21/3/2014, [*] Pepe Escobar,
Russia Today
Traduzido pelo pessoal da
Vila Vudu
A área verde do mapa, ultrapassando fronteiras do Paquistão e Afeganistão, é o que Pepe Escobar chama de " Pashtunistão" |
No centro
do tumulto que Afeganistão e Paquistão enfrentam simultaneamente está o tabu de
todos os tabus: o Pashtunistão. Como se interconectam o sonho de uma terra
comum dos pashtuns e a secessão da Crimeia, que se separa da Ucrânia? E o que
pensa a China, disso tudo?
Comecemos
com o Paquistão. “Especialista” norte-americano da contrainsurgência, guru do
general David Petraeus já caído em desgraça, David Kilcullen, insiste que o
Paquistão está implodindo. Sem novidade: gente como essa gente é paga para
predizer o caos.
Como
sempre, a coisa aí é também muito mais nuançada. O Primeiro-Ministro do
Paquistão, Nawaz Sharif, está de fato tentando impedir que o Paquistão imploda.
Por isso quer um acordo com o Talibã no Paquistão, o TTP.
O partido
de Sharif, o PML-N, é conservador em termos religiosos e liberal, em
termos econômicos. É partido intimamente conectado com os partidos religiosos
do Paquistão. Sharif sabe que tem de ser cuidadoso na região do Punjab, por
causa da popularidade dos jihadistas
anti-xiitas – o grupo Sipah-e-Sahaba.
Um ramo do
Sipah – o temido Lashkar-e-Jhangvi – também mata rotineiramente muitos xiitas
em Sind e especialmente no Baloquistão. Sharif concluiu que não pode permitir
uma aliança entre o TTP (o Talibã
Paquistanês, com base nas áreas tribais) e grupos jihadistas ativos no Punjab.
Sharif é
também homem de negócios. Ele sabe que o único modo de pôr novamente nos
trilhos (como se algum dia tivesse estado...) a economia do Paquistão é acabar
com a guerra civil. Esse é o arcabouço do argumento por trás do atual “processo
de paz”. É o que Sharif disse aos chineses (aliados chaves) no verão passado,
quando visitou Pequim.
Até agora,
ainda não foram discutidas as questões realmente espinhosas no processo de paz.
O TTP quer a lei da Xaria imposta em todo o Paquistão. Nenhum governo
paquistanês jamais aceitará isso.
Inimigos do
estado
Os grupos
de contato, dos dois lados, são muitíssimo interessantes. No lado do governo
está um general aposentado, Muhammad Amir, ex-chefe do conhecido Inter-Services
Intelligence (ISI), a CIA paquistanesa. Mas lá está também o grande
jornalista Rahimullah Yusufzai, que trabalha em Peshawar, provavelmente a maior
autoridade mundial em tudo que tenha a ver com as áreas tribais paquistanesas.
No lado do TTP
está ninguém menos que o super mulá Samiul Haq, diretor da “Harvard Talibã”, em
Akhora Khattak, próximo de Peshawar, instituição que formou gerações de Talibã
(exclusivo para vocês: foi graças a uma carta assinada por Haq que eu e meu fotógrafo
escapamos de ser metidos na cadeia pelos Talibã em Ghazni, em 2000, quando “invadimos”
uma base militar abandonada).
Soldados do Exército paquistanês (foto Mian Khursheed) |
O exército
paquistanês não gosta, nada, nada, desse “processo de paz”. Principalmente o ISI,
que conservam conexões muito íntimas com muitos grupos jihadistas que colaboram com o ISI
em questões estratégicas de Islamabad nas relações com o Afeganistão e/ou a
Índia. Nem é preciso dizer que o Talibã Afegão, com Mullah Omar ainda, quase
com certeza, em Quetta (e como é possível que nenhum drone de Obama
jamais o encontre?) além do grupo Haqqani, no Waziristão Norte, continuam muito
próximos do ISI.
E no Punjab
outro ninho de terríveis jihadistas –
o grupo Lashkar-e-Taiba, autor do atentado à bomba em 2008, em Bombaim – são,
pode-se dizer, “protegidos” pelo exército paquistanês.
Mas o TTP
é completamente outro assunto. Diferentes de todos esses outros jihadistas, eles atacaram o estado e o
exército paquistaneses cara a cara. É preciso ter colhões. Não surpreende que o
exército os veja como inimigos do estado – além de serem manipulados por estrangeiros
(adivinhem quem).
O TTP
é pântano impenetrável. São pelo menos 30 diferentes grupos, que, todos,
juraram fidelidade a Baitullah Mehsud em 2007. Os drones de Obama
continuam matando Mehsuds (Baitullah, em 2009; Hakimullah, em 2013), mas o TTP
nunca morre. E a família Mehsud permanece no comando.
