7/7/2013, [*] Rami G.
Khouri, The Daily Star, Líbano
Traduzido pelo
pessoal da Vila
Vudu
Chegada do corpo de Marine morto na explosão de 23/10/1983 em Beirute, Líbano |
O
intenso debate que se trava hoje nos EUA sobre se o país deve ou não atacar a
Síria como punição ao regime sírio, acusado ainda sem qualquer prova de ter
usado armas químicas, é dos exemplos mais dramáticos que jamais vi de democracia
em ação. É o “consentimento dos governados” em operação.
É
sabido que vasta maioria dos norte-americanos não apoia a ação militar. Só 36%
dos pesquisados aprovam que os EUA ataquem a Síria, segundo pesquisa do Washington
Post/ABC
divulgada na 3ª-feira, muito menos que os 63% que aprovavam a ação
militar em dezembro. E a oposição é quase a mesma nos dois principais partidos
políticos.
O
mesmo ceticismo vê-se também no debate na Câmara dos Deputados dos EUA. Parece
ser criticamente importante que qualquer decisão que os EUA tomem em relação à
Síria reflita razoavelmente os sentimentos do povo americano. E como se pode
conhecer melhor esses sentimentos, por meios mais precisos que pesquisas de
opinião ou declarações da imprensa-empresa?
Recentemente,
tive o privilégio de poder ver mais de perto os sentimentos de uma família no
Alabama, que merece todo o crédito se consultada sobre que sentido teriam os
ataques norte-americanos contra o mundo árabe.
Há
alguns anos, pouco antes da guerra síria, recebi uma carta de Peggy Stelpflug,
mãe do cabo Bill J. Stelpflug, morto em guerra, que se alistou nos Marines em 1982, logo
depois de saído do ginásio em Auburn, Alabama. Em maio de 1983 foi mandado para
Beirute com o contingente encarregado de ocupar o aeroporto de Beirute.
25
anos depois de sua morte, a mãe dele, Peggy, que lecionou inglês na Universidade
de Auburn, reuniu uma seleção das cartas que Bill enviou à família e mandou para
mim.
Li
as cartas com profundo respeito por esse jovem que serviu lealmente seu país
(como o pai dele, William, piloto aposentado da Força Aérea dos EUA). Na
sequência, troquei
e-mails
com Peggy e nos falamos pelo telefone.
Foi
experiência duplamente comovedora. Comoveram-me, primeiro, as cartas de Bill
para a família. Refletiam o anseio típico, tão norte-americano, por coisas como
jogos de futebol e piqueniques na praia com amigos e parentes, ao mesmo tempo em
que ia-se tornando adulto, responsável por armas poderosas, quase sempre contra
inimigos que não via ou que jamais conheceu. As cartas mostram esses
sentimentos, observações, sensibilidade à devastação em Beirute e também temores
e frustrações sobre a própria missão dele ali.
Dia
7/9/1983, escreveu aos pais:
Estou
vivo e bem. Meio sujo, cansado e bombardeado, mas andando e falando. Nossa
“guerra” até aqui só durou três dias. Dois Marines
foram
mortos por foguetes e há mais feridos. A coisa é entre o Exército Libanês que
mete as calças e põe-se a bombardear muçulmanos sem mais nem menos. Começaram a
atacar pelo nosso perímetro, e fomos envolvidos nos combates. Ficamos aqui
levando bala e foguete... Temos revidado, com algum sucesso, mas só pegamos
atiradores isolados, ou destruímos uma ou outra posição dos foguetes, com
artilharia. Estou imundo, cansado demais e 100% inteiro. Preocupo-me mais com
vocês preocupados comigo, do que comigo mesmo... Como vocês disseram, aqui não
há paz nenhuma a ser mantida. Se você não é inventador de guerra, caia fora!
Acho que Beirute é, de fato, uma base de treinamento realista para o U.S.
Marine Corps,
para se habituarem com a coisa de verdade. Digam a todos que estou bem e planejo
continuar assim. Nada de me meter a ser herói. Cumpro meu tempo de alistamento
nesse quintal de lixo no Mediterrâneo. Penso em vocês, em casa. Amo vocês
muito.
