13/5/1999, [*] Terry Eagleton
− London Review of Books, vol. 21, n.
10, pp. 3-6
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Resenha de: A
Critique of Post-Colonial Reason: Toward a History of the Vanishing Present,
Gayatri
Chakravorty SPIVAK, Harvard, 448 pp (junho 1999) − ISBN 0 674 17763 0
Nesse
supermercado de exibidos da mente, em que tudo é permitido, qualquer ideia
pode, aparentemente, ser trocada por qualquer outra. O que alguns talvez chamem
de pensamento dialético é, para outros, uma inabilidade patológica de manter-se
atento ao problema. A linha entre o hibridismo pós-colonial e o vale-tudo-ismo
pós-moderno é embaraçosamente tênue.
A ênfase
pós-estruturalista na “posição do sujeito” é parente próxima da obsessão
existencialista com a autenticidade: o que você diz conta menos que o fato de você
estar dizendo [qualquer coisa].
O
liberalismo, muito semelhantemente, tende a crer que o escolhido é menos
importante que o fato de que eu escolhi [qualquer coisa] –, por isso é
ética especialmente talhada para adolescentes” (Eagleton, aí, adiante).
Em algum lugar deve haver um manual
secreto para críticos pós-coloniais, cuja primeira regra ordena: “Comece por
rejeitar toda a noção de pós-colonialismo”. É notável o quanto se padece para
encontrar entusiasta sem restrições, entre os que promovem a ideia: tão difícil
como foi, nos 1960s ou 1970s, achar quem confessasse ser estruturalista. A
ideia do pós-colonial tanto apanha dos teóricos pós-coloniais, que usar sem
reservas a palavra seria quase como se autochamar de balofo, ou confessar algum
interesse furtivo pela coprofilia. Gayatri Spivak anota, com algumas evidências
em seu livro, que grande parte da teoria pós-colonial norte-americana é “lixo”,
mas a ressalva é de rigueur, sempre que se tem um crítico pós-colonial
escrevendo sobre o resto. Além do mais, que seja um teórico do “Terceiro Mundo”
a trazer a notícia aos seus colegas norte-americanos é, num sentido, muito mal
visto; noutro, é exatamente o que os norte-americanos querem ouvir. Nada mais “da
moda” na academia norte-americana sempre devastada pela culpa, que confessar a
inevitável má fé na posição de quem escreve. É o mais perto a que um
pós-moderno consegue chegar, da autenticidade.
A segunda regra desse manual clandestino
ordena: “Seja o mais obscuro e incompreensível possível, no limite do que você
ainda tenha escapatória”. É frequente encontrarem-se teóricos pós-coloniais em
estado de agonia provocada pela ravina que distancia e separa o próprio
discurso intelectual deles e os povos nativos dos quais eles falam; mas a
ravina parece-lhes menos horrível se não produzem discurso que a maioria dos
intelectuais considerem inteligível. Ninguém precisa ser nativo de favela para
estar qualificado a declarar “pretensiosamente obscura” uma confusão metafórica
spivakiana como: “muitos de nós
tentam esculpir nossas negociações positivas com a grafagem epistêmica do
imperialismo”. É difícil ver como alguém consegue escrever desse jeito e,
simultaneamente, admirar a escrita luminosamente clara de, digamos, Freud.
A teoria pós-colonial faz tempestades
a favor de respeitar o Outro, mas o Outro mais próximo deles, o mais
imediatamente próximo deles, o leitor, fica, ao que parece, excluído daquela
sensibilidade.
Acadêmicos radicais, algum ingênuo
poderia ingenuamente supor, têm certa responsabilidade política por garantir
que suas ideias cheguem a públicos também do lado de fora de salas de reunião
do Conselho Universitário.
Bertolt Brecht |
Mas na academia nos EUA, as
popularizações ou Plumpes Denken [alemão, “pensamento cru” [1]] pouco rendem ao autor em termos de cátedras ou prêmios prestigiosos;
então esquerdistas como Spivak, apesar do muito que escarnecem da academia,
sempre podem esperar boa recompensa se escrevem escrita ainda mais inacessível
ao público que os elitistas literários que tão apaixonadamente os menosprezam.