Eu
definiria a família Mehsud como um grupo de guerrilheiros pashtuns com base nas
áreas tribais muito próximas do Afeganistão. É guerrilha, sim, contra o estado,
que eles veem como um bando de traidores porque colaboram com os
norte-americanos desde o 11/9. Alternativamente, também se pode dizer que os
EUA, no Paquistão, estão em guerra, na essência, contra uma família – e há mais
de uma década.
Mapa legendado do Afeganistão/Paquistão o que ajuda a entender a multiplicidade de grupos étnicos na região (clique na imagem para aumentar) |
Agora, as
coisas mudaram um pouco. O novo líder dos TTP é Mullah Fazlullah. É
original de Swat, e tem base nas áreas tribais de Mohmand e, até, em Kunar e no
Nuristão, no Afeganistão (locais ultra linha-dura, ultra-ultra conservadores).
Significa que a sua base principal já não está no Waziristão. É caso de perguntar
se a gangue dos drones em Nevada, EUA, já sabe disso.
Tem havido
muita conversa no Paquistão de que o próprio mulá Omar, em pessoa, teria
intervindo, tentando unir as agora disparatadas facções do TTP, para
fazer avançar o diálogo com Islamabad. Por quê? Porque, com a OTAN fora do
Afeganistão no final de 2014, o que o Talibã no Afeganistão quer é reunir todos
os pashtuns dos dois lados da fronteira, e, então, avançar para tomar Kabul –
num replay de 1996.
Washington,
previsivelmente, tem muito medo de um processo de paz Islamabad-TTP. Com
isso, “Al-Qaeda”, o coringa perene, estaria de rédea solta nas áreas tribais,
outra vez. Mas, seja como for, parece que ali só restaram uns poucos “Al-Qaedas”;
todo mundo partiu para o Levante.
Mesmo
assim, o jogo de longo prazo de Washington é continuar a inventar teorias
conspiracionais sem fim no Paquistão – apostando no caos no país para, mais
cedo ou mais tarde, tentar passar a mão nas armas atômicas do Paquistão, nos
termos em que o ISI vê as coisas. Mas o atual processo de paz foi mais
ou menos “aprovado” por Washington. E a guerra dos drones mais ou menos
prossegue. Por enquanto.
Karzai
ataca novamente
Mês que vem
haverá eleições no Afeganistão. O esperto presidente Hamid Karzai anda ocupado
promovendo “seu” candidato à presidência, Zalmay Rassoul. Indicou o ex-Ministro
do Interior e presidente da Câmara Baixa do Parlamento, Younus Qanooni,
candidato à vice-presidência, em substituição ao recentemente falecido Mohammad
Fahim.
Hamid Karzai - Presidente do Afeganistão (foto Mohammad Ismail) |
Qanooni,
como Fahim, vem do vale do Panjshir e foi muito próximo do legendário Ahmad
Shah Massoud, o “Leão do Panjshir”, assassinado pela Al-Qaeda dois dias antes
do 11/9. Qanooni opôs-se ao bombardeio pelos EUA em 2001 e jamais baixou o tom
das críticas a Karzai.
Karzai joga
brilhantemente seu jogo pelo poder, porque reforça suas conexões tadjiques, ao
mesmo tempo em que mina a candidatura de Abdullah Abdullah, favorito de
Washington. O candidato de Karzai, Rassoul, agora, atrai o apoio de um grupo “misto”,
pashtun/tadjique.
A eleição
presidencial afegã será decidida no segundo turno. Então, sim, se verá quem os
altos comandantes mujahideen – de Ismail Khan em Herat, a Gul Agha
Sherzai em Kandahar – estão realmente apoiando. E como Karzai manobrou mais uma
vez para obter o que quer.
Do ponto de
vista de Washington, Rassoul pode ser aceitável, porque quer assinar o tal
muito controverso Acordo sobre o Estado das Forças [orig. Status of Forces
Agreement (SOFA)] que permitirá a permanência de tropas “residuais” dos EUA
no Afeganistão.
Ou, pelo
menos, Rassoul disse que assinará, depois de subornar todos os
senhores-da-guerra relevantes. Rassoul sabe que, se isso acontecer, todos os
Talibã saltarão sobre sua garganta, por mais pashtun que ele seja. O mais
provável, se for pashtun esperto, é que esteja dizendo uma coisa e pensando em
fazer outra.
Assim se vê
que há dois processos de paz paralelos em andamento no Paquistão e no Afeganistão.
O problema chave é que a “paz” que se obtenha no Paquistão pode traduzir-se em
caos no Afeganistão, porque então o Talibã Afegão estará reforçado pelo Talibã
Paquistanês “liberado” numa ofensiva contra o novo governo em Kabul.
