n. 18 - 26/9/2013,
pp. 40-41 “Diary”
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Obama e seus "sparrings"... ou cambonos |
Obama
tem uma queda pelo pouco caso, ou por tolices ditas como se fossem frases
solenes para a história, com as quais bem faria se começasse a se preocupar. Em
fevereiro de 2010, no auge da pressão para que seu governo agisse contra a
banqueirada responsável pelo colapso financeiro de 2008, Obama respondeu uma
pergunta sobre os capi Lloyd Blankfein (do Banco Goldman Sachs) e Jamie
Dimon (de J.P. Morgan Chase):
Conheço
esses dois caras: são homens de negócios muito bem informados.
Era
Obama tentando provar a si mesmo que estava “por dentro”, confortável naquele
ambiente, suficientemente próximo de Wall
Street, para impressionar um dos lados; mas suficientemente distanciado,
para merecer a confiança dos eleitores. Não funcionou. O comentário valeu-lhe um
grau a menos de confiança dos eleitores e livrou os culpados de boa dose de um
saudável medo.
Vladimir Putin |
Sei que a imprensa gosta de focar
a linguagem corporal, e ele lá ficou, com cara de aluno entediado no fundo da
sala de aula.
É
frase que até se pode arquivar para as Memórias, supondo que alguém a ache
esperta e digna de nota – mas imprópria, vinda de um estadista que descreva
outro líder mundial.
Já
transcorridos 56 meses de governo Obama, não cabem dúvidas de que Barack Obama
gosta de falar. Pensa que os americanos e outros anseiam por ouvir o que ele
tenha para dizer, e sobre vários assuntos; conforme essa sua percepção, ele
disse, em agosto de 2012, sobre
a guerra civil na Síria:
Uma
linha vermelha para nós é se começarmos a ver quantidades de armas químicas
movidas de cá para lá ou sendo usadas. Isso mudaria meu cálculo.
Em
março, a versão era outra, para a mesma declaração: o uso de armas químicas por
Assad “muda o
jogo”. Dois comentários nada diplomáticos. Quem estivesse interessado em
empurrar os EUA para mais guerras não diria melhor, nem mais claramente, dos
próprios interesses.
Quando
surgiram algumas evidências de que se usaram armas químicas na Síria, esse ano,
primeiro em março, perto de Aleppo, depois em agosto, perto de Damasco, as
forças que pressionam a favor do envolvimento dos EUA exigiram, imediatamente,
mudança de política.
Quem
são essas forças? Uma das maiores e das quais menos se fala nos EUA sempre foi a
Arábia Saudita. Se é preciso fornecer armas e dinheiro a jihadistas para
enfraquecer a Síria e, por essa via, enfraquecer também o Irã, os sauditas
sempre se mostram dispostos a fazer tudo isso. Turquia e Qatar também apoiam os
jihadistas, contando com auferir vantagem política; e a Israel interessa
prolongar a guerra, mas sem deixar que a vitória penda para os jihadistas. Assim
Israel brilha com renovado fulgor como único parceiro com que os EUA contam,
numa região que vai sendo cada vez mais devastada.
Matéria
publicada pelo New York Times dia 5/9 noticiava
manifestação de um ex-diplomata israelense, sobre os jihadistas e o
exército sírio:
Que
sangrem os dois, hemorragia até a morte: por aqui, esse é o nosso pensamento
estratégico. Enquanto continuarem assim, não haverá real ameaça síria.
Depois
que emergiram notícias do uso de armas de gás em março, Obama concordou, pela
primeira vez em público, com mandar armas norte-americanas para apoiar grupos
“do bem” dentro da oposição na Síria. Depois do incidente de agosto, no qual se
registraram mais mortes, Obama anunciou sua conclusão de que Assad ordenara os
ataques e que mísseis norte-americanos não tardariam a “punir” a infração
atacando alvos significativos do Estado. Ao mesmo tempo, Obama insistia que não
queria alterar o rumo da guerra, com a intromissão da força bélica dos EUA. Seu
plano não iria além de um bem merecido castigo. A formulação traiu a contínua
relutância; também mostrava que Obama pode ser levado a agir contra suas
inclinações e, mesmo assim, consegue acomodar a coisa aos seus próprios padrões
morais.
