sexta-feira, 27 de setembro de 2013

A superpotência impotente e seu menestrel errante

26/9/2013, [*] M K Bhadrakumar, Asia Times Online - OBAMA AT THE UN
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Presidente dos EUA, Barack Obama discursa na 68ª Assembleia Geral da ONU (24/9/2013)
A expectativa era que o discurso anual do presidente dos EUA Barack Obama, na sessão da Assembleia Geral da ONU na 3ª-feira, trouxesse alguma notícia de alguma nova orientação norte-americana sobre o conflito sírio e a situação em torno do Irã. E sim, o Oriente Médio foi tema dominante no discurso, e apagou completamente outras questões, como a mudança climática ou a estratégia de reequilibramento dos EUA na Ásia ou o desarmamento global.

Só isso já é um espanto – os EUA, a única superpotência, em papel diminuído, como potência regional impotente, incapaz, ou sem vontade, de afirmar coisa alguma. Parece que chegamos ao fim de uma era.

A impressão mais forte que resta é que o Oriente Médio continua a ser grave preocupação de política exterior, talvez mesmo a mais importante preocupação, e que assim será até o final do governo Obama. Não há dúvida de que Moscou e Pequim perceberam claramente e anotaram.

Mas outro traço recorrente no discurso foi a impotência dos EUA – a inabilidade para forçar o passo em campo, ou para prescrever encaminhamentos e soluções; a inqualificável desproporção de aliados clamando por “ação” robusta, e a imperiosa necessidade de permanecer engajado.

Tudo isso apareceu mais espantosamente à vista, no trecho sobre o Egito. Obama reconheceu a compulsão de engajar “construtivamente” a junta militar no Cairo, porque Camp David precisa ser preservado, mas vê com desgosto as coisas abomináveis que o governo provisório está fazendo.

Enquanto Obama falava, havia movimento diplomático frenético em outra parte do prédio da ONU, em torno de uma resolução do Conselho de Segurança sobre a implementação da iniciativa russa relativa à remoção das armas químicas na Síria.

Obama insistiu que haveria “provas abundantes” de que o regime sírio teria usado armas químicas no ataque de 21/8 perto de Damasco, e foi enfático: discordar “é um insulto à razão humana – e à legitimidade dessa instituição [a ONU]”.

Sem fogo nas tripas

Obama usou a polêmica, para destacar duas coisas. Uma, para dizer que ao usar armas químicas, o presidente Bashar Al-Assad teria perdido para sempre a legitimidade política para governar o país. A outra, decorrente da primeira, para exigir uma resolução “forte” do Conselho de Segurança:

a) para “verificar” a cumplicidade do governo sírio; e
b) para deixar claro que “deve haver consequências” se a Síria não aceitar.

Mas não falou do uso de força militar, nem invocou o Cap. 7º da Carta da ONU como tal. Assim, deixou bem claro que sua exigência era minimalista. E deixou espaço, pode-se concluir, para que os diplomatas norte-americanos negociassem uma resolução “forte”, mas que Moscou aceitaria sem problemas.

A verdade é que Obama falou sem fogo nas tripas. O discurso expôs que Obama está longe de ter conseguido resolver as graves contradições da posição dos EUA sobre a Síria.

De um lado, Obama afirma que cabe aos sírios decidir o próprio futuro, de outro, chama de “fantasia” a possibilidade de que Bashar tenha qualquer papel naquele futuro.

Obama denunciou Rússia e Irã por “insistirem no papel de Assad”. E ignorou o papel ativo da CIA e de íntimos aliados dos EUA, como Arábia Saudita, Turquia e Qatar na execução do projeto clandestino de mudança de regime, ao longo dos últimos dois anos, já quase dois anos e meio.

Obama, a certa altura, realmente, sim, propôs que os aliados regionais dos EUA exercessem influência de contenção sobre a “oposição moderada”, para que, adiante, se evitasse um “colapso das instituições do Estado” na Síria.

É proposta simplesmente cômica, risível, nas circunstâncias reais – com o príncipe e espião chefe saudita Bandar bin Sultan incansavelmente recrutando extremistas islamistas até de locais distantes como Líbia, Chechênia ou Paquistão; trazendo-os para os arredores da Síria; treinando-os, equipando-os, pagando-lhes salários diários; infiltrando-os em território sírio; e, na sequência, aconselhando-os, gentilmente, a lutar só “de leve”, para não enfraquecer “as instituições do Estado” na Síria.

Alguma coisa realmente mudou na política dos EUA? Obama não deu qualquer garantia de que os EUA não atacarão a Síria. E se em algum momento dos passados dois anos até hoje, essa garantia, dada em termos claros, inequívocos, teria ajudado, o momento seria agora.

Em vez disso, Obama falou em termos ambivalentes, cheio de “avisos” e ameaças. Não crê que a ação militar possa levar a uma “paz duradoura”. Em seguida, sai-se com “nossa resposta ainda não alcançou a escala do desafio” na Síria.

Não acredita que os EUA possam determinar quem governará a Síria; mas tem 100% de certeza de que não pode ser – e não deve ser – Assad. Horroriza-se por o governo sírio ter (diz ele) usado armas químicas; mas ignora que as mesmas armas foram usadas por grupos da oposição apoiados por aliados dos EUA.

