, não haverá escolha, além de deixar que os EUA ponham-se a
bombardeá-los, com mais “choque e pavor”.
Por outro
lado, se Putin não recuar e a Crimeia decidir separar-se da Ucrânia e voltar a
ser parte da Rússia (país com o qual a Crimeia mantém laços antigos, desde os
1700s de Catarina, a Grande), nesse caso os neoconservadores surfarão a onda do
ultraje da Washington oficial, e exigirá que Obama extinga qualquer via para
qualquer futura cooperação com Putin – o que deixará aberta a via para os EUA
escalarem no confronto com Síria e Irã.
Ainda que
Obama consiga se manter à tona, e contorne as exigências dos neoconservadores
por mais dois anos, sua estratégia conciliatória, de colaboração com Putin para
resolver as questões com Síria e Irã estará já morta, ao final de seu mandato.
Os neoconservadores bem podem esperar que suas próprias velas voltem a
inflar-se, quando, seja uma Hillary Clinton presidente, seja algum outro
Republicano (que precisará do apoio dos neoconservadores) chegue à Casa Branca
em 2017.
Mas os
neoconservadores já podem começar a comemorar. Conseguiram atravessar a
tempestade.
Nota dos tradutores
[1] Referência a The Pilgrim’s Progress from This World to That Which Is
to Come; Delivered under the Similitude of a Dream [O Avanço do Peregrino,
desse mundo até o próximo; apresentado sob a forma de um sonho] é uma alegoria
cristã do caminho de vida do cristão, escrita por John Bunyan e publicada em 1678. A teologia
Protestante explícita de The Pilgrim's
Progress tornou-o muito popular. Em 2004 e 2008, um espetáculo
musical (letras e músicas de Kenneth Wright), foi apresentado no Life House Theater,
em Redlands, Califórnia.
___________________
[*] Robert
Parry é
um jornalista investigativo norte-americano. Recebeu Prêmio George Polk de Reportagem Nacional em 1984 por seu
trabalho na Associated Press sobre o caso
Irã-Contras quando descobriu envolvimento
de Oliver North. Trabalhou como
correspondente em Washington para a Newsweek.
Em 1995 fundou o ConsorctiumNews, um
espaço de noticiário liberal online dedicado ao jornalismo investigativo. De 2000 a 2004, trabalhou para agência Bloomberg. Parry escreveu
vários livros, incluindo Lost
History: Contras, Cocaine, the Press & “Project Truth” (1999) e Secrecy
& Privilege: Rise of the Bush Dynasty from Watergate to Iraq (2004).
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Registre seus comentários com seu nome ou apelido. Não utilize o anonimato. Não serão permitidos comentários com "links" ou que contenham o símbolo @.