Combatentes paramilitares no Paquistão (foto Aamir Qureshi) |
Alguns
combatentes do TTP persuadidos pelo exército paquistanês estão agora em
segurança estacionados na fronteira – especialmente nas áreas supracitadas de
Kunar e Nuristão. E ali estarão protegidos pelos serviços de segurança afegãos
– como lastimam os paquistaneses.
Que ninguém
se engane: a rivalidade Paquistão-Afeganistão permanece extremamente feroz. E
nem poderia ser diferente: o Afeganistão jamais reconheceu a Linha Durand, que
lhes roubou muitas de suas próprias terras pashtuns. Culpa do Império
Britânico, há mais de 100 anos. Essa ainda é a chave para toda essa confusão.
Não há
dúvidas de que os pashtuns dos dois lados da fronteira estão prestando imensa
atenção à Crimeia. Uma secessão semelhante levaria ao resultado com que sonham
a vida inteira – o Pashtunistão. O problema é que teriam de combater ao mesmo
tempo contra dois governos centrais – Kabul e Islamabad. E, em termos de
representação, os Talibã, dos dois lados da fronteira, com certeza não
respondem pela maioria dos pashtuns.
Só queremos
fazer dinheiro
A posição
da China acrescenta ainda mais tempero a esse cozido. Pequim está focada como
um laser na retirada de EUA e OTAN, por bem, do Afeganistão, no final do
ano. Será um posto a menos do Império das Bases dos EUA – próximo demais, para
o conforto da China, de suas fronteiras.
Pequim quer
um Afeganistão que gere lucros. Não parece possível, no futuro que se vê. Em
2008, as empresas Chinese Metallurgical
Group e Jiangxi Copper Co.
compraram um arrendamento por 30 anos em Mes Aynak – a maior mina de cobre do
planeta – na província de Logar, por, nus e crus, US$3 bilhões.
Drone MQ-1B utilizado pelos EUA para assassinar civis e líderes tribais no Af-Pak (Foto Julianne Showalter) |
Então, os
Talibã começaram a atacar a mina. E Pequim começou a olhar para o Afeganistão
mais como dor-de-cabeça de segurança, que como fonte de lucros – mesmo tendo
entrado numa cooperação de segurança com o governo Karzai.
Fator
altamente complicador é que Pequim identificou os atacantes Talibã como
originados do Paquistão. Acrescente-se a isso que os uigures andam para lá e
para cá com o Paquistão, onde recebem treinamento para “desestabilizar”
Xinjiang, e tem-se um importante problema entre os aliados Pequim e Islamabad.
Pequim está intrigada, porque parece que Islamabad nada faz para deter essas
infiltrações.
E a coisa
fica ainda mais complicada quando já se sabe na região que alguns ativistas
uigures têm sido infiltrados/manipulados – por décadas – pela CIA. Assim
sendo, se você estiver cruzando do norte do Paquistão para Xinjiang, paralelo à
estrada Karakoram, há forte probabilidade de você ser espião norte-americano –
como Pequim vê as coisas.
Mas ainda
não há nada suficiente para provocar ruptura séria entre Pequim e Islamabad. Os
dois lados concordam absolutamente com pôr EUA e OTAN para fora do Afeganistão.
Os dois lados concordam que não se deve dar voz aos Talibã no novo Afeganistão (para
a China, está fora de questão; para o Paquistão, tudo depende de o quanto os
Talibã aceitem ceder).
Acima de
tudo, os dois absolutamente concordam com construírem-se cada vez mais laços
comerciais – com o Paquistão podendo contar com todos os lucros de um corredor
comercial que vá do porto Gwadar a Xinjiang. E os dois definitivamente
concordam em mais um ponto: se a Crimeia vier a inflar o sonho do Pashtunistão,
será/seria um novo jogo; totalmente novo, imensamente imprevisível e “desestabilizante”
novo jogo.
_________________
[*] Pepe Escobar (1954) é jornalista,
brasileiro, vive em São Paulo, Hong Kong e Paris, mas publica exclusivamente em
inglês. Mantém coluna (The Roving Eye) no Asia Times Online; é
também analista de política do blog Tom Dispatch e
correspondente/ articulista das redes Russia Today, The Real News Network Televison e Al-Jazeera. Seus artigos podem ser lidos,
traduzidos para o português pelo Coletivo de Tradutores da Vila Vudu e João
Aroldo, no blog
redecastorphoto.
Livros:
− Globalistan:
How the Globalized World is Dissolving into Liquid War, Nimble Books, 2007.
− Red
Zone Blues: A Snapshot of Baghdad During the Surge, Nimble Books, 2007.
− Obama
Does Globalistan, Nimble Books, 2009.
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