14/3/2014, [*] Conflicts
Forum’s
Traduzido pelo pessoal
da Vila
Vudu
Países do CCG - Conselho Consultivo do Golfo (Pérsico), em amarelo |
O estresse e o torvelinho que se veem no centro do mundo
sunita estão arrastando outros membros do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG)
para o mesmo vórtice. O grupamento político, o CCG, liderado pela Arábia
Saudita, está sendo pressionado, e literalmente
desconjuntado por pressões exercidas sobre ele pela
repentina reconfiguração da política saudita – a saber, um decreto real que
criminaliza os sauditas que estejam lutando fora do país e que classifica como “terroristas”
vários grupos jihadistas (mas, importante, não
todos os grupos) e, em separado, também inclui a
Fraternidade Muçulmana. A Arábia Saudita (sentindo o despertar da Fraternidade
Muçulmana depois do uso, pelo Egito, de força repressiva e munição viva) está
pressionando todos os Estados do Golfo, e outros estados onde haja membros
ativos da Fraternidade Muçulmana, a “decretar” que o grupo é organização
terrorista. Como observou um comentarista sobre o Golfo, a Arábia Saudita
parece determinada a “varrer” a FM na região, de uma vez por todas.
A Arábia Saudita não está decidida a “varrer” só a
Fraternidade Muçulmana, mas, também, a crítica indireta das políticas sauditas,
particularmente as críticas que o Marechal de Campo Sisi (Presidente do Egito
após o golpe militar que derrubou o Presidente Mursi) vem distribuindo pelas
ondas de televisão qataris. Qaradawi deve ser declarado persona non grata,
e a rede al-Jazeera (da qual há muito tempo se diz que seria simpática à
Fraternidade Muçulmana) contida, ou, preferentemente, fechada, insistem os
sauditas.
A pressão sobre o Qatar é intensa. O Huffington Post noticia
que os sauditas também exigem o fechamento de dois think-tanks norte-americanos
baseados em Doha. Os embaixadores sauditas, do Kuwait e dos Emirados Árabes
Unidos, já foram retirados de Doha – e o governo egípcio, agora anunciado como
futuro membro do GCC, alinhou-se
ombro a ombro, com a Arábia
Saudita e os Emirados Árabes Unidos contra o Qatar e a Fraternidade Muçulmana.
Subjacentes contudo ao torvelinho no CCG, há duas questões
separadas, nas quais a Arábia Saudita mudou de posição dramaticamente e
repentinamente (de modo que vai bem além da específica rixa com o Qatar), que
afetam de modos muito diferentes os interesses dos estados do Golfo, e que os
põem em rota de colisão com a Arábia Saudita.
Manifestação no Cairo dos apoiadores da Fraternidade Muçulmana em 14/2/2014 |
Quanto à Fraternidade Muçulmana, a Arábia Saudita, nos anos
60s e 70s usou os intelectuais da Fraternidade (exilados do Egito) para
dar credibilidade e respeitabilidade intelectual ao wahhabismo. Foi conseguido, através de
uma virada historicista dos ancestrais crentes (os salafistas) na
direção de uma concepção ideológica que dava um contexto ao wahhabismo. A FM também foi usada como
muito efetiva ferramenta de propaganda pró-sauditas, contra o nasserismo e o baathismo.
Mas, nos anos 1990s, a Arábia Saudita virou-se fortemente
contra os Irmãos, convencida de que a Fraternidade “aproveitara-se” da Arábia
Saudita (introduzindo-se na artéria dos petrodólares sauditas), e não
considerando só interesses sauditas: também com vistas a objetivos específicos
da própria Fraternidade Muçulmana. Ainda pior, a FM contestou a narrativa “salafista”,
ao sugerir que a soberania pertence ao povo, não ao monarca saudita.
Essa “contestação” desperta temores especialmente fortes entre os nobres
sauditas, não só por causa de movimentos da FM para minar diretamente o regime
saudita, mas porque, sobretudo, aí está o mais poderoso desafio possível contra
a legitimidade da própria família saudita reinante. Foi “traição” pela qual a
Arábia Saudita jamais perdoou a Fraternidade Muçulmana.