Não
há dúvidas de que houve um ataque. Ninguém sabe ainda, com razoável certeza,
quem o ordenou. Assad poderia ter ordenado, mas, dado que estava em vantagem na
guerra e o movimento seria suicídio, não se entende como Obama concluiu o que
concluiu. Diz-se que os rebeldes não teriam competência técnica para usar o gás,
mas há notícias de que estavam de posse de armas químicas; a ideia de uma
operação forjada, de provocação, e bem-sucedida, exigiria alto grau de perversão
e talento dissimulatório que também são difíceis de aceitar.
John Kerry |
As
quatro páginas de um resumo do “relatório de inteligência”, não sigiloso, que
Kerry distribuiu para divulgação pública – e, segundo avaliação do congressista
Alan Grayson, o relatório completo, 12 páginas, sigiloso, nada dizia de
diferente disso – falam do ponto de vista de “Nós [o governo dos EUA]”. A razão
desse uso pouco usual das fórmulas gramaticais é clara: o tal documento não foi
produzido pela inteligência dos EUA.
Gareth Porter |
Em
menos de uma semana o “relatório” de Kerry foi desqualificado e desacreditado,
mas nem a imprensa-empresa, nem o establishment político foram informados
disso.
Apoiado
só em inferências forçadas e pressupostos, dos quais a melhor “pista” era uma
comunicação interceptada – gravação de uma fala de um muito perturbado suposto
comandante de forças sírias, entregue aos EUA pela inteligência israelense –
Obama declarou sua intenção de ordenar um ataque. Em seguida, pediu autorização
ao Congresso, para usar força militar e queria poderes para agir como entendesse
necessário, para “responder a”, “deter” e “degradar” as capacidades militares e
defensivas do governo sírio. Todas essas são palavras sem significado preciso, e
foram escolhidas por essa razão. Em grau muito curioso, o pedido de Obama ao
Congresso em setembro de 2013 é parecido com o pedido de Bush, para o mesmo fim,
em outubro de 2002.
A
conversa sobre “punir” Assad é toda ela marcada por uma posição de disciplina
parental; não traz qualquer traço semântico da linguagem especializada do
Direito Internacional. Não aconteceu por acaso.
País
que ataque estado soberano, sem agressão prévia, viola leis do Direito
Internacional. Quanto a “punições”, até pode acontecer de um governo punir
legalmente os próprios cidadãos, mas não é relação possível entre dois países.
Um exemplo simples: um pai pode dizer ao filho “Vá para o seu quarto”. Mas
ninguém pode dizer a um vizinho indesejável “Você tem de sair”. Obama
confunde-se e atrapalha-se, de modo que parece bem genuíno, sempre que se
trataria de não ultrapassar a importantes linhas vermelhas dos discursos e das
palavras. Anda de um lado para o outro, com excessivo à vontade.
No início da crise, tentou armar
um estratagema retórico em torno da lei: os EUA e seus aliados, ao punir um
ataque a gás contra sírios, que sem dúvida possível fora ordenado pelo
presidente da Síria, estaria “fazendo
valer normas internacionais”.“Normas internacionais” é
expressão que, ultimamente, se ouve por toda parte. Um mundo sem normas (parece
ser a implicação inevitável) é mundo em caos. Uma vez que a Rússia não
levantaria o veto na ONU e confiado no que lhe diziam franceses e britânicos e o
seu próprio governo... quem faria valer as normas internacionais? Quem, se não
os EUA?
John McCain (E) e Lindsay Graham (D) |
O
presidente e equipe foram profundamente perturbados pelo resultado daquela
votação. O povo e seus representantes respiraram fundo; e a política de guerra
dos EUA começou a ser mais amplamente questionada. Que sentido teria o tal
ataque “limitado e adequado” [orig. “limited and tailored”] (frase típica
de Obama) que simultaneamente aplicaria golpe inesquecível ao “ditador” alvo?
Susan Rice |
A
campanha doméstica a favor de ataque norte-americano aos sírios foi marcada por
uma notável novidade vinda dos agentes promotores de guerra humanitária:
mensagens de Twitter, enviadas por Rice e pela embaixadora dos EUA à ONU,
Samantha Power, para promover também pelo lado de fora os objetivos pelos quais
trabalhavam dentro do governo.
Todas
elas são nomes que Obama nomeou recentemente e pelas quais expressou admiração.
