6/3/2013, George Ciccariello-Maher, Counterpunch
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
George
Ciccariello-Maher leciona
teoria política na Universidade Drexel na Filadélfia. É autor de We Created
Chávez: A People’s History of the Venezuelan Revolution [Nós criamos Chávez:
História do Povo da Revolução Venezuelana] Duke University Press, Maio 2013.
Recebe e-mails em gjcm@drexel.edu.
Ver também
·
10/6/2012, redecastorphoto em: “Nenhuma
revolução nasce do governo” (1/2) - Entrevista: Alí Rodríguez Araque,
Ministro de Energia Elétrica da Venezuela
·
11/6/2012, redecastorphoto em: “Nenhuma
revolução nasce do governo” (2/2) - Entrevista: Alí Rodríguez Araque,
Ministro de Energia Elétrica da Venezuela
Hugo
Chávez está morto. A importância simbólica do presidente da Venezuela
ultrapassou em muito sua presença física, garantindo um ponto de condensação em
torno do qual as lutas sociais uniram-se e nutriram-se mutuamente. Assim
continuará, inevitavelmente, a operar, mesmo muito tempo depois de sua morte. É
o que cantam os versos do grande cantor popular revolucionário Ali Primera, (a
seguir) que andam hoje na ponta de língua de tantos:
Los
que mueren por la vida
no
pueden llamarse muertos
Revolucionário
de pés descalços
Hugo
Chávez foi menino pobre do interior de seu país, o que já diz muito do que se
tem de saber sobre ele. Pés descalços, casa muito pobre, sol inclemente,
colhendo lições as mais duras, e com forte dose de audácia, da experiência que é
a vida de todos os dias naquela parte do planalto venezuelano, os llanos,
que chega, de repente, aos picos das montanhas andinas.
Embora
a política estivesse no solo que ali se pisa e em todas as suas interações
sociais, o primeiro contato formal com a política revolucionária chegou-lhe pelo
irmão mais velho, Adán, membro da então clandestina, antiga organização
guerrilheira, Partido da Revolução Venezuelana (PRV). O PRV recusou-se
intransigentemente a descer das montanhas no final dos anos 1960s, quando o
Partido Comunista Venezuelano decidiu retirar-se da luta armada; o PRV, mais que
qualquer outra organização, resistia então contra a ortodoxia marxiana, e
escavava fundo nas tradições revolucionárias venezuelanas e latino-americanas
que se abrigavam sob o grande guarda-chuva do Bolivarianismo.
Através
de Adán, o Chávez mais jovem recebeu o legado dessa luta guerrilheira na
Venezuela e de suas aspirações, um necessário, potente contrapeso à doutrina
oficial que aprenderia na Academia Militar. Mas mesmo como soldado, Chávez já
tinha alma irreverente de guerrilheiro; não demorou para começar a articular-se
com outros oficiais radicais. Esse grupo de conspiradores seria chamado de
MBR-200, Movimento Bolivariano Revolucionário, e não era grupo exclusivamente
militar; logo estavam em contato muito próximo com os guerrilheiros comunistas
revolucionários do PRV e outros.
A
velha Venezuela
A
velha Venezuela está morta. O ancien regime venezuelano se autoproclamava
coeso e harmônico e manteve o mito até o fim. Para cientistas políticos, aí
estaria um “excepcionalismo venezuelano”: um mar de instabilidade e ditadura
que, na superfície, mantinha-se estável e ‘democrático’. Mas era harmonia que
dependia de a maioria ser mantida invisível; e estabilidade montada mediante a
incorporação e a neutralização de todo e qualquer movimento de oposição. Os que
não aceitavam essa regra eram assassinados ou presos nos gulags dessa tal
democracia “excepcional”.
Quando
Hugo Chávez tentou pela primeira vez derrubar o governo de Carlos Andrés Pérez
na Venezuela, em 1992, atacava uma democracia que, de democrática, só tinha o
nome. Décadas de governo bipartidário criara um sistema absolutamente
indiferente às necessidades da vasta maioria, e, com a crise econômica que se
instalara nos anos 1980s, a “década perdida”, os pobres tendiam a rebelar-se; e
a repressão era brutal. No que foi um, embora o mais espetacular de vários
momentos de resistência, na rebelião de 1989, conhecida como o “Caracazo”,
morreram número não conhecido de pessoas, entre 300 e 3.000, massacradas quando
Pérez ordenou aos militares que “restaurassem a ordem” nos Barrios pobres
que cercam Caracas e outras cidades venezuelanas.
El Caracazo |
Foi
essa rebelião, mais que qualquer outra, e a repressão que veio depois dela, que
levaram, pode-se dizer, que forçaram, Chávez e outros a tentar um golpe, com o
apoio de movimentos revolucionários de base; e foi esse golpe, mais que qualquer
outro evento, que levou Chávez à presidência, eleito, em 1998. Finalmente
alguém levantava a cabeça. E quando Chávez disse, pela televisão nacional,
que o golpe falhara “por ahora” [dessa vez, por enquanto], declarava, de
fato, como Fidel Castro 40 anos antes, a sua firme certeza de que a história o
absolveria.
