quarta-feira, 19 de março de 2014

O sonho da supremacia norte-americana foi enterrado na Crimeia


17/3/2014, The Saker, The Vineyard of the Saker
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


The Saker
Eis os resultados oficiais do referendo na Crimeia:

  • 96,77% votaram a favor de a Crimeia unir-se à Rússia
  • 02,51% votaram a favor de a Crimeia continuar como república soberana autônoma dentro da Ucrânia
  • 00,72% dos votos foram declarados inválidos
  • 83,10% dos votantes possíveis votaram nesse referendo (portanto, 16,9% não votaram)

Para relembrar, esse é o quadro da formação étnica da Crimeia (em 2001):

  • 58,32% russos
  • 24,32% ucranianos
  • 12,10% tártaros crimeanos.
OK. E o que significa isso?

Primeiro e sobretudo, a participação foi massiva e o “sim” à Rússia venceu por imensíssima margem.

Segundo, não foi votação que se pautou por linhas étnicas. Quando se diz que há 58,32% de russos na Crimeia não significa que todos sejam votantes qualificados para votar (crianças são contadas, mas não votam). Assim, o número real de votantes russos na Crimeia está provavelmente bem abaixo de 50% do total de votantes. E mesmo assim o resultado mostra que 96,77% dos votos válidos foram a favor da integração à Rússia. De onde vieram os restantes 43,77% (mais ou menos)? Só podem ter sido votos de ucranianos e de tártaros. Ainda que se assuma que 100% dos russos na Crimeia fossem votantes qualificados para votar e que todos tenham comparecido às cabines de votação e que todos votaram “sim” à Rússia, ainda restam 35,45% dos “sim” votados por não russos. Nem os 100% dos ucranianos completam essa diferença.

Em outras palavras: o tal “boicote” pelos tártaros ao referendo é TOTAL invenção da imprensa-empresa ocidental.

A pergunta, então, se impõe: por que os tártaros crimeanos, que foram brutalmente reprimidos e deportados durante o governo de Stálin e muitos dos quais foram vistos bradando Allahu Akbar! nos confrontos contra manifestantes pró-Rússia, decidiram, de repente, votar a favor da união com a Rússia? Teriam mudado subitamente de ideia? Será que os “Polidos Homens Armados Vestidos de Verde” visitaram-nos casa a casa e os obrigaram a votar sob mira? Claro que não. A explicação é muito mais simples.

A imprensa-empresa MENTE
Em 22 anos de independência, a Ucrânia fez exatamente NADA para ajudar o povo tártaro crimeano, idioma ou cultura, muito menos para compensá-los por seus sofrimentos. A Rússia, por sua vez, aprovou uma lei chamada “Lei sobre a Reabilitação de Povos Reprimidos [orig. Law on the Rehabilitation of Repressed Peoples [em russo, mas pode ser facilmente traduzido pelo Google Translator de maneira que se entenda (NTs)], há muito tempo, em 1991, que resolve basicamente o problema dos tártaros crimeanos, os quais obtiveram o que reivindicavam por direito, além de passaportes russos novinhos em folha. Sim, claro, há alguns tártaros crimeanos que prefeririam permanecer sob soberania da Ucrânia, porque entendem que todos os russos são geneticamente capazes de repetir as ações de Stálin a qualquer momento e que o nacionalismo russo é ameaça perene contra eles. Não estou sugerindo que sejam espertíssimos – só estou dizendo que alguns tártaros realmente acreditam nisso. Alguns muçulmanos radicais querem ou ser parte da Turquia, ou criar seu próprio Estado Islâmico. Têm o direito de querer o que queiram – mas são minoria e, francamente, bastante irrelevantes.

A verdade é que toda essa “questão dos tártaros da Crimeia” é conversa fiada inventada no ocidente, na esperança desatinada de encontrar alguma “questão étnica/religiosa” para negar a legitimidade desse referendo e gerar mais tumultos étnicos. Os resultados mostram que esse plano fracassou visivelmente.

Então, o que acontecerá a seguir?

Morreu a Ucrânia. Viva o “Banderastão”?

