3/3/2014, [*] MK Bhadrakumar,
Indian Punchline
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Mentiroso |
Absolutamente não tem importância alguma o quanto teria sido genuína, ou
encenada como ‘'resposta” a pressões domésticas contra Obama, de que ele estaria
sendo “fraco” em suas políticas externas, a postura truculenta e ameaçadora que
o Secretário de Estado dos EUA, John Kerry, assumiu na entrevista
à rede CBS sobre Moscou – e diretamente contra o
presidente Putin. O que importa é que Kerry “exigiu” a virtual capitulação da
Rússia ante a ameaça de retribuição norte-americana, e essa é atitude de
desonestidade e de irrealismo.
A história da atual crise na Ucrânia não começou com a autorização, pelo
Parlamento russo, para que Putin use força militar na Ucrânia, se a entender
necessária. Kerry pode facilmente confirmar isso, se perguntar à sua
subordinada, a secretária-assistente Victoria Nuland, se ela realmente discutiu
seu próprio mapa do caminho para uma “revolução colorida” na Ucrânia, pelo
telefone, com o embaixador dos EUA em Kiev, Geoffrey Pyatt, na famosa
conversação “Foda-se a União Europeia” há dois meses.
Arseniy Yatsenyuk |
De fato, aquela conversa aconteceu dia 11 de dezembro, e os eventos
subsequentes na Ucrânia, inclusive a posse como primeiro-ministro de Arseniy
“Yats” Yatsenyuk, seguiram precisamente o mapa do caminho de Nuland. Dado que
Kerry não interpelou sua subalterna, ele também tem as próprias mãos também
sujas de sangue. O mesmo vale para a conversa sobre a Carta da ONU, a lei
internacional, as normas do comportamento entre estados no século 21 e
blá-blá-bla. Kerry está sendo desonesto, quando faz pose de moralidade
política.
O ponto de partida para solução razoável para a crise é o governo Obama
assumir, como pano de fundo de sua argumentação, que, sim, empreendeu tentativa
deliberada para despertar o novo espírito de guerra fria na Europa, como
artifício para reestabelecer a liderança transatlântica de Washington, em
termos de uma estratégia para “conter” a Rússia.
Por isso também, as ameaças de Kerry a Moscou são ridículas. Em primeiro
lugar, porque os EUA já não têm a hegemonia global e já não conseguem comandar
uma “coalizão de vontades” na política mundial. É o que se vê, evidente, nas
ameaças ocas que Kerry fez.
Kerry ameaçou a Rússia de que os EUA e seus aliados boicotarão a reunião
do G8 em Sochi em junho, e até puseram em dúvida a elegibilidade da Rússia como
país-membro do G8. Grande coisa! Niall Ferguson escreveu postado ótimo, na Spectator, [1]
em que mostra em que se converteu o G8. Sim, conforme os números do PIB do ano
passado, os BRICS estão a um passo de tomarem a coroa de ases indomáveis, de
EUA, Japão, Alemanha e Grã-Bretanha.
Portanto, Kerry delira, ao falar de G8. E a Rússia talvez cederia na sua
determinação de resistir contra a estratégia de “contenção” dos EUA, só para
não perder a posição de membro do G8?! Kerry só pode estar fazendo piada.
O mesmo vale para as sanções econômicas que EUA ameaçaram impor à Rússia.
Como seria possível conseguir que a Europa impusesse boicote econômico a
Moscou, se a Europa depende criticamente do suprimento de energia russa? É
verdade que os EUA não têm grandes negócios ou investimentos com a Rússia. Mas
a Alemanha, com certeza, tem. E o Japão? O ministro Shinzo Abe engoliria essa
estratégia, que o faria “desperdiçar” a Rússia como contrapeso em seu confronto
com a China – e tudo por causa da Ucrânia?
Mas é verdade também que Kerry é político e diplomata experiente. Assim
sendo, por que disse todas aquelas tolices na entrevista à CBS? Disse o que
disse, parece-me, com olhos postos nas elites políticas russas. Há na Rússia um
ativo e influente lobby de “ocidentalistas”, que tradicionalmente
dominaram a política externa russa pós-soviética. E eles nunca engoliram o
movimento de “pivô na direção da Ásia”, de Putin.
Uma grande fatia das elites russas estacionam suas mal havidas fortunas em
países ocidentais, e são afetadas pela ameaça de Kerry, de “congelar” seus
bens. Em essência, Kerry deu-lhes uma cutucada, para que se mexam.
É uma velha tese, persistente entre os especialistas norte-americanos em
Rússia − como Nuland – que a estrutura de poder russa é eivada de facções e
gangues sempre vulneráveis à manipulação pelos EUA, e que a autoridade de Putin
pode ser minada por dentro.
Mas Kerry vive na ilha-da-fantasia. Como Moscou algum dia cederia na
questão de a Ucrânia ser empurrada na direção de União Europeia e OTAN, quando
essa é questão existencial para a Rússia?
Zbigniew Brzezinski |
O conhecido trabalho de Zbigniew Brzezinski sobre “O grande tabuleiro
de xadrez”, que tem influência
profunda nas políticas para a Rússia de sucessivos governos dos EUA desde o
final da Guerra Fria, é essencialmente construído sobre uma matriz política que
prega que, sem a parceria com a Ucrânia, a Rússia enfraquece; e que aí está a
via que levará à dominação pelos EUA, no século XXI.
