24/3/2014, [*] Claudio Gallo, Russia Today
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Sérvio bósnio examina os destroços perto da cidade de Brod, dia 8/9/1999, depois de um ataque por aviões da OTAN, dois dias antes (Reuters) |
Se
saltarmos fora por um minuto do rio infindável de notícias, podemos ver que já
estamos mergulhados bem fundo na 4ª Guerra Mundial.
Começou em
1989 com a queda do Muro de Berlim, que marcou o fim da 3ª, também chamada
“Guerra Fria”. O último capítulo da 4ª Guerra Mundial é, obviamente, a
fracassada tentativa de expulsar a Rússia da Crimeia, mas, até agora, o estágio
mais simbólico ainda é o bombardeio pela OTAN contra a Iugoslávia, que começou
dia 24/3/1999, há exatos 15 anos. Foi uma guerra contra Slobodan Milosevic, mas
também uma guerra para mudar rumo ao leste a influência e as fronteiras da
OTAN.
A Operação
Força Aliada, como a OTAN a batizou, consistiu de 78 dias de bombardeio
ininterrupto contra a Iugoslávia de Milosevic, com intensidade progressiva,
passando, os alvos, de militares, para a infraestrutura civil. Morreram cerca
de 200 civis sérvios, como “dano colateral” (contra cerca de 300 que morreram
no Kosovo, quase todos albaneses étnicos), enquanto a OTAN virtualmente não
teve baixas durante as operações, só alguns soldados mortos em pressupostos
acidentes.
A guerra “perfeita”
Foi a
Guerra Perfeita. O historiador militar britânico John Keegan arrependeu-se
quase teatralmente no Daily Telegraph pela velha fé que sempre dedicara
aos soldados de infantaria:
Há algumas datas na história das guerras que
marcam autênticos pontos de virada (…) Agora temos um novo ponto de virada para
marcar no calendário: 3/6/1999, quando a capitulação do presidente Milosevic
provou que se pode vencer uma guerra só com poder aéreo.
Guerra
muito limpa, com muitas bombas inteligentes capazes de rachar a Sérvia e só
atingir os maus, como sugeriu a propaganda incansável. Apresentar, à opinião
pública ocidental, aquela guerra de agressão dentro da Europa Oriental como
Guerra Justa não foi, de início, tarefa fácil. Mas os Persuasores Ocultos já
tinham, a favor deles, a experiência da Guerra do Golfo de George H. W. Bush.
Se a Guerra do Golfo foi a primeira guerra televisionada, vista pela gentil
seleção das câmeras da CNN, a guerra da Iugoslávia foi a primeira guerra
da internet.
Tinham de
achar um gatilho simbólico e acharam: o massacre de Racak, uma vila no Kosovo,
onde 45 albaneses étnicos foram mortos pelo exército sérvio, em resposta à
morte, a tiros, de quatro policiais sérvios. A narrativa da OTAN fez crer que o
bombardeio seria consequência de limpeza étnica de sérvios, mas a verdade foi
exatamente o contrário disso: o gatilho para aquela guerra foi a intervenção da
OTAN em algumas operações contra a população do Kosovo, no contexto da guerra
contra separatistas do Exército de Libertação do Kosovo [ing. KLA]
apoiado por EUA e Alemanha.
Vista aérea tomada dia 15/6/1999 da agência central dos Correios de Pristina, destruída pelas bombas da OTAN (AFP Photo/Reuters) |
O deputado
do Partido Labour (Trabalhista?)britânico, Tony Benn (que faleceu há
alguns dias), disse no Parlamento:
Seja qual for a legalidade ou a moralidade da
guerra lançada contra a Iugoslávia, o bombardeio piorou gravemente a crise de
refugiados.
Richard
Gott do (acima de qualquer suspeita) The
Guardian escreveu que:
(...) os repentinos deslocamentos de populações do
Kosovo foram disparados pelos bombardeios feitos pela OTAN e pela decisão
tomada por governos ocidentais de impor condições impossíveis ao estado
soberano sérvio.
Como dito
naqueles dias, sempre pelo The Guardian:
O KLA
foi reabastecido com armas contrabandeadas através da fronteira da Albânia e
reocupou vilas que as forças de segurança sérvia já haviam esvaziado.
Sobre Racak
também o (acima de qualquer suspeita) The
Times teve algumas dúvidas:
A realidade do que aconteceu em Racak
continua encoberta por declarações e contradeclarações. O que se sabe é que
quatro policiais sérvios foram mortos nos arredores da vila em emboscada feita
pelo Kosovo Liberation Army (KLA). Subsequentemente, pelo menos 40 albaneses étnicos da vila foram
mortos a tiros numa emboscada feita pelos sérvios de madrugada. Os sérvios
dizem que todos os mortos eram guerrilheiros do KLA mortos em ação. Os albaneses dizem que eram civis, assassinados
depois de capturados.
Mas não
basta um gatilho-pretexto. Para convencer gente você precisa de um conjunto de
ideias, porque, apesar da morte de todas as ideias declarada pelo
neoliberalismo triunfante, as ideias estão mais vivas do que nunca. A ideia que
faltava, então, chamou-se Direitos Humanos. Sejamos claros: quem pode ser
contra “direitos humanos”? Mas uma coisa são os direitos humanos pelos quais
foi morto o bispo guatemalteco Juan Gerardi, assassinado por esquadrões da
morte em 1998, por exemplo; e outra coisa é “direitos humanos” como ideia
defendida por George W. Bush e Tony Blair.
