5/3/2014, [*] Pepe Escobar, Asia Times – The Roving Eye
Traduzido por João Aroldo
Eis a promoção “excepcionalista” de democracia dos EUA em
ação; Washington reconheceu um golpe de estado na Ucrânia que depôs – apesar de
todos os seus defeitos gritantes – um governo democraticamente eleito.
E eis o presidente russo, Vladimir Putin, já no ano passado, falando
sobre como a Rússia e a China decidiram negociar em rublos e yuan, e
enfatizando como a Rússia precisa sair do "monopólio " do dólar dos
EUA. Ele estava ciente de que o Império iria contra-atacar.
Então, o Império contra-atacou, dando “uma pequena ajuda” à
mudança de regime na Ucrânia. E Moscou contragolpeou, assumindo o controle da
Crimeia, em menos de um dia, sem disparar um tiro - com ou sem uso de brigadas Spetsnaz (think tanks sediados no Reino Unido dizem que são Spetsnaz; Putin diz que não).
Sergey Glazyev |
E agora há mais, o conselheiro presidencial russo, Sergey
Glazyev, disse à RIA Novosti, “a Rússia irá abandonar o dólar americano como
moeda de reserva se os Estados Unidos iniciar as sanções contra a Federação
Russa”.
A avaliação de Putin do que aconteceu na Ucrânia é factualmente
correta; “um levante inconstitucional e tomada de poder pelas armas”.
Isso está aberto a interminável e, principalmente, desagradável debate, se o
Kremlin exagerou ou não. Considerando-se o histórico de demonização pura e
simples da Rússia e de Putin que se arrasta há anos − que agora atinge seu auge
– a reação rápida do Kremlin foi bastante comedida.
Putin aplicou Sun Tzu ao pé da letra, e agora joga os EUA
contra a UE. Ele deixou claro que Moscou não tem necessidade de “invadir” a
Ucrânia. O tratado de partição Ucrânia-Rússia de 1997 permite especificamente
tropas russas na Crimeia. E a Rússia, afinal, é um defensor ativo da soberania
do Estado, é sob este princípio que Moscou recusa a "intervenção"
ocidental na Síria.
Mas ele deixou a porta aberta para – oh ironia cósmica das
ironias – uma invenção/intervenção americana (e que, previsivelmente, não foi
detectada pela mídia corporativa ocidental); a R2P da ONU − “responsabilidade
de proteger” − caso os fascistas e neonazis alinhados ao Ocidente na Ucrânia
ameacem russos ou civis de língua russa com conflito armado. Samantha Power
deve estar orgulhosa de si mesma.
Não mexa com
a inteligência russa
William Engdahl |
O "Ocidente" aprendeu, mais uma vez, que você não
mexe com a inteligência russa, que basicamente evitou uma réplica do golpe em
Kiev, em boa parte precipitado pela UNA-UNSO – uma obscura força paramilitar de
ultradireita ligada à OTAN, exposta por William
Engdahl.
E a Crimeia foi uma operação ainda mais sombria, porque esses
neonazis da Ucrânia Ocidental estavam, em conjunto, com jihadistas tártaros (a Casa de Saud ficará fortemente tentada a
financiá-los a partir de agora).
O Kremlin está factualmente correto ao apontar que o golpe
foi essencialmente conduzido por fascistas e “nacionalistas” de ultradireita −
código ocidental para os neonazis. Yury
Noyevy, membro do conselho político do partido Svoboda
("Liberdade"), admitiu mesmo abertamente que o uso da integração à UE
como pretexto “é um meio de quebrar os nossos laços com a Rússia”.
A imprensa-empresa ocidental (presstituta), sempre
convenientemente, se esquece que o Svoboda – assim como os fascistas do Setor
Direita (Pravy Sektor) – seguem os passos do fascista/terrorista da Galícia,
Stepan Bandera, um famoso agente de uma cesta de agências de inteligência “ocidentais”.
Agora o Svoboda conseguiu inserir pelo menos seis figurões como parte do novo
regime, em Kiev.
Depois, há os novos governadores regionais nomeados pelo sul
e leste da Ucrânia na maior parte russófonos. Eles são –quem mais – oligarcas,
como os bilionários Sergei Taruta, em Donetsk e Ihor Kolomoysky, em Dnipropetrovsk.
As pessoas em Maidan, Kiev, estavam protestando principalmente contra - quem
mais? – os oligarcas cleptocratas. Mais uma vez, a imprensa-empresa ocidental
(presstituta) – que incansavelmente propagou um levante “popular” contra a
cleptocracia – não notou isso.
Mais uma vez,
siga o dinheiro
As reservas em moeda estrangeira da Ucrânia, apenas nas
últimas quatro semanas, caíram de 17,8 bilhões de dólares para 15 bilhões. Quer
comprar hryvnia? Bem, não mesmo, a moeda nacional está em uma queda cósmica em
relação ao dólar americano. Isto é alegre boa notícia apenas para os abutres do
capitalismo de desastre.
50 hryvnia valem R$ 12, 29 (8/3/2014) |
E bem na hora, o Fundo Monetário Internacional está enviando
uma “missão de prospecção” à Ucrânia nesta semana. Ucranianos de todos os
quadrantes podem correr, mas eles não vão fugir do “ajuste estrutural”. Eles
sempre podem tentar guardar o suficiente para uma passagem com sua hryvnia
inútil (ser elegível para o visto na chegada à Tailândia certamente ajuda).