Pode ser também o caso, é claro, de
que a meta de uma sentença tão desgraçada como “o paratema incoativo infans
aboriginário não pode ser teorizado como se fosse completamente funcionalmente
congelado num mundo no qual a teleologia é esquematizada em geo-grafia” seja
subverter a falsa transparência da Razão Ocidental. E pode também ser que
discutir questões públicas nesse idioma tão hermeticamente privado seja, mais,
sintoma daquela Razão, do que solução para o sintoma. Como na maioria das
questões de estilo, a obscuridade de Spivak não é só questão de estilo.
Seu ouvido surdo a tom e ritmo, o
descalabro descuidoso com a textura verbal, suas mordidas teóricas (“Derrida
pôs em cena o homoerotismo da filosofia europeia na coluna esquerda de Glas” [2]), saltam tanto da própria linguagem
feita mercadoria dos EUA como da tentativa pervertida de miná-la. Uma sentença
que começa “Aos 26, grafando-se ele mesmo no sotaque da Aufhebung, [3] Marx vê a necessidade, para sua empreitada crítica”...
combina o vocabulário de Hegel e a sintaxe de “Oba. Tudo belê?” da linguagem de
Spivak, vagueando, como faz, do tom altissonante para a malandragem de rua,
pertence a uma cultura na qual há cada vez menos e menos meio campo, entre o
portentoso e o feito em casa, o retórico e a futrica. Um pingo de ironia ou de
humor seria fatal para a solenidade autocontemplativa.
Gayatri Spivak |
Ao longo de seu livro, Spivak escreve
com grande brilho teórico sobre Charlotte Brontë e Mary Shelley, Jean Rhys e
Mahasweta Devi; mas não dá praticamente qualquer atenção à linguagem, à forma
ou ao estilo do que escrevem. Como qualquer aluno iniciante de qualquer velha
faculdade de Letras que Spivak tanto despreza, a sua teoria literária mais avant-garde
reduz-se, se se examina de perto, à velha boa antiga análise de conteúdo.
Spivak opõe-se, com razão, aos
filisteus esquerdistas, para os quais qualquer ideia que não derrube
instantaneamente os patrões seria tão politicamente inútil quanto a topologia
algébrica. Mas reluta muito, demais, a reconhecer a semente de verdade que há
no ponto de vista deles: que a teoria radical tende a crescer desagradavelmente
narcisista, se privada de uma válvula política de vazão. Como os semioticistas
poderiam dizer, a teoria então passa a se impor por metáfora, no lugar do que
ela significa.
A revolução política implica muitos
perigos, mas fracassar na operação de concentrar magnificamente a inteligência
não está entre eles. As digressões infinitas e as autointerrupções nesse estudo
– como os meandros que vão de Kant a Krishna, de Schiller a Sati, cabem, dentre
outros buracos, numa esquerda politicamente sem rumo. Leitores mais caridosos
verão esse cozidão de tediosa loquacidade como ataque às narrativas lineares do
Iluminismo, por autora cujos gênero e etnicidade são lá violentamente
excluídos.
Se sociedades coloniais passam por o
que Spivak chama de “uma série de interrupções, repetidos cortes de tempo que
não podem ser suturados”, o mesmo vale também para sua prosa superinflada,
excessivamente elíptica. Ela própria, como se poderia esperar que acontecesse e
acontece, lê o que é espinha dorsal partida na estrutura do livro, como se
fosse distanciamento iconoclasta da “prática acadêmica ou crítica aceita”. Mas
as elipses, o jargão super carregado, o pressuposto de superioridade (segundo o
qual todos entendem o que ela diz, mas, se você não entender coisa alguma, ela
nem se importa muito) são tanto a supercodificação de uma ‘manha’ acadêmica,
quanto o beijo-de-judas do academicismo convencional.
Assim como um salto abrupto de Jane
Eyre para O Modo Asiático de Produção desafia as noções
composicionais de acadêmicos machos e brancos, há aí também mais do que um
toque do bom velho ecletismo norte-americano. Nesse supermercado de exibidos da
mente, em que tudo é permitido, qualquer ideia pode, aparentemente, ser trocada
por qualquer outra. O que alguns talvez chamem de pensamento dialético é, para
outros, uma inabilidade patológica de manter-se atento ao problema. A linha
entre o hibridismo pós-colonial e o vale-tudo-ismo pós-moderno é
embaraçosamente tênue.