Alguns leitores objetaram contra eu usar a palavra “Banderastão” para descrever a Ucrânia. Tivessem lido com mais atenção, teriam compreendido que não igualo, de modo algum, Ucrânia e Banderastão. Na verdade, Ucrânia é o país cuja existência terminou em fevereiro de 2014, e Banderastão é o novo projeto nacional do Setor Direita (Pravy Sektor) e do Partido Liberdade (Svoboda) (sim, o mesmo partido cujo nome original era Partido Nacional-Socialista). Assim sendo, o quê, exatamente, é o Banderastão?

Banderastão é a Ucrânia que Dmitry Iarosh, Andrei Parubii ou Oleg Tiagnibok querem criar: um estado “nacional socialista” (nazista) cujo princípio fundador seria o “Бий жидів та москалів - Україна для українців” (“Fora judeus e russos. Ucrânia para os ucranianos”). Simples e claro. Esse estado teria idioma único (o ucraniano), etnia única (ucraniana), um único líder (Iarosh) e um pai-fundador (Stepan Bandera). O objetivo político de longo prazo desse regime seria o “retorno” do “resto” da “terra ucraniana” que hoje estaria sob “ocupação” polonesa ou russa e “punir” os “traidores da Pátria Mãe”.

Poder-se-ia pensar nos “Banderistas” como uma versão ucraniana dos Talibã, mas muito piores e infinitamente mais estúpidos. Algo, talvez, como uma versão ucraniana dos Interahamwe, talvez?

Um leitor enviou esse excelente videozinho , a seguir, (Obrigado, “JP”!), que mostra alguns desses Banderistas e o que gostam de fazer. Negócio incrível, hein?


É claro que esse projeto tem precisamente zero chances de ser bem-sucedido, por algumas razões básicas:

  • Depois de 22 anos de mando oligárquico, a antiga Ucrânia rica está agora quebrada. O Banderastão está em condições ainda piores.
  • Muitos ucranianos não são “nacional-socialistas”, nem no oeste da Ucrânia.
  • A cada movimento dos “banderistas”, a reação contra é mais e mais determinada.
  • Muitos falantes de russo e muitos judeus estão ficando realmente apavorados em relação ao próprio futuro (mais sobre isso, adiante).
  • Os banderistas não têm absolutamente nenhum programa econômico.
O resumo é simples: governar significa mais, de fato, reconstruir país e nação arruinados e em bancarrota significa muito mais que desfilar simulacros de uniformes nazistas, pegar dinheiro dos norte-americanos, espancar policiais e gritar “Glória à Ucrânia! Glória aos heróis!”Para todas as finalidades práticas, o projeto banderista está hoje em queda livre, independente do fato de que líderes ocidentais insistam obstinadamente em não ver isso. Quanto aos empréstimos ocidentais (EUA, UE, FMI) – só podem adiar por algum tempo o inevitável.

E como, afinal, chegamos a essa louca situação?

A política exterior dos EUA não é dirigida por diplomatas, mas por políticos.

A principal coisa a entender, sobre a política exterior dos EUA é que, basicamente, é dirigida por gente sem experiência, sem sequer compreensão sobre o que seja “diplomacia” e seus objetivos. Não é só Mrs Nuland e seu famoso “Foda-se a União Europeia!”. E também Kerry e suas constantes mentiras e zig-zags; é também Mrs Rice com suas ameaças arrogantes e sempre belicosas contra a Rússia e muitos outros países; finalmente, é também Obama, combinação, ele mesmo, de húbris imperial e um realmente fenomenal nível de hipocrisia.

A própria noção de negociação é profundamente distante desses líderes imperiais que creem, fortemente, que negociar sempre seria sinal de fraqueza. Para eles, a única coisa negociável é o outro lado aceita todos os termos e condições que os EUA imponham. E se isso não acontece, os EUA basicamente põem-se a ameaçar que bombardearão o outro lado até a total submissão. Longe vão os dias em que George H.W. Bush (Pai) e seu brilhante secretário de Estado, James Baker entendiam o quanto podem conseguir diplomacia e negociações cuidadosas.

John Kerry e Susan Rice
A geração Kerry/Rice só entende que poderiam dizer a todos os demais o que eles próprios querem e, se não funciona, então a força bruta (ameaças, ou real força bruta) sempre resolverá tudo. Aí está a razão pela qual os EUA jamais aceitaram negociar com Gaddafi ou Assad; e eis por que todas as propostas dos russos, para encontrar solução negociada, foram sistematicamente rejeitadas.