A “humanidade”
como pretexto
Na
Grã-Bretanha, para pavimentar o caminho para aquela operação, apareceu em 1997
o New Labour
Manifesto. Ali se criou uma “política exterior ética”:
O partido Labour (Trabalhista?) quer que a Grã-Bretanha seja
respeitada no mundo pela integridade com que conduz suas relações exteriores.
Faremos da proteção e da promoção de direitos humanos uma parte central de
nossa política externa. Trabalharemos para a criação de uma corte criminal
internacional permanente para investigar genocídios, crimes de guerra e crimes
contra a humanidade.
Quem fala de “humanidade” trapaceia – escreveu
Pierre-Joseph Proudhon, então citado por Carl Schmitt. Whoever Says Humanity
é também título do livro que Danilo Zolo, professor de Filosofia e Direito
e de Filosofia do Direito Internacional na Universidade de Florença escreveu
naqueles dias.
No início dos anos 1990s a “intervenção
humanitária” passou a ser um elemento chave da estratégia internacional dos
EUA. Os EUA diziam que a “segurança global” exigia que as grandes potências
responsáveis pela ordem mundial passassem a ver como antiquado o princípio de
Westphalia, da não interferência na jurisdição doméstica de estados nacionais.
A guerra lançada pelos EUA contra a República Federal da Iugoslávia – a guerra
no Kosovo em 1999 – finalmente estabeleceu o intervencionismo humanitário como
prática. A partir de então a motivação dita humanitária seria tomada
explicitamente como causa justa para guerra de agressão. E os EUA resolveram
que o uso da força por razões humanitárias seria legítimo... apesar de estar em
oposição à Carta das Nações Unidas, aos princípios do estatuto e do julgamento
do Tribunal de Nuremberg e em oposição, de fato, a toda a lei internacional em
geral – diz Zolo.
Bombardeiro B-52 da Força Aérea dos EUA lança uma carga de bombas M117 de 750 libras, nessa foto de arquivo, não datada (Foto U.S. Air Force) |
O filósofo
italiano Costanzo Preve deu ao seu livro sobre o bombardeio pela OTAN o título
de “O Bombardeio Ético”. Ali, Preve escreveu:
Os EUA criaram uma situação trágica na qual a
filosofia dos direitos humanos universais conflita diretamente com uma
caricatura distorcida deles: a ideologia de que se exportariam direitos humanos
pela violência armada. No sentido grego original, a palavra tragédia faz referência a
situação absolutamente sem saída ou esperança, na qual qualquer decisão, seja
qual for, é má decisão. A questão dos direitos humanos é, provavelmente, a
mais trágica de nossos tempos.
Por um lado, todos, em todo o mundo têm de
ser educados para os direitos humanos. Ainda mais, essa educação tem de ser
filosoficamente ancorada num diálogo universal real, sem o preconceito obsceno
de alguma “superioridade” ocidental, particularmente a versão mais desprezível
daquele preconceito, que nos chega como ordem divina exarada do castelo na
colina de Ronald Reagan. Por outro lado, a total subserviência da ONU aos EUA e
a seus repugnantes governos fantoches levou a uma condição de ilegalidade
internacional rampante.
Ironicamente,
o momento de Bomba-bomba-bomba-contra-Milosevic coincidiu na Itália com a
chegada ao poder do primeiro primeiro-ministro saído do velho Partido
Comunista, Massimo D’Alema. O ex-presidente da República Francesco Cossiga
escreveu:
A chegada do “comunista” D’Alema ao Palazzo
Chigi (sede do governo) aconteceu com pleno apoio de Washington, em troca da
garantia de que a Itália não se retiraria da Guerra do Kosovo.
Ainda mais
ironicamente, o bombardeio começou no mesmo ano em que nasceu o euro.
Com o
ataque contra a Iugoslávia, o governo Clinton aproveitou a ocasião para
demonstrar ao mundo a inconsistência política da Nova Europa, sempre dependente
dos EUA. Ao combater a favor da ideologia dos Direitos Humanos no Kosovo, a
Europa estava, de fato, obedecendo à agenda imperial.
Para citar
o filósofo italiano Diego Fusaro:
Com o colapso da estrutura bipolar do
universo, iniciou-se nova fase de conflitos, todos diferentes, e, ao mesmo
tempo, todos já dentro da 4ª Guerra Mundial. Essa é guerra geopolítica e
cultural declarada pela Monarquia Universal (MU) contra o resto do mundo. Uma
guerra contra todos os povos e nações que não estão dispostos a submeter ao
poder da MU, i.e. a suas políticas de dominação mundial mediante o formato
mercadoria.
[*] Claudio Gallo é jornalista. Trabalha atualmente como
editor de Cultura de La Stampa, onde é também editor internacional e
correspondente em Londres. Sua principal área de interesse é a política do
Oriente Médio.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Registre seus comentários com seu nome ou apelido. Não utilize o anonimato. Não serão permitidos comentários com "links" ou que contenham o símbolo @.