8/3/2014, [*] Glen Newey, London Review of Books (Blog)
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Entreouvido na Vila Vudu: Chegou ordem do alto do morro para
traduzir; sim-senhor, e já. Ensaio à inglesa, de primeira qualidade. Biscoito
finíssimo. É nóiz. Vam-ke-vamo. [pano rápido]
Rumélia Oriental (Eastern Rumelia) em 1878 na divisão do Império Otomano |
Em 1878, a guerra russo-turca
estava no auge, os britânicos temiam a expansão russa, e G.H. MacDermott, astro
do music-hall, cantarolava seu número
[1] que deu à língua inglesa (e
outras [2])
a palavra jingoism, “jingoísmo”. Como McDermott cantava, “Já combatemos
esse Urso antes” e “Temos os navios, temos os homens, temos também o dinheiro”.
Agora,
temos poucos homens, não temos porta-aviões e estamos quebrados. Só restou,
como guincho repetido, o tom moralista altissonante.
Um governo
democraticamente eleito, embora com mãos sujas de muito sangue, é deposto por
uma oposição que inclui fascistas dos partidos Setor Direita (Pravy Sektor) e Svoboda
(Liberdade). A nova junta, embora não eleita, é saudada pelas potências ocidentais
como “o governo da Ucrânia”, seu ministro de Relações Exteriores é festejado no
Europolo.
A Rússia
age para proteger seus ativos estratégicos na região, sobretudo os portos no
Mar Negro que alugou de Kiev; os interesses russos incluem também os gasodutos
que cortam o território da Ucrânia e os muitos falantes de russo e cidadãos
russos que vivem dentro das fronteiras ucranianas.
Tudo isso é
ferozmente condenado pelo Executivo e pelo Legislativo dos EUA; um pouco menos
pela União Europeia. A União Europeia há muito tempo cortejava a Ucrânia
prometendo-lhe acesso, para grande temor dos russófonos no leste do país.
Entrementes,
um plebiscito rapidamente organizado sobre a soberania da Crimeia é condenado
pelo “governo” em Kiev e por euro-líderes.
A reunião
da União Europeia na 5ª-feira (6/3/2014) sobre a crise ofereceu o mínimo
imaginável. A Polônia e os estados do Báltico, por razões óbvias, favorecem uma
linha dura. O Comunicado soou como brandir uma escova de dentes. Ali, nenhuma
surpresa. Assistam a abertura - vídeo em inglês:
Nós na
União Europeia, precisamos do gás russo. O comércio entre União Europeia e
Rússia equivale a 15 vezes o dos EUA.
Sem
exército europeu e sem canhões, ameaçar cortar o comércio é como ameaçar jogar
um pudim de passas na cara de alguém. Eurotolos juram que cancelarão a próxima
reunião de cúpula UE-Rússia; essa, deve ter feito o Kremlin engasgar de rir.
Sem meios
para projetar força, a UE pode pelo menos indulgenciar nas fantasias morais dos
impotentes. E os EUA, herdeiros das ambições imperiais britânicas na Ásia
Central, permanecem no Afeganistão. E condenam reduntantemente a assertividade
russa.
Sebastopol
oferece interessante comparação com Guantánamo, outra base naval também alugada
em país hospedeiro (embora Havana jamais veja a cor do dinheiro). Isso, claro,
no “quintal dos EUA”, que agora parece estender-se já até o Mar de Aral e além
dele: os EUA, diretamente ou mediante procuradores, estão no Afeganistão já há
trinta e tantos anos.
A Rússia,
ao invadir o próprio quintal para proteger seus ativos estratégicos violou
tanto a soberania ucraniana, quanto John Kennedy violou soberania na Baía dos
Porcos em 1961; a Crimeia, pelo menos, muito diferente nisso, de Cuba, abriga
número considerável de cidadãos do país invasor.
