4/3/2013, Robert Fisk, The Independent, UK
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
O Presidente da Síria, Bashar al-Assad, é membro da minoria alawita |
Há séculos os mapas ajudam o
ocidente a dividir os países árabes por linhas étnicas. Hoje, esses mapas
mostram, sobretudo, a extensão da ignorância ocidental
Robert Fisk |
Atualmente,
na Síria, estamos novamente recorrendo aos nossos velhos mapinhas racistas (ver exemplo abaixo). As
montanhas Alawita e a cidade de Qardaha, lar da família Assad – pintem tudo de
vermelho escuro. Será esse o último reduto da minoria de 12% de alawitas, na
qual se inclui o presidente, quando os rebeldes “libertarem” Damasco?
Os
ocidentais sempre gostaram desses mapas criados para dividir o Oriente Médio.
Lembram-se que se dizia (e os mapas “comprovavam”) que o Iraque sempre era xiita
embaixo, sunita no meio e curdo na parte de cima? Fizemos o mesmo com o Líbano:
xiitas embaixo (como sempre), xiitas no leste, sunitas em Sidon e Trípoli ,
cristãos no leste e no norte de Beirute.
Nunca,
jamais, em tempo algum, sequer uma vez, algum jornal ocidental exibiu mapa de
Bradford que mostrasse áreas muçulmanas e não muçulmanas; ou mapa de Washington
que mostrasse áreas de população branca e de população negra. Não! Tal mapa
sugeriria que nossa civilização ocidental poderia ser dividida por tribos ou
raças. Distinções étnicas? Só para o mundo árabe.
O
problema, claro, é que a Síria – secular e integrada como qualquer nação árabe
antes de iniciada a tragédia em curso – não “cabe” nesse tipo de distribuição
por minorias religiosas. Aleppo sempre foi lar de cristãos, sunitas e alawitas.
Os alawitas fixaram-se há muitos anos – daí que muitos vivam em Damasco – e
muitos deles vinham, não das montanhas, mas de Alexandretta, que é hoje a
província turca de Hatay. Pois, apesar de sabermos onde vivem, há pouquíssima (e
preciosa) pesquisa sobre essa comunidade – exceto, talvez, na França.
Sabrina Mervin |
Recentemente,
Sabrina Mervin, autora e pesquisadora francesa, organizou notável documentação,
na qual traça a história de um povo que se autodenominava “nusayris” – a partir
do nome do criador da religião que professavam, Muhammad Ibn Nusayr –, religião,
essa, fundada “no seio do xiismo” nos séculos 9 e 10. O trabalho de Mervin,
publicado agora nessa esplêndida instituição francesa Le Monde Diplomatique, deveria ser leitura obrigatória para qualquer “especialista”
em Síria, porque sugere que os alawitas são vítimas de uma longa história de
dissidência, perseguição e repressão religiosa.
Já
em 1903, o jesuíta e orientalista belga Henri Lammens, identificava os alawitas
como ex-cristãos – até que conheceu um xeique que insistia que pertencia ao Islã
xiita. Lammens, imperialista típico, sugeria que os alawitas – que pareciam crer
na transmigração das almas e numa trindade (o Profeta Maomé, seu primo e enteado
Ali, e Salman, que o acompanhava) – poderiam tornar-se cristãos “o que
permitiria que a França interviesse em favor de vocês”. De fato, em anos
posteriores, a França, sim, favoreceu os alawitas.
Os
otomanos tentaram integrar os alawitas os quais, segundo Mervin, eram explorados
pelos latifundiários sunitas e, em muitos casos, analfabetos. Em 1910, seus
dignitários religiosos iniciavam relações com os xiitas do sul do Líbano e do
Iraque, autodenominando-se “alawitas”, acompanhando o nome de Ali e afastando-se
de Nusayr. As autoridades do Mandato francês na Síria seguiram essa linha,
dentre outros motivos porque desejavam separá-los dos sunitas. Reza o mito
popular que os alawitas colaboraram com os franceses, enquanto os sunitas
lutavam pela independência.
Na
verdade, pelo menos um alawita proeminente, Saleh al-Ali, lutou contra o
exército francês nas montanhas, entre dezembro de 1918 e 1921. Na sequência, foi
reconhecido como herói nacional pelo primeiro governo sírio independente, em
1946. Outro destacado alawita, Sulieman al-Mourchid, teve final menos
afortunado, enforcado como traidor em 1946.
As
divisões étnicas que o ocidente propõe só se aplicam aos árabes
Mapa sectário da Síria e países limítrofes |
Os
alawitas se autodividiram durante a dominação francesa: alguns apoiaram o estado
alawita que Paris criara e que teve vida curta; outros abraçaram o nacionalismo
sírio ao qual tendiam os sunitas. Esse segundo grupo organizou-se
em torno de
Sulieman al-Ahmed, declarando-se oficialmente árabes
muçulmanos, islâmicos, em 1936. Exigiram e obtiveram uma fatwa, declarada
pelo grande Mufti de Jerusalém, Haj Amin al-Husseini, pela qual os
alawitas foram incluídos na umma. E, sim: é o mesmo Haj-Amin que adiante
se encontraria com Hitler – mas isso já nada teve a ver com alawitas.
Apoiados
pelos xiitas iraquianos, os alawitas fundaram suas próprias instituições
religiosas, construíram mesquitas e publicaram trabalhos sobre sua fé; em 1952,
foram reconhecidos pelo Mufti da Síria.
Essa
aproximação com os xiitas continuou durante o governo do primeiro presidente
alawita – Hafez, pai do atual presidente Bashar – e em 1973, o Imã Moussa Sadr,
o mais politizado dos líderes xiitas no Líbano (que hoje se crê que tenha sido
assassinado por ordem de Muammar Gaddafi), declarou que os alawitas eram, sim,
muçulmanos. Abriram-se então escolas religiosas xiitas em Sayeda, subúrbio de
Damasco – de onde brotou a ficção da “xiitização” da Síria. Dali em diante, os
alawitas passaram a ser integrados em grandes números no exército sírio e no
Partido Baath, apesar de a maioria dos generais sírios ser sunita.
Mas
a vida não ficou necessariamente mais fácil para todos da comunidade alawita.
Nos governos dos Assads, as organizações tribais e as influências religiosas
perderam espaço, segundo Mervin. E também perderam espaço e influência as
grandes famílias tradicionais. Ainda há terrível pobreza em áreas do interior da
Síria, ao norte de Damasco, onde vivem comunidades alawitas. E passou a ser
proibida, é claro, qualquer referência em termos sectários aos alawitas.
Mas a crueldade máxima é o hábito,
adotado por muitos sírios, de aplicar aos alawitas a palavra “alemães”. Em
árabe, são palavras muito semelhantes: alawiyyin (alawitas) e
almaniyyin (alemães). What’s in a name?[1] (Ah!
Por favor: poupem-nos dos mapas!)
[1] Orig. Romeu e Julieta (II, ii, 1-2): “What's in a name? That which we call a rose
/ By any other name would smell as sweet” [O que há num nome?
O
que chamamos rosa, chamássemo-lhe outro nome, teria o mesmo perfume]
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