Traduzido e comentado pelo pessoal da Vila
Vudu
O
mais importante aniversário de 2013 são os 40 anos do 11/9/1973 – quando o
general Augusto Pinochet e Henry Kissinger, então secretário de Estado,
esmagaram o governo democrático do Chile. O Arquivo de
Segurança Nacional em Washington
acaba de distribuir, afinal liberados, novos documentos que mostram muito do
papel de Kissinger. (20/9/2013, redecastorphoto em: Otimismo? Em tempos de “realistas” e
vigilantes, John Pilger, Counterpunch, traduzido)
O
“Documento n. 4” é a transcrição (e inclui
imagem do manuscrito) do memorando que Kissinger redigiu, para explicar a Nixon
a urgente necessidade e a grande importância, para “os interesses dos EUA”, de
os EUA derrubarem Allende. (11/9/2013, The
National Security Archives, em
inglês)
MEMORANDUM
CASA
BRANCA, Washington
5/11/1970
SECRETO/SENSÍVEL
MEMORANDO PARA O PRESIDENTE RICHARD NIXON
De:
Henry A. Kissinger
ASSUNTO:
REUNIÃO 6/11/1970 – Chile
Para
a reunião na qual se considerará a questão de que estratégia devemos adotar para
lidar com um governo Allende no Chile
_____________________________________________
A.-
DIMENSÕES DO PROBLEMA
A
eleição de Allende como presidente do Chile nos cria um dos mais graves desafios
que jamais enfrentamos no hemisfério.
A
decisão que o presidente tomar sobre o que fazer sobre O PROBLEMA pode ser a
mais histórica e difícil decisão de assuntos externos que o presidente terá de
tomar esse ano, porque o que acontecer no Chile nos próximos de seis a 12 meses
terá ramificações que vão muito além de apenas as relações EUA-Chile. Aqueles
eventos terão efeito sobre o que acontecerá no resto da América Latina e do
mundo em desenvolvimento; sobre qual será nossa posição no hemisfério; e sobre o
grande quadro mundial, incluindo nossas relações com a URSS. Aqueles eventos
afetarão até nossa própria concepção sobre qual é o nosso papel no mundo.
Allende
é marxista duro, dedicado. Chega ao poder com um profundo viés anti-EUA. Os
partidos Comunista e Socialista constituem o núcleo duro da coalizão política
que é sua base de poder. Todos concordam que Allende se dedicará empenhadamente
a tentar:
–
estabelecer um estado socialista marxista no Chile;
–
eliminar a influência dos EUA sobre o Chile e o hemisfério;
–
estabelecer relações e vínculos com a URSS, Cuba e outros estados socialistas.
A consolidação de Allende no poder
no Chile, [*]
portanto, criará algumas sérias ameaças a nossos interesses e posição no
hemisfério, e afetará desenvolvimentos e nossas relações no resto do mundo:
–
Investimentos dos EUA (totalizando cerca de 1 bilhão de dólares) podem ser
perdidos, pelo menos em parte; o Chile pode deixar de pagar (‘calote’) dívidas
(cerca de $1,5 bilhão) devidos ao governo e a bancos privados dos EUA.
–
O Chile provavelmente se converterá em um líder da oposição contra os EUA no
sistema interamericano, fonte de rompimento no hemisfério e ponto focal do apoio
à subversão no resto da América Latina.
–
Tornar-se-á parte do mundo soviético/socialista, não apenas filosoficamente, mas
em termos da dinâmica de poder; e pode vir a constituir-se em base de apoio e
ponto de entrada para a expansão da presença soviética e cubana em atividade na
região.
–
O exemplo de um governo marxista eleito com sucesso no Chile com certeza terá
impacto em – e até terá valor de precedente para – outras partes do mundo,
especialmente na Itália; o efeito de difusão por imitação de fenômenos
semelhantes em outros pontos afetará significativamente o equilíbrio mundial e
nossa posição nele.
Além
de os eventos no Chile implicarem essas consequências potencialmente adversas
para nós, eles também estão assumindo
uma forma que os torna extremamente difíceis para que nós lidemos com eles com efeitos deles, o
que, de fato, cria alguns dilemas muito
dolorosos para nós:
a) Allende
foi eleito legalmente, o primeiro governo marxista a ter algum dia chegado ao
poder mediante eleições livres. Ele tem
legitimidade aos olhos dos chilenos e de muitos em todo o mundo; nada
podemos fazer para negar aquela legitimidade ou pretender que o governo não seja
legítimo.