A nova
Venezuela
Em vários sentidos, foi o que
aconteceu. Sob os governos de Chávez, a Venezuela tornou-se o país mais igual,
mais igualitário em toda a América Latina ,
conforme o coeficiente Gini de distribuição de renda. A pobreza
foi significativamente reduzida, e a pobreza extrema quase
erradicada. O analfabetismo foi eliminado e a educação é gratuita e acessível,
até o nível universitário, para todos os venezuelanos, até para os mais pobres.
A assistência à saúde é gratuita e universal. Apesar do catastrofismo da
oposição venezuelana de da imprensa-empresa estrangeira, a economia é forte e
atravessou a crise econômica global em condições muito melhores que muitos (que
os EUA, sem sombra de dúvida).
Mais
importante que essas melhorias nas condições de vida e bem-estar social da
maioria dos venezuelanos, contudo, são as transformações políticas pelas
quais passaram a Venezuela e seu povo, transformações que ainda não estão
completadas e prosseguem. O governo Chávez jamais foi mero governo populista que
dava benefícios em troco de votos: foi governo radicalmente democrático, que
buscava, não raras vezes apesar de tendências autocráticas, dar poder ao povo
para que agisse de baixo para cima, como verdadeiros “protagonistas” da
história. Em conselhos comunitários, cooperativas, comunas e milícias populares,
o governo venezuelano empoderou radicalmente os movimentos radicais de base,
embora, sim, tenha havido resistências dentro da própria burocracia do Estado.
Mas
essas não são realizações exclusivamente de Chávez. De fato, absolutamente não
são realizações de Chávez. Desde muito antes de Chávez houve movimentos
revolucionários que tentaram, falharam, tentaram novamente, o que gerou
experiência, organizações e visões de país que, num certo momento, levaram
Chávez até a presidência. Qualquer necrológio que fale de Chávez como alguma
espécie de salvador, insulta o povo que tanto o amou, ao qual Chávez serviu e
cujo comando obedeceu.
E
há também esquerdistas mal informados que reclamam que Chávez não teria sido
suficientemente revolucionário, que não teria avançado tão rapidamente quanto
queriam rumo ao socialismo: que a revolução tem de ser total, de uma vez por
todas. Outros, repetindo o que dizem os liberais, atacam-no porque seria
autoritário, autocrático, antidemocrático. São críticas que não veem o ponto
fundamental: que a revolução venezuelana não é Chávez.
Quem
não for capaz de entender por que milhões de venezuelanos fazem hoje o seu luto,
terá, desgraçadamente, abandonado qualquer projeto para entender o que realmente
está acontecendo na Venezuela.
Democrata
combativo
Mesmo
na presidência, a persona campesina de Chávez encontrava modo de romper o
verniz da liderança política: como quando, de repente, punha-se a cantar canções
do altiplano, os cantos llaneros; ou usava parábolas populares, ou quando
atacava aliados e opositores, sem medir palavras, na televisão. Pode-se também
dizer que algum paradoxal autoritarismo democrático é herança dos pobres do
interior do país: um intransigente respeito pelo povo, um igualitarismo ardente,
que não aceitava ‘não’, quando se tratava de revolucionar o país. Embora Chávez
sempre tenha sonhado ser lançador em equipe da primeira liga de baseball
[orig. pitcher], seu apelido de infância, Latigo [chicote],
descreve melhor o seu modo de abordar a política e seu jogo de “bola rápida”.
Mas
essa contradição não é específica de Chávez: a democracia direta e a democracia
representativa raramente são aliadas gentis, como o nome talvez sugira, e um dos
aparentes paradoxos da Revolução Bolivariana é que começa com empurrão firme,
de cima para baixo, de modo a limpar o campo para a participação
radicalmente democrática que venha de baixo para cima.
Aí
está o que críticos de Chávez e da Revolução Bolivariana querem dizer, quando
insistem em que Chavéz teria atropelado o sistema de “pesos e contrapesos”
democráticos; esses críticos não veem que essas limitações institucionais, por
justificáveis que sejam, são, na maioria das vezes, bem pouco democráticas.
Resultado
dessa incompreensão, os dois lados parecem falar línguas completamente
diferentes: para uns, entre os quais parece incluir-se o deputado Republicano,
Ed Royce, que apostava em “dar adeus rápido” a Chávez, o presidente da Venezuela
não passaria de ditador autoritário. São coisas que surpreendem os chavistas,
que elegeram e reelegeram Chávez várias vezes, sempre escolhendo,
deliberadamente, um processo cada vez mais radicalmente revolucionário; e os
quais sempre apontavam a contradição entre o desejo democrático da maioria e os
limites do mandato.
Muitos
venezuelanos pobres também se surpreenderam quando tantos se ofenderam tanto por
Chávez ter-se referido a George W. Bush como “o diabo” e depois, como “um
macaco”. Os pobres não são muito atentos às regras de boas maneiras, quando
discutem política; veem, intuitivamente, mas corretamente, que a política é o
reino das posições firmes e das discussões fortes. Entenderam perfeitamente o
que Bush disse, com seu “estão conosco ou estão contra nós” [e puseram-se
contra].