Os bancos europeus – que, segundo o Banco de Compensações
Internacionais (Bank for International Settlements - BIS) possuem mais de 23
bilhões de dólares em empréstimos pendentes – poderiam perder muito na Ucrânia.
Os bancos italianos, por exemplo, emprestaram quase 6 bilhões.
Na frente Oleodutostão, a Ucrânia depende fortemente da
Rússia, 58% de seu fornecimento de gás. Ela não pode exatamente diversificar e
começar comprando do Qatar amanhã – com a entrega por meio do que, Qatar
Airways?
E mesmo enquanto 66% do gás russo exportado para a UE
transita pela Ucrânia, o país está perdendo rapidamente a sua importância como
centro de trânsito. Tanto o gasoduto Nord
Stream como o South Stream – não
subterrâneo, mas submarino da Rússia – desvia da Ucrânia. O Nord Stream, concluído em 2011, liga a
Rússia com a Alemanha sob o Mar Báltico. O South
Stream, sob o Mar Negro, estará pronto antes do final de 2015.
Anders Fogh Rasmussen |
Geoeconomicamente, o Império precisa da Ucrânia fora da União
Econômica da Eurásia promovido pelo Kremlin − que inclui também o Cazaquistão e
a Bielorússia. E geopoliticamente, quando o secretário-geral da OTAN, o boneco
inútil, Anders Fogh Rasmussen, disse que um pacote do FMI e da UE para a
Ucrânia seria “um grande impulso para a segurança euro-atlântica”, isto é o que
garantiu, a única coisa que importa neste jogo todo é a OTAN “anexando” a
Ucrânia, como examinei antes.
A questão foi sempre o Império de Bases – assim como o cerco
do Irã, assim como o “pivot” para a Ásia traduzindo-se em cerco da China; assim
como cercar a Rússia com bases e “mísseis de defesa”. Só por cima do cadáver
coletivo do Kremlin, é claro.
Vamos saquear
essa terra de ninguém
John Kerry |
O Secretário de Estado dos EUA, John Kerry, acusando a Rússia
de “invadir a Ucrânia”, em “violação do direito internacional” e “de volta ao
século 19”
− é tão espetacularmente patético em sua hipocrisia – mais uma vez, olhe para o
histórico dos EUA – ele não merece comentário de qualquer observador informado.
Aliás, isso é tão patético quanto sua oferta de um reles 1 bilhão de dólares em
“garantias de empréstimo” – que mal pagam as contas da Ucrânia por duas
semanas.
A administração Obama – especialmente os neocons do tipo
"F*** a UE" – perdeu seu poder de jogo. E para Moscou, não tem nenhum
interlocutor em Kiev porque considera os golpistas ilegais. Moscou também vê a “Europa”
como um bando de perdedores mimados e chorões – sem nenhuma política externa
comum para começar.
Assim, qualquer mediação agora depende da Alemanha. Berlim
não tem tempo para “sanções” – o mantra excepcionalista americano sacrossanto;
a Rússia é um mercado de pelúcia para a indústria alemã. E apesar de todas as
vociferações na Economist e Financial Times, a City of London também não quer sanções, o centro financeiro
alimenta-se de pródigos fundos de políticos/oligarcas russos. Quanto à
"punição" do Ocidente para a Rússia, ameaçando expulsá-la do Grupo
dos Oito, isso é uma piada. O G-8, que exclui a China, não decide nada mais
relevante, o G-20 sim.
Arseniy “Yats” Yatsenyuk |
Se uma pesquisa abrangente fosse realizada hoje, ela iria
revelar que a maioria dos ucranianos não quer fazer parte da UE – tanto quanto
a maioria dos europeus não quer a Ucrânia na UE. O que resta para milhões de
ucranianos são os sanguessugas do FMI, a serem devidamente recebidos por “Yats”
(como o primeiro-ministro Yatsenyuk é tratado por Vic "F***-se a UE"
Nuland).
A Ucrânia está rumando para a federalização. Os golpistas de
Kiev não terão poder na Crimeia autônoma – que certamente vai continuar a fazer
parte da Ucrânia (e a Rússia, por sinal, vai economizar 90 milhões pelo arrendamento
anual da base de Sebastopol, que até agora era pago a Kiev).
O fim do jogo ainda não está escrito; Moscou controla uma Crimeia
autônoma de graça, e a EUA/UE "controla", ou tenta saquear, ao estilo
do capitalismo de desastre, a parte ocidental da terra de ninguém da Ucrânia
“governada” por um bando de marionetes do Ocidente e oligarcas, com uma pitada
de neonazis.
Então o que a dupla mestre em estratégia Obama/Kerry vai
fazer? Começar uma guerra nuclear?
_____________________
[*] Pepe Escobar (1954) é jornalista, brasileiro, vive em São Paulo, Hong
Kong e Paris, mas publica exclusivamente em inglês. Mantém coluna (The
Roving Eye) no Asia
Times Online; é também analista de política do blog Tom Dispatch e correspondente/ articulista das redes Russia Today, The Real News Network Televison e Al-Jazeera.
Seus artigos podem ser lidos, traduzidos para o português pelo Coletivo de
Tradutores da Vila Vudu e João Aroldo, no blog redecastorphoto.
Livros:
− Globalistan: How the
Globalized World is Dissolving into Liquid War, Nimble
Books, 2007.
− Red Zone Blues: A Snapshot of
Baghdad During the Surge, Nimble
Books, 2007.
− Obama Does Globalistan,
Nimble Books, 2009.
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