Christopher Ricks |
Como feminista, desconstrucionista,
pós-marxista e pós-colonialista, tudo ao mesmo tempo, Spivak parece não querer
perder nenhum dos jogos teóricos que estão rolando hoje na cidade. Multiplicar
as próprias alternativas é postura teórica admirável, tanto quanto é item
conhecido da filosofia do supermercado norte-americano. Para Spivak, impor uma
narrativa coerente aos seus materiais, mesmo que o título sugira espuriamente
uma (alguma) narrativa, seria pecar por teleologia, que pune com pena de
banimento alguns tópicos, como o imperialismo bane alguns povos.
Mas se teóricos culturais hoje em dia
podem saltar bruscamente de alegoria para Internet, numa espécie de versão
intelectual do DDA (Déficit de Desordem de Atenção), é em parte porque estão
libertos dos clamores inevitavelmente constritores de algum grande projeto
político. Pensamento lateral, assim, é quase absolutamente não distinguível de
perda de objetivo político. Até os livros sobre os quais Spivak não escreveu
circulam como fantasmas inquietos pelas notas de rodapé, resistindo contra a
exclusão. Verdade é que ainda falta escrever outro ensaio sobre os escritos não
publicados de Gayatri Spivak, que tomaria por objetos todas aquelas notas nas
quais ela anunciou trabalho jamais publicado ou que ninguém jamais viu ou que a
autora apresenta como trabalho que ela não pode ou não quer escrever.
O ardente desejo de Spivak de dizer
tudo de uma vez talvez não seja perfeitamente inocente, ou desejo de
impressionar; mas é muito mais do que isso, assim como a obscuridade do estilo
de um teórico pode vez ou outra ser sinal quase tanto de insegurança, quanto é
de arrogância. Fato é que Spivak tem amplidão formidável de referências, o que
deixa muito teórico cultural parecendo tristemente paroquial. Poucos poderiam
de longe, que fosse, equiparar-se ao alcance e à versatilidade desse livro, que
vai da filosofia hegeliana e dos arquivos históricos da Índia colonial à cultura
pós-moderna e ao comércio internacional.
Muitos autores pós-coloniais agem como
se as relações entre o norte e o sul do mundo fossem, basicamente, assunto
‘'cultural'’, o que permite aos tipos literários exercitar os músculos em
questões mais pesadas que a imagética dos insetos no James da última fase.
Spivak, ao contrário, manifesta adequado escárnio contra tal “culturalismo”,
mesmo que partilhe de boa quantia dos pressupostos dele. Não comete o erro de
imaginar que ensaio sobre a figura da mulher em Passagem para a Índia seja
inerentemente mais ameaçador, contra as corporações transnacionais, que uma
pesquisa sobre o emprego do ponto-e-vírgula, em Thackeray. As relações entre
norte e sul não são basicamente sobre discurso, linguagem ou identidade, mas sobre
armas, mercadorias, exploração, trabalhadores precários, imigrados, dívida e
drogas; e esse estudo trata de realidades econômicas que excesso de críticos
pós-coloniais só fazem culturalizar e afastar para bem longe. (Para alguns
deles ultimamente qualquer referência ao econômico seria, por isso mesmo,
“economicista”, assim como falar de pulmões ou rins já é imediatamente
“biologismo”). Se Spivak sabe de grafêmica, também sabe da indústria do
vestuário. E ajuda bem que ela esteja entre os/as mais coruscantemente
inteligentes teóricos contemporâneos/as, cujos insights podem ser
idiossincráticos, mas só muito raramente são menos que originais.
É possível que ela tenha feito mais
bem político de longo prazo, como pioneira de estudos feministas e pós-coloniais
na academia global, que qualquer outro de seus/suas colegas de teoria. E, como
essas grandes maîtresses, tem de enfrentar agora essa fonte inesgotável
de incômodos e embaraços: os acólitos devotados.