A
natureza maniqueísta da política venezuelana nos anos recentes é inegável, mas é
útil reconhecer, com Frantz Fanon, que a divisão entre nós e eles, chavistas e
escualidos (ou, mais recentemente, majunches), sempre foi mais um
reflexo de uma realidade estrutural que “erro” de Chávez ou da Revolução. Quando
as elites venezuelanas puseram-se a chorar o desaparecimento da “harmonia”
venezuelana, o que realmente lamentavam era que, de repente, gente pobre e de
pele escura tivesse aparecido à vista de todos, se tornasse presença inevitável
e assumisse o poder de governar como mecanismo útil para pressionar a favor de
suas demandas.
Comemoração em 2012 do nascimento da Revolução Bolivariana (27/2/1989) |
Não há dúvidas de que Chávez
serviu-se de algum maniqueísmo para mobilizar o povo para a luta, mas esse
maniqueísmo também lhe
veio por fenótipo, tanto quanto por razões políticas: mulato, de nariz largo e grandes
orelhas, “com essa imagem, Chávez sacudiu de cima abaixo a fantasia da harmonia
social (...). Sua imagem agita as mulheres ricas de Cuarimare”.
Chávez
e seus apoiadores foram racializados desde o início, em termos que causariam
indignação em outros lugares: maçado, “negão”, gentalha, horda, gangue. O
racismo explodiu durante o golpe de 2002, quando Chávez permaneceu deposto por
menos de dois dias, o que, em vários sentidos obrigou-o a reconhecê-lo
publicamente, num país que tanto celebrava a mestizaje e insistia em que,
na Venezuela, não havia racismo. No final, o maniqueísmo tornou-se o mais
importante motor para empurrar adiante o processo revolucionário, unindo o povo
contra o inimigo comum e preparando-o para a luta que viria.
Cheguei
a ter um encontro marcado para conhecer Hugo Chávez, mas ele cancelou no último
momento. Algum imprevisto, uma combinação de preocupações de segurança e o
incontrolável desejo de fazer tudo, ele mesmo. O mais próximo que estive dele,
cerca de três metros, aconteceu, eu arrastado numa torrente de chavistas de
camisas vermelhas, na Avenida Bolívar, em 2007. O presidente estava no alto de
um caminhão. Ao vê-lo passar, fiz meu gesto chavista preferido: um soco na palma
da mão, símbolo do que merece a oposição venezuelana. Como que para confirmar a
centralidade das lutas, numa revolução que sobreviverá a ele, Chávez viu e
repetiu o meu gesto.
A
Revolução não retrocederá
E
agora, o que acontecerá? Dentro de 30 dias, haverá eleições, para as quais
Chávez indicou seu sucessor, Nicólas Maduro, que quase com certeza vencerá uma
oposição que, parece, só se junta para ser novamente esquartejada. Mas o futuro
de longo termo ainda não está escrito. Nada é inevitável, mas muitos
venezuelanos pobres e radicalizados dirão, a quem lhes pergunte, que não darão
ni un paso atras, nem um passo para trás. Que no volverán, não
voltarão, ao passado. Sabem o que dizem e estão decididos.
Essa firme decisão revolucionária
jamais dependeu exclusivamente da figura de Chávez. Como escrevi na introdução
de meu próximo livro We
created Chávez [Nós criamos Chávez] :
A
Revolução Bolivariana não trata de Chávez. Chávez não é o centro, não é a força
motriz, não é o gênio revolucionário individual do qual dependa todo o processo,
ou no qual o processo encontre alguma inspiração quase divina. Parafraseando o
grande teórico e historiador de Trinidad, C.L.R. James: Chávez, como o
revolucionário haitiano Toussaint L’Ouverture, ‘não fez a revolução. Foi a
revolução que fez’ Chávez. Ou, como me disse um organizador de comunidades
venezuelano, “Chávez não criou os movimentos; nós o criamos”.
Frantz Fanon |
Em
1959, Frantz Fanon declarou irreversível a Revolução Argeliana, apesar de o país
só vir a receber a independência formal
três anos depois. Se se estuda com atenção a transformação da cultura argeliana
durante o curso da luta e a criação de que Fanon chamou de uma “nova
humanidade”, vê-se que Fanon não errou; estava ultrapassado o ponto depois do
qual não havia retorno possível:
Um
exército pode, a qualquer momento, reconquistar terreno perdido, mas como seria
possível reimplantar o complexo de inferioridade, o desespero passado, na
consciência do povo?
Revoluções
não vêm com garantia e não se supõe que a dialética histórica não possa ser
curvada sobre ela mesma, espancada e sangrada. Trata-se, isso sim, de que, para
que as forças da reação consigam fazê-lo, a tarefa não será fácil. O povo
venezuelano levantou-se. É é difícil, é quase impossível, ordenar a um povo que
afinal se pôs de pé, que ele volte a viver de
joelhos.
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