Temos
forte tradição de apoiar a autodeterminação e o respeito por eleição livre; o
presidente tem forte presença pela não intervenção em assuntos internos nesse
hemisfério e de aceitar as nações “como elas são”. Seria portanto muito custoso
para nós agir de modo que pareçam violar aqueles princípios, e os
latino-americanos e outros no mundo verão nossa política como um teste da
credibilidade de nossa retórica.
b) Por
outro lado, se deixarmos de reagir a essa situação, haverá o risco de nosso
descaso ser visto na América Latina e na Europa como indiferença ou impotência
ante desenvolvimentos claramente adversos na região que há muito tempo é
considerada nossa esfera de influência.
c) O
governo de Allende muito provavelmente
se moverá por linhas que tornarão muito difícil organizar contra ele a censura
internacional ou do hemisfério – o mais provável é que apareça como país
socialista “independente”, não como satélite soviético ou “governo
comunista”.
Mas
um governo titoísta [Josip Broz Tito, presidente da Iugoslávia,
de 1953-1980] na América Latina seria muito mais perigoso para nós, do que é na
Europa, precisamente porque pode movimentar-se contra nossas políticas e
interesses mais facilmente e ambiguamente; e porque seu “efeito modelo” pode ser
traiçoeiro.
Allende
começa com algumas fraquezas significativas
em sua posição:
–
Há tensões na coalizão que o apoia.
–
Há resistência forte, embora difusa, na sociedade chilena, contra andar rumo a
um estado marxista ou totalitário.
–
Há desconfiança contra Allende entre os militares.
–
Há sérios problemas e limitações econômicas.
Para
enfrentar essa situação, o “plano de jogo” imediato de Allende é claramente
evitar pressão impedir que a oposição amadureça prematuramente, e manter seus
oponentes no Chile tão fragmentados que ele possa neutralizá-los um a um,
conforme consiga. Com esse objetivo, ele procurará:
–
ser internacionalmente respeitável;
–
mover-se cautelosamente e pragmaticamente;
–
evitar confrontações imediatas conosco; e
–
mover-se devagar na formalização de relações com Cuba e outros países
socialistas.
Há
divergência entre as agências sobre o quanto Allende conseguirá ser bem-sucedido
na superação de seus problemas e fraquezas, ou se é inevitável que ele siga o
curso descrito ou se as ameaças observadas se materializarão.
Mas
o peso das avaliações é que Allende e as forças que chegaram ao poder com ele
têm, sim, a competência, os meios e a capacidade para manter-se e consolidar-se
no poder, desde que possam fazer as coisas ao modo deles.
A lógica com certeza indica que Allende terá a motivação para perseguir os
objetivos que, afinal, foram mantidos por cerca de 25 anos. Dado que ele tem
admitida má vontade profunda contra os EUA e acentuado viés anticapitalista,
suas políticas sem dúvida tendem a constituir sérios problemas para nós, se ele
tiver qualquer grau de capacidade para implementá-las.
B.
A QUESTÃO BÁSICA
Tudo
isso se resume a um dilema e a uma questão fundamental:
a)
Esperaremos e tentaremos proteger nossos interesses no contexto de negociações
com Allende porque:
–
acreditamos que nada podemos fazer sobre ele, seja de que modo for;
–
ele pode não vir a ser a ameaça que tememos, ou talvez se suavize com o tempo;
–
nós não queremos arriscar que o nacionalismo vire-se contra nós nem queremos
arranhar nossa imagem, credibilidade e posição no mundo;
E
ASSIM arriscamos deixar que Allende consolide-se, ele mesmo, e consolide seus
laços com Cuba e com a URSS, de tal modo que em um ou dois anos, a partir de
agora, quando Allende
já tiver estabelecido sua base, ele possa agir com mais força contra nós, e nós,
então, já estaremos impossibilitados de fazer coisa alguma ou de reverter o
processo. Allende de fato nos usaria para ganhar legitimidade e, depois, se
voltaria contra nós em alguma questão econômica, o que nos empurraria para o
papel de “imperialistas ianques” na questão que ele
escolheria.
OU
b)
Nós decidimos fazer alguma coisa para impedi-lo de consolidar-se
agora,
quando sabemos que ele está mais fraco do que jamais estará adiante e quando ele
obviamente teme nossa pressão e hostilidade, porque:
–
Nós podemos ter razoável certeza de que ele se dedica hoje a opor-se a nós;
–
ele conseguirá consolidar-se e será capaz de opor-se a nós de modos cada vez
mais intensos; e
–
na medida em que ele se consolida e liga-se mais estreitamente à URSS e a Cuba,
a tendência e a dinâmica dos eventos serão irreversíveis.