Ela desincumbe-se da tarefa com
excessiva graça. Alguém devia mesmo escrever uma crítica da razão pós-colonial,
avaliando as realizações e os absurdos, mas esse livro é excessivamente
bem-comportado, excessivas boas-maneiras, tanto quanto excessivamente
episódico, para a tarefa. Se o subtítulo mal se entende, o título, esse,
desencaminha completamente. Spivak é simultaneamente a autora mais bem e mais
mal situada para levar a cabo esse projeto; e quanto falha, o fracasso é,
simultaneamente também, frustrante e compreensível. É a mais bem situada,
porque, como imigrada para o ocidente, consegue ver aqueles limites conceituais
menos óbvios para locais e insiders.
Há muito oportuno bom senso, mas só se
Spivak parasse de só pensar na frase, em mostrar aos mais idealistas empregados
da indústria ocidental pós-colonial que o nativismo não deve ser romanticizado;
que as minorias étnicas dentro dos países-metrópoles não são a mesma coisa que
povos colonizados; que nada há de “essencialista” nos direitos civis; e que,
para grupos subalternos, tornarem-se cidadãos institucionalizados não é meta
desejável só para primitivistas passeadores de cartazes em passeatas. Diferente
de alguns de seus colegas de olhos mais na-Lua, Spivak não vê a transição de
migrante étnico para executivo de empresa como inequívoco progresso, nem sente
a necessidade de denunciar “empreendedores étnicos, cafetões das
transnacionais, que vendem as próprias mulheres a empregadores clandestinos”.
Também sabe que feministas a trabalhar
pró “justiça de gênero” no ocidente só fazem contribuir inevitavelmente para
promover uma ordem social cujas operações globais violentarão ainda mais os
mesmos direitos noutros pontos do planeta.
Mas essa crítica aguada contra os
liberais pós-coloniais ocidentais tampouco chega aos cabeças. Se Spivak mostra
faro refinado para localizar a mentira, a hipocrisia, o apadrinhamento
ocidental, ela ao mesmo tempo é notavelmente cautelosa no serviço de não
sugerir rompimentos nem quebrar fileiras. Num sentido, é uma recusa louvável a
ceder ao jogo sujo entre os que sabem e os que querem saber. Já há
autodilaceramento fútil suficiente dentro da academia norte-americana, sem
Spivak fazer-se ainda mais, de vítima. É também valente reconhecimento de sua
própria condição comprometida, como celebridade acadêmica que discorre sobre casta
e clitoridectomia. Mas há mais que isso, nas reticências dela.
Esse livro encaminha algumas bem
merecidas porretadas à ninhada mais feroz dos críticos pós-colonialistas, cuja
fascinação pelo Outro é em parte uma ânsia desmoralizante de não serem absolutamente
outro, nada de outro, só eles mesmos. Mas vem também suavizado pelo consenso
brando, anódino da academia norte-americana, na qual os grandes conflitos são
praticamente sempre abafados por um “profissionalismo” que interessa a todos.
Além do hábito-sintoma revelador de
usar o adjetivo “agressivo” como elogio, os EUA são cultura que teme
profundamente qualquer discussão ou debate – o que talvez explique que a luta
livre, jogo que converte briga em simulacro e espetáculo, seja o esporte mais
popular da televisão norte-americana.
Spivak é a mais mal posicionada dos
críticos para escrever o livro que seu título tão falsamente promete, porque
ela é também, por demais, a insider, como uma das maiores
arquitetas de toda a empreitada pós-colonial no Ocidente. Seu arquiteto
associado, Edward Said, rapidamente perdeu a paciência com o que haviam
conseguido construir juntos e, à maneira dele, sedutoramente cáustico, não se
nega a dizer precisamente isso.
Mas Spivak é mais irênica [4] do que sugeriria a sua prosa ocasionalmente pugilística.
Seu comentário de que muito na área é “lixo” é em vasto sentido, marginal. Se
ela distingue corretamente entre minoria étnica e nação colonizada, ao mesmo
tempo não consegue afirmar o ponto de que foi bom negócio do pós-colonialismo
ser uma espécie de versão “exportada” dos graves problemas étnicos dos EUA e,
assim, apenas mais uma instância do God’s Own Country, [5] um dos mais insulares da Terra, que define o resto do mundo em termos
dele mesmo.
