“Durante os 14 anos de governo
Chávez, os EUA perderam a maior parte da influência que sempre tiveram na
América Latina, especialmente na América do Sul”
17/3/2013, Mark Weisbrot,
Al-Jazeera - Qatar
Traduzido pelo pessoal da Vila
Vudu
Mark
Weisbrot é co-diretor do Center for Economic and Policy
Research, em Washington, DC. E anima o blog Just Foreign Policy.
A impressionante reação mundial à morte do
presidente Hugo Chávez da Venezuela, sobretudo no hemisfério ocidental, pôs em
forte destaque o mundo “multipolar” pelo qual Chávez lutou. 55 países fizeram-se
representar por chefes de Estado em seu funeral, dia 8/3/2013 (todos os países
latino-americanos). 14 países latino-americanos decretaram luto oficial – entre
os quais o governo direitista do Chile.
Na contramão da comoção planetária, e da
homenagem solene prestada por respeitados chefes de Estado latino-americanos, a
Casa Branca limitou-se a uma declaração grosseira e fria e – para horror de
muitos latino-americanos – sequer ofereceu condolências.
O que se vê é que presidente mais demonizado
– apesar de democraticamente eleito e reeleito – da história do mundo tinha
muitos amigos e admiradores – e não só “estados inimigos” como Irã ou Síria,
imediatamente e incansavelmente mencionados no “jornalismo” e nos “noticiários”
nos EUA.
A “mídia” nos explica agora que a simpatia
se dirigiria ao petróleo venezuelano. Mas nenhum rei da Arábia Saudita jamais
foi amado e homenageado como Chávez, vivo ou morto.
Os leitores do New York Times
provavelmente surpreenderam-se ao ler, em coluna publicada semana passada,
assinada por Lula da Silva, o popular ex-presidente do Brasil, que ambos sempre
foram muito próximos e partilhavam a mesma visão de América Latina. É verdade, e
há muito tempo: em 2006, quando Lula da Silva foi reeleito, sua primeira viagem
ao exterior foi à Venezuela, para ajudar na campanha de reeleição de
Chávez.
Encaremos os fatos: o que Chávez disse sobre
o papel de Washington no mundo foi exatamente o que todos os presidentes de
esquerda – hoje, ampla maioria na América do Sul – pensavam. E Chávez nunca se
limitou a apenas falar: como Lula da Silva registra, Chávez desempenhou papel
crucial na formação da UNASUR (União das Nações Sulamericanas), da CELAC
(Comunidade de Nações da América Latina e Caribe), e em outros esforços e
realizações para a integração regional.
“Talvez suas ideias venham a inspirar os
jovens do futuro, como a vida de Simon Bolívar, o grande libertador da América
Latina, inspirou o próprio Chávez” – escreveu Lula da Silva.
Chávez transformou a América
Latina
Chávez foi o primeiro do que viria a ser uma
linhagem de presidentes de esquerda democraticamente eleitos que transformaram a
América Latina, e especialmente a América do Sul, ao longo dos últimos 15 anos,
dentre os quais Néstor e Cristina Kirchner na Argentina, Lula da Silva e depois
Dilma Rousseff no Brasil, Evo Morales na Bolívia, Daniel Ortega na Nicarágua,
Fernando Lugo no Paraguai, José “Pepe” Mujica no Uruguai e Mauricio Funes em El
Salvador.
Antes de Chávez, presidentes de esquerda que
fossem democraticamente eleitos tendiam a ter o mesmo fim que teve Salvador
Allende do Chile – derrubado por golpe organizado pela CIA, em 1973. Parte
significativa da esquerda latino-americana, inclusive o próprio Chávez,
continuavam céticos sobre a eficácia da via eleitoral para mudar a sociedade,
ainda 20 anos depois, dado que as elites locais, apoiadas por Washington, sempre
tinham um “veto” ilegal, ao qual recorriam quando dele
precisavam.