Já no outono passado a Rússia ofereceu-se para negociar, quando os primeiros sinais de crise iminente começaram a surgir.  Lavrov propôs que se iniciassem negociações trilaterais entre UE, Ucrânia e Rússia. A UE, fosse por obediência a ordens dos EUA, ou movida só por suas próprias fantasias de grandeur, rejeitou estupidamente a proposta, sob o pretexto de que a Ucrânia era nação soberana e que, portanto, a Rússia tinha tanto direito de opinar sobre seu futuro quanto o Paraguai ou Vanuatu.

Pior: a UE fez como se bastasse que o governo ucraniano assinasse as 1.500 páginas do longo acordo que fixava os termos e condições de uma proposta associação entre UE e Ucrânia, sem que ninguém precisasse dar um segundo de atenção ao que a Rússia pudesse fazer. Exceto que logo começou a ficar bem claro para Azarov e Yanukovich que a Rússia ficaria sem alternativa, se não fechar as atuais fronteiras, para proteger a economia russa contra um dilúvio de produtos da UE que fatalmente afogaria a Ucrânia.

Viktor Yanukovich
Quando, no último segundo, Yanukovich anunciou a conhecida decisão de não associar a Ucrânia à UE, outra vez a Rússia propôs que se abrissem negociações. E outra vez sua proposta foi rejeitada. Alguns burocratas da UE aparentemente ainda acreditavam que Yanukovich cederia, na reunião em Vilnius. Ele não mudou de posição, simplesmente porque não podia mudar, não, pelo menos, sem matar toda a economia ucraniana.

Foi quando os norte-americanos literalmente enlouqueceram, entraram em surto, porque compreenderam que um “não” à UE, mesmo que apenas temporário, significava um “sim” à Rússia – e provavelmente, permanente. Foi quando o Tio Sam acabou pessoalmente envolvido.

O objetivo, estratégia e táticas da política externa dos EUA, no mundo e na Ucrânia

O objetivo geral da política externa dos EUA no mundo é muito simples: manter-se como a única superpotência do planeta. O fato de que há mais e mais sinais que apontam para o fato de que os EUA já não são realmente superpotência só faz tornar esse objetivo geral cada dia mais prioritário.

Nesse contexto, os EUA têm estratégia também simples em relação à Rússia: fazer o que for necessário para impedir que a Rússia se torne uma “nova União Soviética” ou qualquer outro tipo de grande desafiante contra os EUA, na dominação planetária. Em termos práticos, significa uma coisa: fazer o que for necessário para separar Ucrânia e Rússia. 

Há, sim, entre as elites norte-americanas, a bizarra noção de que com a Ucrânia a Rússia seria superpotência; e, sem a Ucrânia, não. Essa noção é contra factual (a Rússia já é superpotência, como se viu na Síria) e ilógica (a Rússia nem quer nem precisa da Ucrânia, que, basicamente, é estado falhado e totalmente artificial, governado por oligarcas, sem possibilidade viável de contribuir muito – e, nem, de contribuir pouco – para a real riqueza russa.

Francamente, e em termos puramente geopolíticos, a Ucrânia é dor de cabeça da qual ninguém na Rússia realmente precisa. Mas isso não interessa: as elites norte-americanas não agem em consideração ao que a Rússia pense ou entenda, mas, exclusivamente conforme suas próprias percepções: não podem permitir que a Ucrânia volte à “dominação” russa, porque, se voltar, a Rússia voltará a ser superpotência.

Em termos táticos, essa estratégia é implementada mediante duas regras simples:

a) qualquer força anti-Rússia, não importa o quanto seja horrenda ou doida, tem o apoio dos EUA; e

b) é jogo de soma zero: tudo que a Rússia perde os EUA ganham, e vice-versa.

O prêmio máximo para os EUA seria conseguir arrancar da Crimeia a Frota Russa do Mar Negro; e pôr na Ucrânia bases de EUA/OTAN, não porque haveria grande vantagem militar nisso, mas para impedir que a Ucrânia, algum dia, voltasse a aproximar-se ou a ser parte da Rússia outra vez. Não sendo isso possível, a opção mais assemelhada é pôr um regime anti-Rússia em Kiev. E se o regime chegar ao governo por golpe armado – OK. E se as posições chaves desse regime forem dadas a neonazistas – também OK. Nada faz qualquer diferença, desde que os russos não “retomem” a Ucrânia.