Vladimir Putin |
No
florescente verão Vitoriano, preocupações com o expansionismo russo
significaram apoio vital aos otomanos (chamados, meio incongruentemente, de “os
doentes da Europa”), querelas na Crimeia, o “Grande Jogo” no Afeganistão, e
tentativas no Congresso de Berlin em 1878 para conter a maré do pan-eslavismo o
qual, como então se temia, daria ao “Urso” um habitat na Europa continental. Em
Berlin, a Grã-Bretanha insistiu em criar o pseudo-estado da “Rumélia Oriental”
no norte da Trácia, como contrapeso multiétnico ao irredentismo [3]
eslavo. Durou sete anos inteiros.
O que quer
o jogo em que se meteram EUA−UE? Que os russos saiam da Crimeia? Mas não há
meio confiável de conseguir que façam tal coisa. Criar um falso estado amigo da UE no oeste da Ucrânia? Ou meter tudo, Carcóvia e Donetsk, junto com Kiev, numa
grande barraca, em mais um exercício de construção-de-estado do tipo que o
ocidente tem patrocinado com tããããããão notável sucesso nos últimos anos?
Como a Spectator
disse uns poucos anos depois de Berlim: “o experimento de Lord Beaconsfield
já dura cinco anos, e o resultado anunciado pelo povo da “Rumélia
Oriental” é desastroso fracasso”.
Notas dos tradutores
[1]
Leem-se os versos (ing.) em: “We
Don’t want to fight” − Não queremos lutar... (“McDermott's War Song −
a.k.a. The Jingo Song”) [O canto de guerra de McDermott, também chamada “A
canção do Jingo”]) [excerto]:
[coro]
“Não queremos lutar, mas, por Jingo!, se lutarmos,
Temos os navios, temos os homens, temos também o dinheiro
Já combatemos esse Urso antes, e se somos verdadeiros
britânicos,
Os russos não terão Constantinopla!”
Escrita e composta por G.W.Hunt, 1877 - Apresentada por G.H. McDermott
(1845-1901).
[2] Em port., o Dicionário Houaiss registra: jingo. 1 hist
pol. Alcunha que recebeu na Inglaterra, em 1878, todo aquele que era a
favor de uma guerra imediata contra a Rússia. 2 Patriota fanático.
[3] Irredentismo. 1 hist.pol movimento dos
irredentistas, patriotas italianos que, do último quartel do séc. 19 ao início
do séc. 20, se empenharam em obter a incorporação à Itália de territórios sob
domínio estrangeiro [A Italia
irredenta – Itália não resgatada –
compreendia as seguintes localidades: Trentino, Gorízia, Ístria, Trieste,
Ticino, Nice, Córsega e Malta, regiões ligadas à Itália e aos italianos pela
língua e pelos costumes]. 1.1 p. ext. pol. política ou doutrina
política por meio da qual uma nação advoga a recuperação de terras que lhe
tenham sido tomadas ou a incorporação de um território cultural e
historicamente ligado a ela mas que se acha sob domínio estrangeiro (Dicionário
Houaiss).
___________________
[*] Glen
Newey é um filósofo político inglês, professor de Teoria Política na Université Libre de Bruxelles, na
Bélgica.
Até 2011 foi professor na School of Politics, International Relations & Philosophy na Keele University , Staffordshire , England.
Membro
proeminente da escola “realista” de filósofos políticos que também inclui
figuras como Bernard Williams , John N. Gray , e Raymond Geuss.
Newey anima
regularmente seu blog no site da London Review of Books com uma variedade
de tópicos, incluindo a política exterior do Reino Unido, política universitária,
finanças e cultura. Tem posição fortemente crítica ao capitalismo de livre
mercado e a mercantilização do ensino superior. Seus artigos jornalísticos
são muitas vezes extremamente ácidos; em um artigo intitulado: As Useful as
a String Condom Newey critica
a família real britânica como sendo inútil na Grã-Bretanha moderna.
Suas
incursões jornalísticas incluem também crítica de cinema, teatro e de ensaios
sobre filosofia política, ética e crítica cultural. É
também um forte defensor da livre expressão e da liberdade acadêmica.
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