Para que essa exportação acontecesse,
algumas importações, conhecidas como intelectuais do Terceiro Mundo, tiveram de
atuar como seus agentes; embora Spivak tenha razão para saber disso melhor que
muitos, ela nunca para por tempo suficiente em seu livro, em pausa para
desembrulhar suas implicações. Fazer isso requer alguma crítica sistemática;
mas crítica sistemática é, para ela, parte mais do problema que da solução,
como é para os suficientemente privilegiados para não precisarem de
conhecimento rigoroso. Esses indivíduos são acostumados a ser tratados como “a
elite” [orig. the gentry], e são hoje conhecidos como
pós-estruturalistas. Se ela pode ser esplendidamente amarga sobre “rapazes
brancos falando de pós-colonialidade”, ou da aliança entre estudos culturais,
multiculturalismo liberal e capitalismo transnacional, esses saudáveis bocados
só brevemente surgem à superfície, para novamente sumirem no cozido indigesto
de seu texto.
Homi Bhabha |
Há, com certeza, muito mais a ser dito
a favor dos estudos pós-coloniais do que isso aqui, e a própria Spivak diz
muito nessas páginas. Sejam quais forem as ilusões românticas e a
autoapreciação secreta dos estudos pós-culturais, seu setor de mais rápido
crescimento, o da crítica literária, assinala a entrada no estágio cultural
ocidental, pela primeira vez na história, dos que o ocidente mais agrediu e dos
que mais abusou. Difícil, pois, que haja críticos mais importantes em nosso
tempo que os equivalentes de Spivak, Said e Homi Bhabha, mesmo que dois desse
trio sejam impenetravelmente opacos.
Diferente de salvar-se um dentre dois
ladrões no Calvário, aqui a porcentagem não é razoável. Mas há razões pelas
quais dar crédito, tantas quantas pelas quais não dar, ao rápido surgir à tona
do pós-colonialismo, e Spivak, praticamente durante todo o tempo, mantém-se em
silêncio sobre elas. O nascimento, por exemplo, seguido do início da derrota,
pelo menos por hora, de ambos: da luta de classe nas sociedades ocidentais e do
nacionalismo revolucionário no mundo antes colonizado.
Os alunos nos EUA que, embora não por
culpa deles, não reconhecem a luta de classe nem que apareça pendurada à rabeta
de suas pranchas de skate, ou que talvez não amassem tanto o Terceiro
Mundo se alguns de seus habitantes se puserem a matar seus pais e irmãos em
grandes números, podem deslocar generosamente seus vicários sentimentos
generosamente radicais, bastando para tanto deslocar a opressão para outros
pontos. Esse movimento os deixa plugados às sombras das dores da moda
pós-moderna sobre o atraso ‘monolítico’ das próprias ordens sociais. É como se
o tema desorientado, empobrecido, do Ocidente consumista conseguisse, por uma
extraordinária ironia histórica, encontrar uma imagem dele mesmo, nos
condenados da terra. [6]
Se “margens” não andam muito na moda,
é em parte porque os que habitam as margens clamam por justiça política, e em
parte porque uma geração sem memória política delegou cinicamente toda a
esperança ao “centro”.
Como grande parte do feminismo norte-americano,
o pós-colonialismo é um modo de ser politicamente radical, sem ter
necessariamente de ser anticapitalista, e, assim, é uma forma peculiarmente
hospitaleira de esquerdismo para um mundo “pós-político”.
Gayatri Spivak, diferente disso, manteve
a fé, embora com ambiguidades, na tradição socialista; mas embora haja muitas
agudas percepções sobre o marxismo em seu livro, ela está investida
profundamente demais no feminismo e no pós-colonialismo, para lançar a crítica
socialista à vera, dessas correntes. E assim como aqui cavalga dois mundos, e
também o hábito cansativo em seu trabalho de se autorreferir e se
autoteatralizar, vê-se o autodesempenho irônico do colonial, uma facada
satírica na personificação de intelectual, e um já conhecido culto norte-americano
à personalidade.