Mentiroso PATOLÓGICO
Claro que o mundo é muito mais complexo que a representação primitiva que têm dele esses políticos ignorantes e arrogantes. Na verdade, além de serem os únicos responsáveis pelo atual caos na Ucrânia, os EUA são também os únicos responsáveis por eles terem chegado ao resultado polarmente oposto ao que queriam obter.

Como a incompetência dos EUA resultou num “efeito dominó patriótico” na Rússia

Há tempos, em novembro do ano passado escrevi o seguinte sobre a população de falantes de russo da Ucrânia:

Estes, não têm visão alguma, não têm ideologia alguma, não têm qualquer objetivo futuro identificável. Só têm a oferecer uma mensagem a qual, em essência, “declara” que “não temos escolha senão entregar tudo aos russos ricos, em vez de entregar tudo aos europeus pobres”. Ou: “da União Europeia só nos vem conversa; a Rússia, pelo menos, oferece dinheiro”. É verdade. Mas absolutamente pequeno e pouco, para dizer o mínimo.

Um mês depois, acrescentei:

O que esses 17 milhões de russos e vários milhões de ucranianos pró-Rússia estão fazendo agora? É o país deles que está sendo empurrado diretamente para o abismo, e eles não estão fazendo nada. Quantas bandeiras russas vocês veem nas manifestações no leste da Ucrânia, em Donetsk, ou em Sebastopol? Acertaram. Zero! Até os chamados “russos” e “pró-russos” estão marchando sob as bandeiras amarelo-azuis que são leste-ucranianas, cores da Galícia. Vocês falam de questões morais e espirituais que estariam em jogo – alguém algum dia ouviu ucranianos do leste levantar essas questões? Eles por acaso falam dos milhares de santos que viveram nessa terra? Por acaso falam dos milhões de russos que morreram para libertar essa terra dos poloneses, dos jesuítas supervisores impostos contra os cristãos ortodoxos? Não, nunca. Só falam de dinheiro, dinheiro, dinheiro: “ficaremos pobres com a UE, com a Rússia nossos negócios florescerão” – essa é a ideia deles, de espiritualidade. Pró-russos na Ucrânia? Ha! Digam-me, só, o seguinte: quando se falou de ucranianos voluntários lutando ao lado dos wahhabistas chechenos – alguém viu algum protesto na Ucrânia? Ou quando o governo ucraniano estava armando Saakashvili até os dentes – viram algum protesto na Ucrânia? Nada, nunca. A versão deles de “pró-Rússia significa “gostamos do dinheiro russo”. Eles não são pró-Rússia: só são pró-rublo!

Estava errado, eu, então? Não, absolutamente não: essa era a triste realidade naquele momento.

O que realmente aconteceu é que, ao longo do último mês, aquela população russa quase totalmente passiva passou por brutal “terapia de choque”, que os fez despertar do silencioso estupor induzido por 22 anos de propaganda ucraniana nacionalista, combinada a um silêncio ensurdecedor sobre eles, da Rússia.

E então, de repente, esses falantes de russo até aí “invisíveis”, despertaram. Como aconteceu?

Manifestantes atiram coqueteis molotov na polícia no show de horrores da Praça Maidan
Primeiro, foi o show de horrores dos nazistas na Praça Maidan em Kiev, que rapidamente se converteu em insurreição armada. Então, quando Yanukovich foi finalmente derrubado, a primeira decisão do novo governo foi fazer aprovar uma lei que proibia o uso do idioma russo como língua oficial; e outra lei que levantou a proibição contra propaganda nazista. Simultaneamente, uma sequência de ataques violentos contra “colaboradores” do governo de Yanukovich, que rapidamente se transformou em campanha terrorista anti-russos. E pela primeira vez os falantes de russo realmente começaram a temer pelo próprio futuro: começaram a se reunir e a protestar abertamente e em voz alta.

Isso, por sua vez, disparou uma reavaliação da situação por muitos russos na Rússia, os quais, até ali, haviam acusado seus compatriotas de passividade. Por exemplo, em muitos programas de entrevistas falantes de russo da Ucrânia que vinham reclamando dos próprios sofrimentos ouviram que “vocês não obterão ajuda se não começarem a ajudarem-se, vocês mesmos; vocês têm de falar e agir contra esse novo regime, antes que possamos fazer qualquer coisa por vocês. Não podemos resolver por vocês os problemas de vocês – vocês tem de agir primeiro. Então, sim, ajudaremos!” E quando a população do leste e do sul da Ucrânia finalmente tomou as ruas, dessa vez não com bandeiras ucranianas, mas russas, o povo na Rússia tomou conhecimento e começou a mudar o modo como via a situação.