Mas, ao obedecer a elas e a um novo discípulo delas, recém conquistado, John
Kerry, Obama passava a ignorar outra vozes dentro do governo, que teriam enorme
peso. Todos os comandantes militares do Estado-Maior das Forças Armadas
opunham-se à intervenção na Síria. O chefe dos chefes do Estado-Maior, general
Martin Dempsey, já vinha dizendo há meses por que considerava perigoso o ataque.
Que para nada serviria, exceto para prolongar a guerra civil; e que exporia bens
norte-americanos na região à retaliação, no Afeganistão, na Líbia, por toda a
parte. (Susan Rice comandou a campanha para que os EUA, com a OTAN, derrubassem
o governo na Líbia. É possível que Obama ainda suponha que a guerra da Líbia
tenha sido um sucesso, mas é ilusão só sua, da qual não partilham nem as forças
armadas nem o serviço diplomático norte-americano).
Dempsey, Kerry e Hagel depõem no Senedo e na Câmara dos Representantes dos EUA |
Rush Limbaugh |
O
provável maior problema de qualquer governo em total desalinho é que ele induz
as pessoas a pensar duas vezes sobre tudo que o governo faça ou diga e sobre
todas as suas políticas.
No
final de agosto, com britânicos ou sem, os EUA estavam posicionados para ir à
guerra. Mas a opinião pública já migrara para um ceticismo desconfortável – a
proporção, que era de 3:1 a favor dos que não queriam a guerra, subiu, na
segunda semana de setembro para mais de 2:1 contra. E foi no meio dessa deriva
que o presidente resolveu enviar a questão ao Congresso e pedir que dividissem
com ele a responsabilidade. Mas o Congresso, então, já estava refletindo a
opinião pública. A consulta sugeriu que Obama queria mais tempo para pensar, e
que não queria perder para a Grã-Bretanha, que seguira os procedimentos de um
governo constitucional. Mas incongruente e muito estranhamente, Obama logo
acrescentou que não seria pautado pela votação no Congresso. O que aí se vê é
ambivalência pessoal privada, exposta para contemplação universal.
Mas
naqueles primeiros dias de setembro já se respirava outro ar, o ar de uma
democracia que olhava a própria cara. John McCain foi acusado de leviandade,
numa reunião popular no Arizona, por uma mulher que tem um primo sírio. O
senador Rand Paul, o branco libertarista do Kentucky, e o Deputado Elijah
Cummings, o negro liberal de Baltimore, relataram, ambos, que seus respectivos
eleitores opunham-se a qualquer ataque, na proporção de quase 100:1. O
presidente e sua secretaria de Estado, e com esses também uma vasta porção da
elite política, haviam aprovado a ação militar para derrubar um quarto governo
no Oriente Médio, depois de Afeganistão, Iraque e Líbia. Mas o povo dos EUA,
dessa vez, disse “não”.
Mesmo
assim, na primeira semana de setembro, Obama e Kerry ainda defendiam tanto a
ambição delirante quanto a versão minimalista de seu ataque tão premeditado.
Ataque decisivo e para incapacitar, que duraria poucos dias: essa parece ter
sido a versão que o presidente apresentou a Graham e McCain. Mas o ataque que
Kerry antevia, como disse à imprensa britânica dia 9/9, seria:
(...)
muito limitado, muito focado, esforço de
curto prazo... Estamos falando é disso – esforço incrivelmente pequeno e
limitado.
E
a confusão não fica aí. Recentemente em sua fala à nação, dia 10/9, Obama
contradisse Kerry e afirmou que o ataque não seria um beliscão, acrescentando em
tom grave:
Os
militares dos EUA não dão beliscões.
Dia
9/9, Kerry deixou escapar um comentário, que seria carregado de consequências. O
único meio pelo qual Assad conseguiria evitar ataque norte-americano seria ele
entregar suas armas químicas a supervisão internacional e eventual destruição.
“Claro” – Kerry acrescentou – “que não acontecerá”. Putin ouviu e entrou em
cena. Mas, sim, disse Putin, é claro que acontecerá, porque a Síria entregaria
suas armas químicas à inspeção internacional e até ao confisco, nos termos de um
acordo que a Rússia intermediaria; em segundos, seu ministro de Relações
Exteriores, Sergey Lavrov, apareceu com um plano diplomático no qual já vinha
trabalhando há meses.