George Orwell |
Há alguns tipos de crítica – a de
Orwell pode servir como exemplo – que são muito mais radicais politicamente do
que o estilo “senso comum” poderia sugerir. Com toda a azia que faz jorrar
sobre os marxistas, para nem falar da visível vontade de entregar os comunistas
ao estado, as políticas de Orwell têm muito mais longo alcance do que sua prosa
pensada convencionalmente pode sugerir. Como grande parte do que se escreve de
pós-colonial, a situação é exatamente o contrário.
O coruscante avant-gardismo teórico
deles oculta uma agenda política muito pobre, bem modesta. Onde se arriscam a
fazer propostas políticas, o que é muito raro, eles sequer têm o élan
revolucionário das escandalosas especulações sobre o desejo ou a morte do Homem
ou o fim da História. Esse é um traço que também se constata em Derrida,
Foucault e outros como eles, que vagueiam entre um culto da ‘loucura’ ou da
‘monstruosidade’ e um tipo mais contido, reformista, de política, recuando para
um ou outro ponto, dependendo da direção da qual lhes venha o fogo crítico.
Jacques Derrida |
Derrida – figura que esse livro
consagra, sobre o qual não se admite nem um sopro de crítica – consegue fazer a
desconstrução soar, às vezes, como um tipo de negócio tão ordinário,
afirmativo, inócuo, que se fica a cogitar por que Christopher Ricks e Denis
Donoghue não correm imediatamente a abraçá-lo. Outras vezes, e para outros
públicos, torna-se assunto muito mais ameaçador: nada menos que uma forma
radicalizada de marxismo, o que, aliás, deve irromper como grande surpresa para
muitos desconstrucionistas e para todos os marxistas.
Desconstrução pode ser, sim, manobra
politicamente desestabilizatória, mas devotos como Gayatri Spivak teriam de
reconhecer também seu efeito de desvio.
Como muita teoria cultural, ela
permite que alguém fale soturnamente de subversão, ao mesmo tempo em que, em
termos políticos, posiciona-se só um pouquinho à esquerda de Edward Kennedy.
Para alguns teóricos pós-coloniais, por exemplo, o conceito de emancipação é
chapéu embaraçosamente velho. Para algumas feministas norte-americanas,
socialismo é território tão jamais pisado como Alpha Centauri.
Denis Donoghue |
As próprias políticas de Gayatri
Spivak são tão elusivas como seus processos de pensar; mas há indícios nesse
estudo de que ela também é bastante mais ousada na epistemologia, que na
reconstrução social. Às vezes, ela falará positivamente sobre a necessidade de
novas leis, sistemas de educação e saúde, relações de produção; outras vezes,
em estilo pós-colonial familiar, sua ênfase é menos na transformação que na
resistência.
A resistência sugere ação militante,
mas também implica que a pegada política está(ria) noutro lugar. É doutrina
conveniente para os que não gostam do que o sistema faz, ao mesmo tempo em que
duvidam de que algum dia terão força bastante para pô-lo abaixo. O marxismo,
para Spivak, embora não para seu fundador, é uma especulação, não um programa;
e só pode ter consequências violentas se usado para “engenharia social
preditiva”. Como o pensamento de estrangular seu companheiro de apartamento; em
outras palavras: tudo bem, desde que você não aja. O atual sistema de poder
pode ser incessantemente “interrompido”, adiado ou “posto de lado”, mas tentar
ir além dele, completamente, é a forma mais crédula de utopismo.
Stanley Fish |
Pode até que venha a ser verdade, mais
soa um pouco demais antidesconstrutivistamente seguro de si, como estão as
coisas, assim como esse livro assume (sem argumentar abertamente) o caso
pós-moderno dogmático segundo o qual todo o universalismo é reacionário, quase
toda transgressão ou disrupção é positiva, e quase todas as tentativas de
calcular com precisão e rigor são uma forma de razão dominatória. Para Spivak,
propor um “outro” ao que temos hoje é negar a inevitável cumplicidade de alguém
com o que tenha; e assim é deixar particularmente vulneráveis críticos como ela
mesma. Ninguém imaginaria que Stanley Fish não estaria afundado até as orelhas
no capitalismo, nem Stanley Fish; mas há várias almas enganáveis nos programas
de graduação nos EUA que podem cometer o erro de ver Gayatri Spivak como algum
avatar de pura alteridade. Ela mesma trabalha corretamente para emperrar esse
sentimentalismo, lembrando esses fãs da Mulher Negra de que ela também é
burguesia altamente paga e líder de uma elite colonial. E então, ela antes opta
pela má fé de recusar o sistema sem propor alternativa geral, que pela má fé de
negar sua colusão com o mesmo sistema.