As
cartas chamam a atenção – e, acho, são típicas de muitos soldados
norte-americanos em terras estrangeiras – pela nenhuma informação sobre o local
onde os soldados servem. Ele compensa a nenhuma informação, com humor e
manifestações de orgulho por estar servindo o seu país. Fez muito bem o seu
trabalho (foi várias vezes promovido antes e durante a estada em Beirute).
USS Bowen - 1079 |
No
dia seguinte àquela carta, dia 8/9/1983 – exatos 30 anos hoje – o torpedeiro USS
Bowen lançou seus torpedos de 5 polegadas contra posições druzas no Líbano. Foi
a primeira vez que se viu fogo naval dos EUA por ali, o que envolveu os EUA como
protagonistas ativos da guerra, aliados do governo local. Logo depois, dia
23/10/1983, um caminhão-bomba explodiu no quartel dos Marines e matou 241
norte-americanos; 58 soldados franceses foram mortos em outros ataques
semelhantes. Bill Stelpflug apareceu listado como “desaparecido em ação”. Dia
29/10/1983, um oficial visitou a família Stelpflug e informou que seu filho Bill
fora morto naquele ataque.
Peggy Stelpflug |
O
mesmo episódio emocionou-me outra vez, há 25 anos. Peggy Stelpflug escreveu-me
de repente, sem mais nem menos – soube que eu estava vivo e que escrevia de
Beirute sobre temas políticos, quase sempre criticando a política exterior dos
EUA – e perguntou-me honestamente:
Bill
serviu e morreu por alguma boa causa? A missão dos EUA no Líbano foi algo que o
povo libanês tenha aprovado? Os EUA acertaram ao usar força militar no Líbano em
1982-84?
Um
quarto de século depois da morte do filho em Beirute, ela precisava saber por
que seu filho morrera, se a causa daquela missão fora causa justa.
Peggy
e eu conversamos algumas vezes sobre o Líbano e os EUA. Acho que ela aprendeu
algumas coisas novas e eu, com certeza, aprendi muito com a reação digna dela e
daquela família. Pedi autorização a ela e ao marido para escrever aqui sobre as
cartas de Bill e sobre a preocupação da família com as amplas questões políticas
que modelam a política externa dos EUA, e eles concordaram gentilmente.
Peggy
e seu marido William partilharam o meu sentimento de que a vida e a morte de
Bill podem enriquecer “nosso desejo comum de sabermos mais uns dos outros, para
ampliar nossa partilhada humanidade (...) e que as lições da vida e da morte de
Bill podem talvez iluminar outros”.
É
muito adequado que hoje – 30 anos depois de navios de guerra dos EUA terem
bombardeado as montanhas do Líbano – todos nós estejamos bem certos, antes que
mais homens e mulheres dos EUA sejam mandados outra vez atacar alvos árabes, de
que cidadãos como a família Stelpflug sejam atentamente consultados e ouvidos
sobre decisão tão importante.
Os
que já se manifestaram contra o envolvimento dos EUA em mais essa guerra merecem
ser ouvidos e merecem resposta clara. O mesmo vale para o povo sírio. O mesmo
vale para todo o mundo. (...) É disso que se trata, me parece, quando se fala da
democracia e do “consentimento dos governados”.
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[*] Rami Khouri
George nasceu em 22/10/1948, em Nova York,
de uma família árabe/cristã/palestina. Seu pai, George Khouri, jornalista
Nazareno durante o mandato britânico da Palestina, tinha viajado com a esposa
para Nova York em 1947 para cobrir os debates na ONU sobre o futuro da
Palestina. Rami é jornalista e co-editor de publicações, palestino-jordanianas e
dos EUA. Tem família residente em Beirute, Amã e Nazaré. Ele
também é um orador público altamente considerado. Após frequentar o ensino
secundário na International School of
Geneva Suíça, Rami voltou para os EUA para completar sua educação.
Atuou por muitos anos como o principal árbitro de baseball na Jordânia. Publica
semanalmente duas colunas no jornal libanês The Daily
Star.
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