Por uma longa lista de razões objetivas, a Crimeia foi, de longe, a parte que mais falou nesse movimento de protesto e não é surpresa que o grande desenvolvimento, na sequência, tenha acontecido ali. Serviços de inteligência russa detectaram claros sinais de golpe, e o Kremlin tomou a decisão absolutamente crucial de mandar para lá os chamados “Polidos Homens Armados Vestidos de Verde” [orig. Polite Armed Men in Green” (PAMG)], normalmente chamados “Spetsnaz GRU” [forças especiais da Rússia].

O que, exatamente, os russos detectaram, ainda não se sabe com clareza, mas não há dúvida,de que o modo como os PAMGs foram deslocados para a Crimeia não é o modo como se deslocam forças em tempo normal de paz, mas o modo como se desloca uma força especial em operação militar em tempo de guerra: rapidamente, clandestinamente, com pesado apoio de fogo e com objetivos chaves a serem tomados por deslocamento posterior de mais forças. Aquele deslocamento durante a noite, dos PAMGs aparentemente conseguiu deter o golpe, e só se registraram pequenos confrontos vagamente noticiados e logo esquecidos. O principal efeito desse movimento de Putin foi enviar poderosa mensagem aos falantes de russo no restante da Ucrânia: a Rússia não permitirá que o novo regime neofascista ataque e aterrorize vocês.

Vlad, a MARRETA
O que Putin fez foi estender um “escudo psicológico” sobre o leste e o sul falante de russo da Ucrânia, fazendo saber aos banderistas que, se cruzassem a linha vermelha, seriam contidos e destruídos pelo exército russo.

O efeito foi imenso e logo as multidões que protestavam contra o governo neofascista aumentaram e tornaram-se mais determinadas. Quanto ao novo governo, só pôde usar forças antitumulto para prender alguns líderes políticos. Mas, Kiev não se moveu além disso para reprimir aquelas regiões por força militar (pelo menos, até agora). Por fim, tendo visto o repentino crescimento dos russos nos protestos na Ucrânia, mais e mais russos saíram às ruas em toda a Rússia para manifestar apoio aos compatriotas na Ucrânia.

O resultado de tudo isso foi despertar uma identidade nacional russa antes letárgica e um sentido de patriotismo que o Kremlin jamais poderia ter sequer sonhado com induzir no povo russo.

A imprensa-empresa ocidental está fazendo serviço notável, no trabalho de nada noticiar sobre tudo isso.

Comentaristas, “especialistas” e políticos ocidentais estão-se comportando como se houvesse fórmula para empurrar de volta para dentro da garrafa o gênio do patriotismo russo, embora eles mesmos, não o Kremlin, o tenham, antes, tirado da garrafa. Ainda pior: a propaganda ocidental ainda tenta apresentar a questão como se tivesse algo a ver com o futuro da Ucrânia. Já não se trata disso. A Ucrânia, agora, se foi, acabou, está morta, para sempre relegada ao passado. A questão, doravante, não é o futuro da Ucrânia, mas o futuro do Império dos EUA.

A queda-de-cara tectônica do Império dos EUA e suas políticas

Pela própria arrogância, ignorância e total intransigência, os EUA e suas colônias na União Europeia redefiniram completamente os termos da questão para o povo russo. Em sua imensa maioria, quando o povo russo olha o que está acontecendo em Kiev veem ali os piores anos da IIª Guerra Mundial. E estão determinados a não permitir que aconteça novamente.

Quando veem multidões de ucranianos nacionalistas marchando à noite com archotes e enormes cartazes com fotos de Stepan Bandera, os russos (na Ucrânia e na Rússia) veem o ressurgimento do mal que tiveram de derrotar, ao custo de milhões de mortos e aleijados. Por isso escrevi, dia 1/3, “que ninguém se engane: a Rússia está pronta para ir à guerra”.