Simultaneamente, Obama insistiu que não se trata de cenário da guerra fria ou de jogo de soma zero e garantiu que os EUA não têm qualquer interesse na Síria, além do bem estar do seu povo.

Superar história difícil

Como explicar essa ambivalência? Não seria difícil identificar dúzia e meia de fatores relacionados à política doméstica norte-americana. Mas o elemento chave está no movimento das placas tectônicas sobre as quais o impasse EUA-Irã permaneceu ao longo dos últimos 30 anos.

Enquanto segue a trilha síria – “trabalho em progresso”, como diriam os norte-americanos – está-se delineando uma nova trilha paralela, que pode levar a conversações diretas entre EUA e Irã. Obama espera que em algum ponto, em futuro próximo, as duas trilhas comecem a ter a ver uma com a outra.

O governo Obama ponderou os incontáveis “sinais”, ainda sem nome, que o novo governo iraniano do presidente Hassan Rouhani tem enviado – as declarações antes e depois das eleições, os nomeados para o Gabinete, e até a linguagem corporal recente da diplomacia de Teerã.

O governo Obama chegou a três importantes conclusões: Rouhani tem forte mandato eleitoral, o que manifesta a vontade de mudança e reformas, dos iranianos (e de normalização com os EUA); Rouhani é um “moderado”, por mais que seja também figura histórica do establishment, visceralmente ligado ao regime islâmico; e, mais importante, goza da confiança e de integral apoio do todo-poderoso Supremo Líder Ali Khamenei, o que dá credibilidade à sua posição de negociador e aumenta a confiança de que “entregará” o que promete.

Em Washington, o senso de urgência é palpável. Obama até revelou que “estou ordenando que [o secretário de Estado] John Kerry persevere em seu esforço junto ao governo iraniano (...)”.

Mas então, de repente, dá-se conta também de que a “história difícil” não pode ser “superada do dia para a noite”. Disse que se se puder encontrar modo de avançar na questão nuclear, será “um grande passo numa longa estrada rumo a relações diferentes, baseadas em interesses mútuos e mútuo respeito”.

Obama parou a um passo de dizer que os dois países também podem tratar de outras áreas de interesse – Síria, Afeganistão, Iraque, Bahrain, etc..

Garantiu a Teerã que os EUA não buscam mudança de regime e fez questão de registrar a recente fatwa de Khamenei contra o desenvolvimento de armas nucleares, e a reiteração da mesma fatwa, por Rouhani, mais recentemente, como a verdadeira base para um “acordo significativo”.

Tudo isso considerado, a fala de Obama não trouxe pensamento novo sobre o conflito sírio, porque é preciso esperar pela normalização com Teerã. Os EUA esperam negociar com Moscou, Teerã e Pequim bilateralmente, sobre a questão síria.

Isso é o máximo que Obama conseguiu na direção de distanciar-se de pensamentos a priori sobre lançar ataques militares contra a Síria para operar uma mudança de regime. É compreensível, afinal de contas, que Obama não possa simultaneamente dar instruções a Kerry para continuar as conversas, e mandar Chuck Hagel pular na jugular de Assad.

A parte mais esperançosa da fala de Obama foram os quatro “interesses núcleo” que ele expôs sem ambiguidades, ao indicar os pontos sobre os quais os EUA estariam dispostos a lançar toda a sua força, “incluindo o poder militar” no Oriente Médio – no caso de agressão externa contra aliados regionais; para manter o livre fluxo de energia; para desmantelar redes terroristas; e para obstruir o desenvolvimento de armas de destruição em massa.

Tony Hoagland
Abaixo desse limiar, estão os interesses gerais dos EUA em promover a democracia, os direitos humanos, a economia de livre mercado etc., pontos nos quais, Obama reforçou, há limitações inerentes para que se alcancem os objetivos “mediante ação exclusivamente norte-americana, particularmente a ação militar”.

Tudo isso posto e considerado, portanto, justifica-se alguma tímida opinião de que as possibilidades do processo Genebra sobre a Síria pareçam hoje menos inalcançáveis do que quando o dia raiou nos arredores da Baía Turtle [onde fica o prédio da ONU], nos arredores de Manhattan em New York City, na 3ª-feira.

Mas sempre ecoam na cabeça as linhas do poeta norte-americano contemporâneo, Tony Hoagland, [1]

(...)
Amanhã você pode estar absolutamente
sem qualquer pista

mas hoje chegou um telegrama
do coração exilado
que proclama que o reino

ainda existe,
que o rei e a rainha vivem,
ainda falam com os filhos,

– com qualquer deles
que tenha tempo,
para sentar ao sol e ouvir.
___________________________________

Nota dos tradutores
[1] Orig. Tomorrow you may be utterly / without a clue / but today you get a telegram, / from the heart in exile / proclaiming that the kingdom still exists, / the king and queen alive, / still speaking to their children, /- to any one among them / who can find the time, / to sit out in the sun and listen. Tradução de trabalho, sem compromisso literário, para ajudar a ler.
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[*] MK Bhadrakumar foi diplomata de carreira do Serviço Exterior da Índia. Prestou serviços na União Soviética, Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão e Turquia. É especialista em questões do Irã, Afeganistão e Paquistão e escreve sobre temas de energia e segurança para várias publicações, dentre as quais The Hindu,Asia Times Online e Indian Punchline. É o filho mais velho de MK Kumaran (1915–1994), famoso escritor, jornalista, tradutor e militante de Kerala.

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