E
COM ISSO também corremos os riscos de:
–
dar a ele a questão nacionalista, como uma arma para entrincheirar-se;
–
arranhar nossa credibilidade aos olhos do resto do mundo, como
intervencionistas;
–
transformar o nacionalismo e o medo latente da dominação dos EUA no resto da
América Latina em intensa e violenta oposição aos EUA; e de
–
talvez não conseguir, de modo algum, impedir que Allende e as forças que o
apoiem se consolidem.
C.
NOSSAS ESCOLHAS
Há
diferenças profundas entre as agências, sobre essa questão básica. Essas
diferenças manifestam-se essencialmente em três abordagens
possíveis:
1. A
Estratégia do Modus
Vivendi:
Essa
escola de pensamento, que é essencialmente posição de Estado, argumenta que nós não temos, realmente, a capacidade para
impedir que Allende consolide-se, ou para forçar seu fracasso; que o
principal curso dos eventos no Chile será determinado primariamente pelo governo
Allende e suas reações à situação interna; e que a melhor coisa que podemos
fazer nessas circunstâncias é manter nosso relacionamento e nossa presença no
Chile, de modo que, no longo prazo, possamos estimular e influenciar tendências
domésticas favoráveis aos nossos interesses.
Desse
ponto de vista, ações para pressionar Allende ou para isolar o Chile não só será
inefetivas, mas só conseguirão acelerar desenvolvimentos adversos no Chile e
limitar nossa capacidade para ter qualquer influência sobre a tendência de longo
prazo.
Para
essa visão, os riscos de que Allende consolide-se e as consequências disso, para
o longo prazo, são menos perigosas para nós, que a reação imediata provável a
ações de oposição a Allende. Essa percepção do desenvolvimento de longo termo de
Allende é essencialmente otimista e benigna. Há aí implícito o argumento de que
nada assegura que Allende consiga superar suas fraquezas internas, que é
possível que ele, pragmaticamente, limite a oposição a nós, e que, se ele se
converter em outro Tito não será mau, dado que, de um modo ou de outro, já
lidamos com outros governos desse tipo.
2.
A Abordagem Hostil:
O
Departamento de Defesa, a CIA e gente do Estado, por outro lado, argumentam que
é patente que Allende é nosso inimigo, que se movimentará contra nós no instante
em que se sentir pronto e com a maior força que possa, e que quando essa
hostilidade se manifestar contra nós, será porque consolidou seu poder e então
já será tarde demais para fazer grande coisa – o processo é irreversível. Desse
ponto de vista, portanto, temos de tentar impedir que ele se consolide agora,
quando está no ponto de maior fraqueza.
É
implícita, nessa escola de pensamento, o pressuposto de que nós somos capazes de influir nos
acontecimentos; e que os riscos de que nossa posição seja criticada em outros
pontos é menos perigoso para nós que a consolidação de longo prazo de um governo
marxista no Chile.
Dentro
dessa abordagem, há, por sua vez, duas escolas de pensamento:
a)
Hostilidade Aberta.
Essa
visão argumenta que não podemos demorar muito em começar a pressionar Allende e
que, portanto, não podemos esperar mais para reagir aos movimentos dele, com
contragolpes nossos. Eles entendem que os perigos de tornar pública a nossa
hostilidade, ou de iniciar a luta, são menos importantes que qualquer
ambiguidade no momento de declarar nossa posição e onde estamos. Esses assumem
que Allende não precisa de fato de nossa hostilidade para ajudá-lo a
consolidar-se, porque, se precisasse, ele nos confrontaria agora. Que, de fato,
Allende parece temer nossa hostilidade.
Essa
abordagem, portanto, exige (1) que
iniciemos medidas punitivas, como o fim da ajuda que damos ao Chile ou um
embargo econômico; (2) que
mobilizemos todos os esforços para organizar o apoio internacional à fraca
oposição que há no Chile; e que (3)
declaremos e divulguemos nossa preocupação e hostilidade.
b)
Pressão fria não declarada, abordagem correta.
Essa
abordagem concorda com a ideia de que devemos pressionar Allende agora e de que
devemos fazer-lhe oposição. Mas argumentam que o modo como embalemos a pressão e
a oposição é crucial e pode fazer a diferença entre efetividade e inefetividade.
Argumentam que uma imagem dos EUA iniciando medidas punitivas permitirá que
Allende mobilize apoio doméstico e a simpatia internacional, por um lado; e que,
por outro lado, dificulta, para nós, obtermos cooperação internacional.
Argumentam também que é o efeito da pressão, não a
posição de pressionarmos, que fere Allende; que a pressão declarada dá a ele
oportunidades táticas para neutralizar o impacto de nossa oposição.