Mas a culpa pode ser tão desabilitante
quanto a arrogância. O bem político que Spivak fez ultrapassa em muito o fato
de que ela vive vida mansa nos EUA. Se cumplicidade é viver em sociedade
capitalista, praticamente todo mundo, até Fidel Castro, pode ser acusado de
cúmplice; se significa ‘comprar sua parte para entrar’ (como diz eloquentemente
a expressão “buying in” dos norte-americanos) em algo chamado Razão
Ocidental, então só esses pensadores racistas e não dialéticos para os quais
tal razão seria uniformemente opressora têm por que se preocupar com ela.
A palavra “cúmplice” tem um signo
daninho ligado a ela, mas nada há de daninho em ser “cúmplice” do Grupo de Ação
Contra a Pobreza Infantil ou dos escritos das suffragettes. Em todos os
casos, Spivak está logicamente errada ao supor que imaginar alguma alternativa
geral ao atual sistema significa(ria) declarar-se não conspurcada por ele.
Imaginar que seria ótimo estar em Siena não é necessariamente negar o fato de
que estou em Scunthorpe.
Aijaz Ahmad |
Ela compara sua própria crítica da
teoria pós-colonial metropolitana ao ardente assalto que seu colega indiano
Aijaz Ahmad [7] move contra ela em seu livro In
Theory, e apresenta o próprio livro dela como “mais nuançado, com reconhecimento
produtivo de cumplicidade”. Mas por que, afinal, isso deveria ser pressuposto
qualidade, se o resultado é menos aproveitável?
Ahmad pode disfarçar seu envolvimento
no que ataca, pelo menos na visão de Spivak, mas isso não implica
automaticamente que faça retrato menos acurado [do que ataca]. Seja como for, pode-se
dizer que Ahmad é menos “cúmplice” que Spivak: lecionou por muito menos tempo no
ocidente; está mais explicitamente comprometido com uma alternativa socialista;
e está muito (muito!) menos apaixonado por novas teorias cevadas no ocidente.
Mas nada disso importa. O que importa
é que ele escreve muito bem sobre teoria pós-colonial, um corpo de trabalho
escrito que se pode descartar em Delhi e apoiar em Sacramento. A ênfase
pós-estruturalista na “posição do sujeito” é parente próxima da obsessão
existencialista com a autenticidade: o que você diz conta menos que o fato de
você estar dizendo [qualquer coisa].
O liberalismo, muito semelhantemente,
tende a crer que o escolhido é menos importante que o fato de que eu escolhi
[qualquer coisa] – por isso é ética especialmente talhada para adolescentes.
Mas está-se interessado em pós-colonialismo,
não na má fé ou nos vícios de psíquicos de acadêmicos que o pratiquem. Spivak é
anti-intencionalista resoluta, no que tenha a ver com trabalho dos outros; mas
é frequentemente autobiográfica e anedótica no que tenha a ver com o trabalha
dela mesma. Se é tentativa admirável para introduzir um pingo de subjetividade
no debate impessoal dos patriarcas, ao mesmo tempo trai excesso de interesse na
própria subjetividade.
No que tenha a ver com a ideia da
resistência, qualquer intrépido Derridaeano deve “tomar certo cuidado, ser
vigilante, uma persistente tomada de distância” [orig. persistent taking of
distance (sic)], nas próprias palavras de Spivak, atento a outro tema. Bem
pouca gente no bloco soviético nos anos 80s estava convencida de que seria possível
resistir àquele sistema, mas não seria possível transformá-lo; mas essa
opinião, ao fim, mostrou-se um pouco rígida demais, ainda que aquilo em que
aquele sistema transformou-se dificilmente se possa chamar de sociedade justa.