Chávez soube ter papel vital na “segunda
independência” da América do Sul, porque foi diferente de outros chefes de
Estado, em vários importantes sentidos. Percebi isso logo na primeira vez que o
encontrei, em abril de 2003. Dava a impressão de falar a todos do mesmo modo –
fosse quem lhe trazia o almoço no palácio presidencial, fossem visitantes que
ele admirava. Chávez falava muito, mas também era ouvinte atento e
concentrado.
Lembro de um jantar, há poucos anos, com
mais de 100 representantes de grupos da sociedade civil de todo o continente –
ativistas que trabalhavam para o cancelamento das dívidas de países pobres, para
a reforma agrária, muitas e muitas variadas lutas. Chávez ouviu longa e
atentamente, anotando sem parar, por mais de uma hora, com os convidados à
frente dele, apresentando o que cada grupo fazia. Ao final, com as anotações
diante dos olhos, falou, com resposta para cada um dos grupos: “OK. Agora, aqui
está o que me parece que podemos fazer para ajudar vocês.” Não sei de qualquer
outro presidente capaz de trabalhar assim.
Não era simulacro ou demagogia. Em Chávez,
nada era simulacro ou demagogia. Sempre dizia o que pensava – o que nem sempre é
adequado, num chefe de Estado. Mas a maioria dos venezuelanos amava aquela
franqueza, porque dava a Chávez uma densidade, uma realidade que poucos
políticos têm: era, portanto, alguém em quem se podia confiar.
A atitude não mudava em relação a outros
governos. Embora tenha tido grandes brigas públicas com alguns governos,
praticamente nunca criticou outro chefe de Estado, a menos que tivesse sido
atacado antes. Manteve boas relações até com o governo direitista de Alvaro
Uribe da Colômbia, durante vários anos; até que Uribe virou-se contra ele, o que
Chávez interpretou (provavelmente com razão) como Uribe agindo sob ordens dos
EUA. Quando Manuel Santos, que fora Ministro da Defesa de Uribe, tornou-se
presidente da Colômbia, em agosto de 2010 e decidiu restabelecer boas relações
com Chávez, encontrou a porta aberta. As relações foram imediatamente recompostas. Chávez era amigável com qualquer um
que não o agredisse.
Mas havia mais que traços de personalidade e
a busca de alianças – das quais Chávez precisava, se quisesse sobreviver, depois
que o governo Bush declarou publicamente, em 2002, que tinha intenções de
derrubá-lo (embora essa informação tenha passado praticamente sem qualquer
notícia na imprensa-empresa dos EUA, há provas documentais consistentes do
envolvimento de Washington no golpe militar de 2002 contra Chávez. Chávez tinha visão solidária do mundo. Ele e seu governo construíram inúmeras
políticas que não se orientavam pelo princípio de que “nações não têm amigos:
nações têm interesses”.
Sempre viu as injustiças e desequilíbrios da
ordem econômica e política mundial do mesmo modo como via as injustiças sociais
dentro da Venezuela – como males sociais e algo que se podia combater com
sucesso. Por que os EUA e meia dúzia de aliados ricos controlariam o FMI e o
Banco Mundial? Ou por que escreveriam, só eles, as regras de comércio da OMC, ou
da ALCA (Área de Livre Comércio das Américas, que Chávez ajudou a derrotar)? A
Venezuela não tinha qualquer interesse nacional específico nessas lutas, porque
é dos grandes exportadores mundiais de petróleo.
Mas Chávez entendeu que eram lutas
importantes para todos, e seu pensamento coincidiu com o que estava acontecendo
no mundo: todo o planeta se encaminhava rapidamente para se tornar
economicamente mais multipolar. A China, por exemplo, a qual, segundo as mais confiáveis estimativas de seu poder paritário de compra [orig.purchasing power parity), já é a maior economia do
mundo, praticamente não tem voz nem voto nem no FMI nem no Banco Mundial. Outros
países em desenvolvimento têm ainda menos. As ideias de Chávez, portanto,
ressoaram cada vez mais profundamente, em grande parte do mundo, especialmente
na América Latina.