IIa. Guerra Mundial
Escrevi para ser entendido literalmente e continuo convencido de que é verdade: o povo russo sofreu demais durante a IIª Guerra Mundial para deixar que bandidos neonazistas voltem a aterrorizar russos. A profundidade e a intensidade desse sentimento não é coisa que a UE seja capaz de compreender, nem, e muito menos, os EUA. Suspeito que o único lugar onde a veemência dessa determinação possa ser compreendida seja Israel.

Em termos práticos, significa que a Rússia não negociará com nenhum neonazista que ameace falantes de russo na Ucrânia nem cederá ante qualquer ameaça de sanções ocidentais. Mais uma vez, a Rússia, como nação, está disposta a pagar o preço, seja qual for, para derrotar e destruir o imundo “Banderastão”, que atualmente tanto apoio vem recebendo de EUA e União Europeia. Se os doidos ucranianos atacarem falantes de russo no leste e no sul, a Rússia intervirá militarmente – disso, todos podem ter certeza.

Há ainda uma consequência mais importante, que está brotando dos eventos atuais.

Em agosto de 2008, logo depois que o exército russo derrotou o regime de Saakashvili apoiado pelos EUA, na guerra de 8/8/2008, escrevi artigo em duas partes intitulado “O real sentido da guerra de Ossétia Sul” [orig. The real meaning of the South Ossetian war”], que incluía a seguinte avaliação:

O feio ataque pelo fantoche georgiano de Washington contra os soldados russos mantenedores da paz, combinado com a absolutamente espantosa hipocrisia de políticos e da imprensa-empresa ocidentais que estão completamente enviesados a favor do agressor foi uma espécie de “última gota” para a Rússia.

Esse desenvolvimento só aparentemente marginal, pelo menos se avaliado quantitativamente (“qual é a novidade?”) terminou por determinar uma imensa diferença qualitativa: trouxe à tona uma nova determinação, entre os russos, para lidar com – usando expressão cara aos neoconservadores – a ameaça existencial representada pelo Império Ocidental.

Muito tempo passará antes que o ocidente dê-se conta do que realmente aconteceu, e todos os obtusos “especialistas” e políticos midiáticos continuarão, provavelmente, com a “harenga” da “retória” tola e arrogante de sempre, mas os historiadores olharão, provavelmente, para o mês de agosto de 2008, como o momento em que a Rússia decidiu revidar contra o Império, pela primeira vez.

O que aconteceu nesse inverno de 2014 é, muito, uma continuação da guerra de 8/8/2008: mais uma vez, a Rússia não quis que acontecesse o que aconteceu, mas o ocidente não lhe deixou opção, do que se dispor para ir à guerra, se preciso, para se autoproteger (em 8/8/2008, o Kremlin compreendeu perfeitamente que havia um risco de envolvimento de EUA/OTAN ao lado dos georgianos e disse, em termos bem claros aos comandantes de EUA/OTAN que, se qualquer força de EUA/OTAN fosse enviada para o teatro de operações, seria atacadas). Mas as chances de uma intervenção por ONU/OTAN em 8/8/2008 eram relativamente pequenas, e o Império sempre poderia fingir que não se importava.

Desta vez, porém, Putin não tinha pela frente um Saakashvili e seu “exército de opereta”, mas o presidente dos EUA e o poder combinado das forças militares de EUA e OTAN. Por alguns dias, a situação foi muitíssimo parecida com o que se viu durante a Crise dos Mísseis em Cuba e o mundo começou a temer o início de uma IIIª Guerra Mundial (daí os rumores sobre deslocamentos militares de EUA/OTAN e as ameaças obliquais e, mesmo, declaradas, distribuídas por políticos norte-americanos).

A crise ficou tão aguda, que o jornal britânico The Independent sentiu a urgência de declarar, em editorial: Não queremos guerra contra a Rússia, que concluía com a seguinte advertência:

O The Independent on Sunday não se opõe a todas as guerras, nem dá atenção à conversa da moda sobre viver em “mundo pós-intervencionista”. Nós, como o presidente Obama, nos opomos a guerras estúpidas. Guerra contra a Rússia seria guerra estúpida, de acabar com todas as guerras estúpidas.

Mas logo começou a ficar bem claro que os EUA não estavam querendo ir à guerra pelo Crimeia ou pela Ucrânia. Como seria de prever que acontecesse, no confronto entre Barack Obama e Vladimir Putin, Obama piscou primeiro.