A
Casa Branca e o Departamento de Estado fizeram de tudo para ficar com os
créditos por esse desenvolvimento, mas é quase impossível acreditar que tenha
sido resultado de plano conjunto, do qual Kerry tivesse participado. Implicaria
que o presidente ter-se-ia posto, ele próprio, numa situação que causaria
embaraços ao governo, que o humilharia pessoalmente e que poria o mundo à beira
de uma guerra, “porque” sabia da surpresa que surgiria no momento certo.
A
boia não requisitada que Putin empurrou para Obama levou o presidente a retirar
a consulta que encaminhara ao Congresso – mas, isso, só depois de ter absoluta
certeza de que a votação aconteceria dia 11/9. Estava a caminho de ser derrotado
na Câmara de Representantes e, possivelmente, até no Senado.
Dia
10/9, o presidente falou à nação. Precisou de mais tempo para justificar o
ataque que estava devolvendo à prateleira, do que para explicar a nova rota na
qual já estava comprometido, mas foi discurso “de abafa” também em outros
sentidos: às vezes pedia, às vezes denunciava; dava lições de que o amor à paz
tem às vezes de nos envolver em guerras, reiterando o imperativo de construir os
EUA em casa, mas tomando o atento cuidado de falar do holocausto de judeus. E
fechou com um apelo convencional ao onanismo nacional norte-americano:
(...)
estamos sós no mundo, disse o presidente.
Somos a nação “excepcional”. Por quase sete décadas os EUA têm sido a âncora da
segurança global.
Dia
seguinte, o New York Times publicou coluna
editorial assinada por Putin, que expressou sua esperança de que os
norte-americanos escolheriam evitar guerra mais ampla. Falou com consideração,
de Obama.
Examinei atentamente a fala do
presidente à nação, na 3ª-feira. E tenho de discordar da defesa do
excepcionalismo norte-americano. O presidente disse que a política dos EUA é o
que “faz diferentes os EUA, o que nos faz excepcionais”. É extremamente perigoso
estimular as pessoas a que se vejam, elas mesmas, como diferentes, seja qual for
a motivação.
Putin cumprimenta Obama durante o G20 último |
É
pouco provável que Obama mude outra vez, por hora. Mas deixar-se na posição
passiva, de quem só ouve o que os russos digam, que responde às vezes sim, às
vezes não, às vezes “Vamos analisar”, exporá todo seu governo à acusação de
estar “liderando pela retaguarda” demais (foi Obama quem inventou essa,
ao jactar-se do que fazia na Líbia). A diplomacia é coisa relativamente nova
para Obama. Mas, dessa vez, não teve escolha.
Nem
Obama pode entregar essa carpintaria delicada às que mais alto gritavam a favor
da guerra.
Obama
terá de trabalhar duro para resistir à pressão para bombardear o Irã que nunca
para de vir de Israel e do lobby israelense nos EUA. Delegar grandes
responsabilidades de governo pode ser compatível com um sinal de humildade – e
até funcionou assim, para Reagan – mas há cenários nos quais essa atitude
aproxima-se perigosamente da temeridade ou da irresponsabilidade.
Em
dezembro de 2011 pediram a Obama que ele confessasse um defeito pessoal;
respondeu que o defeito que criticaria em si próprio era a preguiça. Mais uma
vez (como o que disse sobre Putin e os banqueiros), melhor que não tivesse dito.
Mas, seja como for, aí está a chance para se autorreformar: um tempo para
comprometer-se pessoal e profundamente na construção de suas políticas, menos
discursos palavrosos, menos comentários descuidados nas entrevistas; ocasião
para trabalhar ativamente com novos parceiros, além de França, Grã-Bretanha e
Israel.
Se
quer igualar-se a Putin nas artes da diplomacia e superá-lo no difícil exercício
da autocontenção, Obama tem de aproveitar esse momento, também, para
reconsiderar o extraordinário aparelho de sigilo em que seu governo está
confinado, para tudo que tenha a ver com a segurança e com suas políticas
externas.
[*] David Bromwich ensina literatura em Yale e escreve sobre política e cultura para vários veículos como: The New Republic, The Nation, The New York Review of Books, London Review of Books e outros jornais e revistas. É editor da obra de Edmund Burke On Empire, Liberty, and Reform e co-editor da revista On Liberty da Yale University Press.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Registre seus comentários com seu nome ou apelido. Não utilize o anonimato. Não serão permitidos comentários com "links" ou que contenham o símbolo @.