A imprensa-empresa: “informação”
sempre negativa sobre a Venezuela
Por outro lado, a história de Chávez também
mostra o enorme poder da imprensa-empresa, a chamada “mídia”, no serviço de
modelar a opinião pública. Muitos governos conhecem bastante bem as realizações
do governo Chávez, mas, porque a imprensa-empresa norte-americana e, por via de
repetição, a imprensa-empresa latino-americana só veiculavam, quase
exclusivamente, “informação” negativa sobre a Venezuela, durante 14 anos –
sempre “informação” exageradamente negativa e não raras vezes, “informação” falsa – a maior parte da população no hemisfério ocidental jamais conheceu sequer os
fatos básicos sobre a Venezuela ou sobre o governo de Chávez.
Poucos sabem que, depois que Chávez alcançou
o controle sobre a indústria do petróleo, a economia da Venezuela passou a
crescer muito bem; a pobreza foi reduzida à metade e a pobreza extrema, em mais
de 70%. Poucos sabem que a maior parte desses ganhos veio do crescimento do
emprego no setor privado, não de “esmolas do governo”. Poucos sabem que milhões
de venezuelanos ganharam acesso a serviços públicos de saúde pela primeira vez;
e que melhoraram todos os indicadores de educação (o número de matriculados no
ensino superior duplicou); e que o número de aposentados saltou, de 500 mil,
para mais de dois milhões.
De fato, a imprensa-empresa ocidental
praticamente pintou a Venezuela como total fracasso econômico e político. E bem
poucos sabem que nada há que assemelhe a Venezuela a algum tipo de “estado
autoritário”. De fato, a imprensa-empresa venezuelana ainda faz, até hoje,
campanha contra o governo. [1]
É um tipo de “jornalismo” que ensina a não
saber o que Chávez fez pelo hemisfério – não só os bilhões de dólares que
distribuiu como ajuda, pelo programa Petrocaribe e outros, mas também – como
Lula da Silva explicou – o papel que desempenhou na promoção da unidade
continental e da segunda independência da América Latina.
Essa independência é muito mais que questão
de orgulho nacional ou regional; é mais, até, que uma das mais radicais mudanças
geopolíticas, até aqui, do século 21. É mudança que teve consequências imensas
para os latino-americanos, onde a pobreza já caiu, de 42% no início da década,
para 27%, em 2009. Difícil imaginar esse tipo de avanço econômico e social, no
tempo em que a região vivia sob tutela do FMI/Washington; de fato, na região,
como um todo, entre 1980 e 2000, o crescimento do PIB per capita foi praticamente zero.
A maioria das pessoas em todo o hemisfério
ocidental receberam uma visão à moda “Tea Party”, da Venezuela, com a imprensa-empresa liberal e de direita, praticamente idêntica, sem noticiar
praticamente nenhum fato, só mentiras, sobre a Venezuela e seu governo. (...).
Por tudo isso, trava-se hoje uma nova
batalha pela definição do legado de Chávez – e muitos já lutam para preservar os
“ganhos” que conseguiram na campanha para demonizar Chávez. Para esses, a onda
de simpatia e de respeito por Chávez e por seu governo que se vê crescer em todo o mundo é problema real.
Fato é que, durante os 14 anos de governo
Chávez, os EUA perderam a maior parte da influência que sempre tiveram na
América Latina, especialmente na América do Sul. Pode-se pois dizer com razoável
certeza, que, na batalha contra Washington, Chávez venceu. E, com ele, a região
e o planeta venceram. Por isso, será para sempre honrado, respeitado e lembrado
– como foi, dia 8/3/2013, por praticamente todo o mundo.
Nota dos
tradutores
[1] Quanto à
imprensa-empresa brasileira, parece ser caso especial, no planeta. Em 2002,
quando Chávez passou dois dias deposto, por golpe imediatamente derrotado pelo
povo nas ruas, William Waack, um dos principais âncoras do principal
“noticiário” nacional, da Rede Globo, disse:
O estilo
mandão de Chávez prova que a era do populismo não funciona. Quem trata a
democracia como ele tratou, desrespeitando instituições e preferindo mandar com
a bota em vez de dialogar, não deve ficar espantado ao ser varrido do poder.
(o vídeo foi tirado do ar, mas a
história aparece bem contada no Facebook)
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