O referendo que os EUA tanto fizeram na tentativa de impedir que acontecesse, aconteceu; o resultado foi desastre absoluto para os EUA. Já há agora sinais bem claros de que os EUA estão jogando a toalha (Moon of Alabama tem dois bons postados sobre isso) e de que o ocidente está procurando uma saída.

Assim se vê que Obama fez muito mais do que só “piscar primeiro”. Vê-se que, no frigir dos ovos, a Rússia tem poder militar e coragem política suficientes para negar ao Império dos EUA um dos seus mais importantes objetivos estratégicos: fazer pose de única superpotência.

Se o fracasso da política dos EUA na Síria foi doloroso embaraço, o que acaba de acontecer na Ucrânia é algo de ordem e de magnitude inteiramente diferentes:

  • a Rússia fez União Europeia, OTAN e EUA beijarem a lona e saiu vitoriosa numa confrontação na qual, até o último instante, o ocidente tentou abrir caminho a blefes; ficou, só, com uma derrota de pleno espectro.

A “dominação de pleno espectro” é coisa do passado. Todos já sabem.

Duas coisas são agora certas:

  • Primeiro, a Crimeia foi-se, de volta à Rússia, e nada pode mudar isso.
  • Segundo, a tentativa de converter a Ucrânia num “Banderastão” fracassará.

Embora tenha havido notícias regulares de que forças militares banderistas estão sendo movidas na direção de Donbass, eu pessoalmente não vejo como o regime que está no poder em Kiev conseguirão esmagar os atuais protestos no leste e sul da Ucrânia. Além disso, tão logo seja sacramentado oficialmente o colapso da economia da ex-Ucrânia, o novo regime terá questões muito mais graves a preocupá-lo, que protestos.

Em algum momento, espero que EUA e Rússia se unirão e acertarão meio discreto para despachar do poder os doidos linha-dura banderistas atualmente no governo. Algum regime mais ou menos civilizado e neutro substituirá o atual e se criará algum tipo mais civilizado e neutro de “Confederação Ucraniana”. Se o pessoal que está no poder em Kiev insistir em agarrar-se ao poder, boa parte do leste e do sul da Ucrânia seguirá o exemplo da Crimeia e se integrará à Rússia. Também é possível uma divisão temporária da Ucrânia em duas partes, como aconteceu em Chipre.

Sinceramente, não consigo imaginar alguém suficientemente louco para provocar os militares russos a entrar no leste ou sul da Ucrânia. No longo prazo, será melhor para todos que a Ucrânia possa ser dividida em duas ou três diferentes entidades: uma ocidental, latina e neofascista; uma russa, que provavelmente se integrará à União Eurasiana ou, mesmo, se tornará parte da Rússia; e, possivelmente, uma no sul, independente.

Mas o sonho de uma grande Ucrânia unida governada por nacionalistas russófobos não se realizará – essa opção deixou de existir, para sempre.

E o que o Império Anglo-Sionista pode esperar?

Externamente, nada de muito importante acontecerá: será business como sempre. Nem Rússia nem China cometerão qualquer sandice temerária para provocar os EUA, exatamente como a Rússia dos anos 1990s, e os EUA permanecerão como potência armada com bombas atômicas, e uma das maiores forças militares do planeta, que nenhum país ousará ignorar. Mas o mito da onipotência dos EUA, esse, acabou-se, foi-se, para sempre.

Além disso, a Europa terá de dar conta das consequências de ter de administrar a gradual transformação do Banderastão em algo razoável, não ameaçador. A União Europeia afundar-se-á cada vez mais em sua crise econômica e social e alguma nova crise substituirá a Ucrânia nos noticiários. Externamente, pouca coisa mudará, mas, autoparafraseando minha conclusão sobre a guerra de 8/8/2008, demorará um pouco para que o ocidente perceba o que realmente aconteceu, e os “especialistas” midiáticos e políticos obtusos continuarão, provavelmente, para sempre, com sua retórica arrogante e tola, mas os historiadores voltarão os olhos para o mês de fevereiro de 2014, como o momento em que a Rússia revidou contra o poder combinado de EUA e Europa e prevaleceu.


The Saker 

2 comentários:

  1. Seus cálculos de porcentagem estão errados.

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    1. Por favor, diga qual correção deve ser feita para que o autor do artigo possa ser informado.
      Grato
      Castor

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