A experiência do Qatar (e do Kuwait) com a Fraternidade
Muçulmana foi muito diferente: a FM qatari se autodissolveu em 1999, com o que
foi removida qualquer ameaça interna (ou assim considerada) contra o emirado. O
Kuwait, por outro lado,
conseguiu conter o movimento islamista mediante seu próprio sistema
constitucional de governo, que permite a manifestação de diferentes posições
políticas e a realização de protestos. Resultado disso – e diferente da Arábia
Saudita e dos Emirados Árabes Unidos – esses estados não se preocuparam com a
FM instalar-se no Cairo nem com a crescente influência de islamistas na região.
Assim também, o arranjo muito especial que se vê em Omã, onde os grupos e
seitas não se organizam segundo categorias muito polarizadas, mitiga o impacto
da rivalidade sunitas/xiitas, o que leva o país a preocupar-se muito menos com
a Fraternidade Muçulmana que a Arábia Saudita ou os Emirados Árabes Unidos
(EAU).
Mas os EAU, por sua vez, veem suas ameaças internas como
derivadas diretamente da FM: a partir das células que implantaram no Golfo há
décadas, quando a FM gozava da alta benevolência dos sauditas, e quando os
intelectuais da FM estavam firmando pé em instituições educacionais e de
imprensa em todo o Golfo.
Qatar, diferente da Arábia Saudita, assumiu a liderança (com
a Turquia) no início dos levantes de 2011 na promoção da Fraternidade Muçulmana
na Síria e em outros pontos da região – mas, dito claramente, o foco do Qatar
jamais se limitou só à Ikhwan, mas estendeu-se também ao apoio a grupos jihadistas
radicais. Depois, a Arábia Saudita deslocaria o Qatar, para instalar seus
próprios salafistas favoritos, de orientação saudita, em posições chaves na
oposição síria. A íntima relação entre o Qatar e o CentCom [Comando Central dos
EUA] e com o general Petraeus, quando esteve no comando, pode ter convencido
Riad de que o Emir falava diretamente aos norte-americanos, e passava a
comandar o chamado “Despertar”. Mas, na sequência, os EUA pareceram ter formado
a convicção de que o Emir estava “enganando” os EUA: por um lado, apoiava
movimentos islamistas de reforma “democrática”; por outro lado, apoiava grupos
sunitas (antidemocráticos). Até que a competição armada entre grupos jihadistas
que acontecia na Síria produziu uma reação norte-americana – e a tentativa de
reorientar a infraestrutura de segurança na região, para passar a combater o jihadismo.
Os principais gatilhos para toda essa comoção foram,
basicamente, o Egito e a associação dos sauditas à condenação da FM pelo
marechal de campo egípcio; e, em segundo lugar, o dramático decreto saudita, que
desautorizou os jihadistas – para grande fúria dos jihadistas‘abandonados
no “altar” na Síria, aos seus colegas salafistas e da Fraternidade e facilitadores
no Líbano.
A Arábia Saudita colocou a Frente al Nusra, a ISIS, os Hutis e a Fraternidade Muçulmana na lista de organizações terroristas. |
Mas ainda há muita coisa que não sabemos sobre esse
movimento articulado no CCG contra o Qatar. Qual o conteúdo do acordo escrito
entre sauditas-qataris (mediado pelo emir do Kuwait) e assinado em Riad, ano
passado, e acordo cujos termos o governo do Qatar está sendo acusado de ter
renegado?
No Egito, o Qatar opôs-se ao golpe de 3 de julho; Arábia
Saudita e EAU apoiaram sem restrições, na linha de que o sucesso e a
estabilidade do novo regime egípcio (com repressão contra a FM) são vitais; e
não podem de modo algum ser abalados por qualquer tipo de crítica. O Qatar diz
que sua posição no caso do Egito não constitui qualquer interferência em
assuntos internos sauditas ou dos EAU – o que sugere fortemente que o Acordo
sauditas-qataris assumisse o apoio ao golpe egípcio, especificadamente, como imperativo
interno do CCG – mais do que cuidava de alguma questão de política externa.
Só isso explica que se exija agora total adesão a decisões do CCG.
O segundo gatilho foi, provavelmente, a indicação do
príncipe Mohammad bin Nayef para substituir o príncipe Bandar, para conduzir a
nova política saudita para a Síria.
Talvez caiba concluir aqui que a perspectiva da próxima
visita do presidente Obama a Riad tenha catalisado o “reset” nas políticas
sauditas, para dirigi-las contra o jihadismo takfiri.
O príncipe Mohammad é, ao mesmo tempo, preferido dos EUA; e
traz credenciais no campo do contraterrorismo – nova prioridade ocidental. Mas,
e significativamente, ele e o pai são muito conhecidos por detestarem a
Fraternidade Muçulmana.