Pode-se acrescentar que, quando chegou a hora de varrer aquela estrutura de
poder, comprovou-se que a agência coletiva nada tinha de ficção essencializante
e nem o cálculo preciso comprovou-se tão impreciso como os pós-estruturalistas
parecem imaginar.
Notas dos tradutores
[1] Plumpes
Denken é expressão de Brecht. (trad.) “Dialeticamente,
é preciso compreender o pensamento complexo a partir do ponto de vista do
popular, e o popular do modo mais analítico e refinado: falar em termos
concretos e práticos, não em termos sempre gerais e generalizantes que tendem
ao idealismo e ao falso romantismo” (falar de “Liberdade” e “Igualdade”, com
maiúsculas, é perigoso, porque se pode perder de vista o mundo real e
concreto).
[2] A coluna esquerda do livro é sobre Hegel. Pode-se ver mais sobre o livro e a
tradução.
[3] “(...) Quando traduzi Karl Marx... Palavras como “Aufhebung”,
“Entäußerung” e “Entfremdung” são, mais tardar desde Hegel, um problema. Nesses
casos, foi absolutamente necessário explicar os termos na edição brasileira de A
ideologia alemã. Também foi difícil o fato de já haver uma tradição de
outras traduções para aquelas expressões. Algumas delas já tinham até mesmo
ganhado uma conotação errada. Existe até uma história engraçada acerca de um
desses termos, a saber, “Aufhebung“. Como não tínhamos no Brasil que
correspondesse sequer remotamente à original, inventou-se uma: “suprassunção”.
Essa é derivada de uma que existe, “subsunção”. A nova palavra, no entanto,
estava em desacordo com as regras ortográficas brasileiras de então e deveria
ser escrita “supra-sunção”. Eu fiz uma brincadeira a respeito disso no prefácio
de minha tradução de A ideologia alemã. Posteriormente, houve uma
reforma ortográfica no país e “suprassunção” agora está correta” (Entrevista
com Marcelo Backes, tradutor).
[4] Irênico.
Adj. (a1958) é termo raríssimo em português do Brasil (e também em inglês).
(Dicionário Houaiss)
1. rel relativo à paz, conciliação ou
entendimento, ou à ausência ou cessação de conflitos, querelas, disputas etc.
(entre cristãos de credos diversos);
1.1 que se destina a reabilitar ou consolidar a
paz entre cristãos de diferentes credos (diz-se de cada um dos livros).
2. p.ext. de caráter pacífico, conciliatório.
[5] Gods own country,
também Gods own zone, aprox. “a própria
zona/país de Deus”.
[6] Orig. “Wretched of the Earth”, título, em inglês, de
Les Damnés de la Terre, Franz Fanon, 1961, em português, Os
Condenados da Terra.
[7] Há edição brasileira da Bom Tempo Editorial em: Linhagens
do presente.
____________________
[*] Terry Eagleton alcançou
o Doutorado com apenas 24 anos de idade; começou sua carreira estudando a
literatura do século 19 e do século 20, até chegar teoria literária marxista
pelas mãos de Raymond Williams. Atualmente Eagleton tem integrado os estudos
culturais com a teoria literária mais tradicional.
Seu livro mais
conhecido é Teoria da literatura: uma introdução (1983,
rev 1996), em que traça a história do estudo de texto contemporâneo desde os
românticos do século 19 até os pós-modernos das últimas décadas. Apesar de
permanecer identificado com o marxismo, o autor se mostra simpático a desconstrução e
outras teorias contemporâneas.
Já em Depois da teoria (2003), também lançado em português, Eagleton
afirma que hoje em dia tanto a teoria cultural quanto a literária são
"bastardas", mas não conclui que o estudo interdisciplinar de ambas
não tem algum mérito. O que ele conclui, na verdade, é que o absoluto não
existe, fazendo coro a própria desconstrução.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Registre seus comentários com seu nome ou apelido. Não utilize o anonimato. Não serão permitidos comentários com "links" ou que contenham o símbolo @.