Dito em termos simples, os EUA morderam mais do que podem mastigar, no
caso da Ucrânia. É verdade que, como Nuland queria, “Yats” tornou-se
primeiro-ministro. Mas, sem a aquiescência da Rússia, que absolutamente não
tem nem obterá, ainda faltam
anos-luz para montar qualquer governo sucessor em Kiev que seja suficientemente
estável e com autoridade sobre aquele grande país, com mais de 45 milhões de
habitantes.
O governo Obama enfrentará uma subida por encostas escorregadias, para
persuadir os aliados europeus a continuarem a rolar as dívidas da economia
ucraniana. É difícil cumprir a proposta de substituir com suprimentos
norte-americanos ou europeus o gás russo fortemente subsidiado do qual
sobrevive a economia da Ucrânia. A Ucrânia tem dívidas que chegam a dezenas de
bilhões de dólares.
O mais importante é que a Rússia resistirá, não importa a que custo, a
qualquer movimento dos EUA para aproximar a Ucrânia da União Europeia ou da
OTAN. E não há consenso dentro da Ucrânia a favor dessa cooptação para a órbita
ocidental. A opinião pública está dividida ao meio – e hoje, ainda mais que
antes. Se os agentes dos EUA que estão no poder em Kiev tentarem empurrar-lhes
à força uma decisão, a região leste, que quer preservar laços milenares com a
Rússia, se revoltará.
Como a luta de sombras na Crimeia destaca, a Rússia, hoje, precisa fazer,
de fato, bem pouco, para alavancar o que venha depois. Não precisa “invadir” a
Ucrânia. A Rússia tem apenas de impedir que procuradores norte-americanos em
Kiev mostrem muitos músculos na Ucrânia do leste e na Crimeia. Na Crimeia, a
revolta das lideranças políticas locais contra o putsch insuflado pelos
EUA em Kiev não
pode ser esmagada por meios militares. Foi o que Moscou já assegurou, com um
mínimo de esforço.
A fragilidade fundamental da estratégia norte-americana é que a Ucrânia
não é algo que a “Velha Europa” sinta no sangue e no coração. A estratégia dos
EUA é orientada e cimentada pela obsessão com “isolar” a Rússia – que não é obsessão
para a “Velha Europa”.
Por fim, se Kerry prosseguir e levar adiante suas ameaças, Moscou não
esperará sentada. No mínimo, se Putin adotar a via Gandhiana da “não
cooperação”, os EUA enfrentarão graves problemas em várias questões de política
exterior.
O subsecretário do MRE do Irã, Hossein Amir-Abdollahian, já está em Moscou |
Se os EUA impuserem sanções contra a Rússia, Moscou, quase com certeza,
atropelará as sanções de Washington contra o Irã, o que provocará tamanho
buraco na tapeçaria da política externa de Obama, que ele ficará sem saber para
que lado se mexer. De fato, um alto diplomata iraniano já
está em Moscou para consultas.
Bem fará Obama se aferir com mais cuidado os limites do poder
norte-americano.
A coisa certa que cabe a Obama fazer é pôr no seu lugar o lobby neoconservador
e meter sob rédea curta os poderosos “especialistas em Rússia” do establishment
da política exterior dos EUA, que hoje atropelaram o presidente e estão no
comando das políticas externas dos EUA.
Nuland é protegida de Madeline Albright; ela mesma é de origem moldoviana,
e além disso, é casada com afamado ideólogo neoconservador, Robert Kagan. Que
mistério inextrincável haveria aí, tão difícil de decifrar? Obama nem precisa
procurar muito longe, para ver onde está o problema. O problema de Obama está
dentro da casa dele. Obama não deveria continuar a ser presidente ausente, no
que tenha a ver com a construção de políticas para a Rússia.
Nota dos tradutores
[1] Ver/ler em: 1/3/2014, Niall Ferguson, The Spectator (blog), Grã-Bretanha: “Niall Ferguson’s
diary: Brazil is overtaking us – but it no longer feels like that” [excerto
traduzido a seguir]:
Niall Ferguson |
Foi em 2001 que meu bom amigo Jim O’Neill de Goldman Sachs cunhou a sigla
BRIC – para Brasil, Rússia, Índia, China. Eram então os mercados emergentes,
que logo ultrapassariam as economias desenvolvidas. Pois... aconteceu! OK, não
completamente. Mas está quase lá.
Gosto muito de uma boa sigla e sempre estranhei muito que não houvesse
sigla também para as quatro maiores economias já estabelecidas (digamos) do
mundo. Segundo o FMI, essas quatro são hoje EUA, Japão, Alemanha e Grã-Bretanha
(segundo os números do PIB do ano passado). Então, proponho a sigla JAGUU.
Ascensão dos BRIC e queda dos JAGUU tem ótima sonoridade. Segundo uma das
medições do FMI – sempre as mais favoráveis aos mercados emergentes – os BRIC
ainda não ultrapassaram os JAGUU, mas ultrapassarão, dentro de cinco anos.
O fato de que as respectivas fatias de BRICs e JAGUUs na produção global
já sejam hoje praticamente iguais (27% para BRICs, 31% para JAGUUs) fala por
ele mesmo: há trinta anos, eram, respectivamente, 14% e 45%.
____________________________
[*] MK Bhadrakumar foi diplomata de
carreira do Serviço Exterior da Índia. Prestou serviços na União Soviética,
Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão e
Turquia. É especialista em questões do Afeganistão e Paquistão e escreve sobre
temas de energia e segurança para várias publicações, dentre as quais The Hindu, Asia Online e Indian Punchline. É o filho mais velho de MK Kumaran
(1915–1994), famoso escritor, jornalista, tradutor e militante de Kerala.
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