É possível que a Arábia Saudita esteja concedendo,
tacitamente, algo à Síria, mas
simultaneamente está aumentando a aposta a favor de “varrer” a Fraternidade
Muçulmana. Se a Arábia Saudita persuadir outros na região a tornar
proscritos os Irmãos, Mohammad bin Nayef pode estar pensando
corretamente ao assumir que os europeus, tão afinados sempre aos interesses do
Golfo, podem ser contados entre os aliados, e seguirão os seus passos.
Não é lógico supor que Qatar, Omã (e até o Kuwait, que está
sob pressão das demandas sauditas de que implemente um acordo de segurança
amplo) possam permanecer como parte da mesma organização de segurança que
Arábia Saudita e EAU, quando há entre os grupos divergências tão fortes no
diagnóstico de onde vêm os perigos para uns e outros.
A maioria dos estados do CCG entende que a “ameaça iraniana”
– supostamente a própria razão de ser do CCG – pode ser mediada com eficácia
via EUA e seu continuado empenho na segurança do Golfo, o que o secretário de
Defesa dos EUA jamais deixa de sublinhar.
Em resumo, a Arábia Saudita está em campo oposto ao de
outros estados do Golfo sobre a natureza e a extensão de alguma “ameaça” que
venha do Irã; em campo
oposto ao do Qatar, em várias questões;
em campo oposto a Omã por sua rejeição aos movimentos do CCG na direção da
união e por sua mediação com o Irã; em campo oposto ao do Kuwait por tumultuar
o compacto de segurança; e o reino está em oposição até aos EAU, porque
rejeitaram a Arábia Saudita como sede do Banco Central do Golfo.
É visível que a Arábia Saudita está em estado de humor
irascível e volátil, e os estados do CCG estão visivelmente preocupados.
O que significa isso em termos de geopolítica?
Em primeiro lugar,
parece que essas tensões no CCG repercutirão diretamente na Síria, onde as fricções
entre estados do Golfo tendem a se manifestar nos antagonismos e conflitos
entre diferentes gangues armadas – o que beneficia o exército sírio.
Em segundo lugar,
a perda de coesão do CCG enfraquecerá a própria organização como tal, e, por
outro lado, afetará a posição política dos sauditas, que é decorrência do
controle sobre o próprio CCG.
Em terceiro lugar,
as hostilidades contra Omã e Qatar, longe de operar como fator que os
desestimule de se aproximarem do Irã, estão, precisamente, empurrando-os
naquela direção.
Em quarto lugar,
o assalto contra a Fraternidade Muçulmana está aprofundando
a solidão do Primeiro-Ministro Erdogan da Turquia e sua vulnerabilidade política.
Por fim, a Arábia Saudita realmente se excedeu, ao depositar
parte tão significativa de sua credibilidade sobre os ombros do marechal de
campo Sisi e no curso imprevisível dos eventos no Egito.
Alezander Zaspikin, Embaixador da Rússia no Líbano |
Claro, EUA e Europa estão recorrendo à retórica da Guerra
Fria no caso da Ucrânia e mostram-se determinados a fazer todo o possível para
separar a Ucrânia do campo russo, o que está impondo um outro fator, que se
sobrepõe às tensões na região: como a Rússia responderá? Um embaixador
russo já sugeriu que o caso da Ucrânia muda tudo. E o que
tudo isso implicará para a Síria e o Irã, e o bloco mais adesivo no front rival?
Se a Rússia se torna mais assertiva, talvez alguns estados
do CCG sintam-se tentados a olhar naquela direção – dada a percepção
generalizada na região de que a Rússia mantém forte constância em suas
políticas – e na direção dos amigos da Rússia.
[*] Conflicts Forum’s visa mudar a
opinião ocidental em direção a uma compreensão mais profunda, menos rígida,
linear e compartimentada do Islã e do Oriente Médio. Faz isso por olhar para as
causas por trás narrativas contrastantes: observando como as estruturas de
linguagem e interpretações que são projetadas para eventos de um modelo de
expectativas anteriores discretamente determinam a forma como pensamos -
atravessando as pré-suposições, premissas ocultas e até mesmo metafísicas
enterradas que se escondem por trás de certas narrativas, desafiando
interpretações ocidentais de “extremismo” e as políticas resultantes; e por
trabalhar com grupos políticos, movimentos e estados para abrir um novo pensamento
sobre os potenciais políticos no mundo.
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