Implícita
nessa abordagem está a ideia de que o quanto e como nossa opinião pública seja
mais clara ou menos clara, e fazer registro público dela, são menos importantes
no longo prazo que maximizar nossa pressão e minimizar os riscos de nossa
posição no resto do mundo.
Essa
abordagem, portanto, exige essencialmente o mesmo tipo de pressões que a
abordagem anterior, mas a aplicaria de forma encoberta e silenciosa; na
superfície, nossa abordagem seria correta, mas fria. Qualquer declaração ou
manifestação pública de hostilidade dependerá das ações dele, sempre para
negar-lhe a vantagem de poder declarar que é a parte agredida.
D.
AVALIAÇÕES
Como
já ficou dito, a questão básica é se vamos esperar e tentar nos ajustar, ou se
vamos agir já, para nos opor.
A
grande fraqueza na abordagem modus vivendi é que:
–
dá a Allende a iniciativa estratégica;
–
faz-se o jogo dele e quase assegura que conseguirá consolidar-se;
–
se Allende se consolidar, terá ainda mais liberdade para agir contra nós depois
de um período no qual o aceitamos, do que se nos opusermos a ele desde já;
–
não há razões conhecidas nem inteligência disponível que justifique qualquer
visão benigna ou otimista de um governo Allende no longo prazo. De fato, como já
ficou dito, um estado socialista racional “independente” ligado a Cuba e à URSS
pode ser até mais perigoso para nossos interesses de longo prazo que um regime
muito radical.
Nada
há nessa estratégia que prometa conter ou impedir ações adversas, anti-EUA,
quando e se o Chile quiser empreendê-las – e há razões de muito mais peso para
crer que o Chile empreenderá essas ações, tão logo sinta que está estabelecido,
do que para crer que não as empreenderá.
O
principal problema da abordagem hostil é saber se ela pode, efetivamente,
impedir que Allende consolide seu poder. Há pelo menos alguma possibilidade de
que nós possamos conseguir isso. Mas também é possível argumentar que, ainda que
não formos bem-sucedidos, desde que não causemos a nós mesmos danos excessivos
no processo, dificilmente o resultado poderá ser pior do que permitir que
Allende se entrincheire; que há, sim, boa vantagem em nos posicionarmos na
oposição, como meio para, pelo menos, contê-lo; e melhorar nossas chances de
conseguir induzir outros a nos ajudar a contê-lo, mais adiante, se for preciso.
Minha
avaliação é que os perigos de nada fazer
são maiores que os riscos que corremos tentando fazer alguma coisa,
especialmente se tivermos flexibilidade no desenho de nossos esforços, com
vistas a minimizar aqueles riscos.
RECOMENDO,
portanto, que o senhor [presidente Richard Nixon] tome a decisão de que faremos
oposição a Allende, a mais forte que pudermos; e que faremos tudo que pudermos
para impedi-lo de consolidar-se no poder; tomando o cuidado de dar a esses
nossos esforços uma embalagem e um estilo que façam parecer que estamos reagindo
aos movimentos de Allende.
E.
A REUNIÃO DO CONSELHO DE SEGURANÇA NACIONAL
Ao
contrário de seu hábito, de não tomar decisões em reuniões do Conselho de
Segurança Nacional, é essencial que o senhor [presidente Richard Nixon] deixe
absoluta e completamente clara a sua posição sobre essa questão, durante a
reunião de hoje.
Se
os envolvidos não compreenderem completamente que o senhor deseja que o governo
Allende receba o peso máximo de nossa máxima oposição, o resultado será uma
deriva a favor da abordagem modus
vivendi. A questão é, em primeiro lugar, questão de prioridades e
nuances. Toda a ênfase na reunião de hoje tem de ser “oposição a Allende” e
“impedir que se consolide”; e, não, em “minimizar riscos”.
RECOMENDO
que, depois de suas observações de abertura, na reunião, o senhor convoque Dick
Helms, para que o atualize sobre a situação e sobre o que devemos esperar. Em
seguida, eu apresentarei as questões principais e as opções (como já delineadas
nesse memorando). Depois disso, o senhor convocará os secretários Rogers e Laird
para que apresentem suas ideias e observações.
Seus
“Pontos de Conversação” estão aqui anexados, redigidos conforme o que aqui lhe
expus.
Sobre
sua mesa, estão:
–
Uma relação de opções para o Departamento de Estado e o Departamento de Defesa.
Notas
dos tradutores
[*]
Todos os negritos aparecem sublinhados no original.
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