26/4/2014, [*] Conflicts
Forum
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Yezid Sayigh |
É “perspectiva melancólica, com
certeza”, escreve
Yezid Sayigh, do Carnegie Middle East Centre. “Mas o momento em que Assad poderia ter sido derrotado por
uma oposição inepta e por um movimento rebelde dividido, já passou”. O artigo
de Sayigh é peça para ler com atenção. Embora reproduza a narrativa parcial da
oposição, o que se vê claramente no tom melancólico, Sayigh mesmo assim é um dos mais conscientes analistas
estratégicos da questão síria. Está na linha de frente do pensamento ocidental
dominante sobre a Síria. Para muitos, hoje, o que mais surpreende na atual
posição dele é a declaração, clara, de que “na verdade, todo o contexto de
Genebra está morto”.
De fato, a iconoclastia de Sayigh vai
além: ele também demole o mantra dominante segundo o qual, a Síria, sem
Genebra, permaneceria condenada a ser inevitável “refém de um impasse militar
infindável”. “Verdade é que, com o conflito entrando já no quarto ano, o
impasse absolutamente já não parece infindável” – diz ele, refutando a fantasia
do “impasse”. Observa que evidentemente os EUA não planejam aumentar
substantivamente sua oposição militar; e que a Arábia Saudita está sendo
contida, ao mesmo tempo, pela pouca disposição da Jordânia para facilitar a
escalada militar através de seu território e, também, por Obama insistir em que
o suprimento de armas seja limitado. “Quase três anos depois que o exército
sírio interveio para conter o levante popular no país” – Sayigh escreve em outro
artigo – “o
treinamento militar superior, a organização e o poder de fogo [do exército
sírio] começaram a traduzir-se em vantagem decisiva. O regime avançou posições
no norte e está em boa posição para frustrar o avanço dos rebeldes a partir do
sul”.
John Brennan |
Sayigh continua: “como John Brennan,
diretor da CIA, disse
em fala pública em março de 2014, “a Síria tem exército de verdade”, que é “uma
grande força militar convencional, com tremendo poder de fogo”. “Beneficia-se
significativamente, também, de aconselhamento de iranianos e russos, com novo
treinamento para guerra em ambiente urbano, e da contribuição de força de
combate não síria, sobretudo do Hezbollah libanês, de milícias xiitas
iraquianas, da Guarda Revolucionária do Irã e de outros voluntários. E está
fazendo mais do que manter posições”. E acrescenta: “Se a tendência atual se
mantiver – e nada sugere que não se mantenha – nesse caso, o regime sírio [de
Assad] estará em posição dominante, com efetivo controle sobre massa crítica do
país, até o final de 2015, se não antes”.
A formulação de Brennan, não
surpreendentemente, é seca e técnica. Mas, em essência, ambos, Sayigh e
Brennan, estão dizendo que a Síria é o ponto crucial onde medem forças duas
irreconciliáveis visões de futuro – não só do futuro da Síria, mas do futuro de
todo o Oriente Médio.
De um lado, o mundo estreito, dogmático,
intolerante dos jihadists e seus patrões; de outro lado, uma visão
pluralista, mais ampla, não sectária, mais tolerante [de Assad, Khamenei,
Nasrallah], para o Oriente Médio. O que Sayigh e Brennan, cada um à sua
maneira, estão sinalizando, é que, nessa disputa de forças, essa segunda visão
[de Assad, Kamenei, Nasrallah] está prevalecendo. Isso é imensamente
significativo para a região como um todo; mas só depois de que se cristalize o
resultado desse teste de força – não antes –, a política poderá voltar à cena.
Bashar al-Assad |
A conclusão de Sayigh é que – por mais
que os chamados “Amigos da Síria”, por hora, ainda clamem por solução
internacional – também os agentes ocidentais já estão vendo que o “processo de
Genebra” está esvaziado. O presidente Assad permanecerá no governo para
comandar qualquer transição; e o mais melancólico é que talvez ainda se passem
anos, antes de que possa emergir qualquer nova oposição legítima. Para Sayigh,
o mais provável é que nenhuma nova oposição “se materialize, até que a oposição
que há hoje e a rebelião armada tenham perdido completamente a batalha”
(itálicos de CF).
Mas a expectativa de que se venha a
criar um “espaço” político vazio, como resultado inevitável do fracasso do “processo”
de Genebra, é, parece, excessivamente “polarizada”. A própria cristalização
dessa disputa épica de forças gerará uma nova política. De fato, já começou a gerar,
como comentamos adiante.
A “realidade” de Sayigh é uma, mas em
vasta medida, visão externa – da diáspora no exílio & da maioria dos
especialistas de think-tanks – e pode ser resumida como “nada de Genebra
+ nada de papel para a oposição no exílio = nada de solução”. Mas há outra “realidade”
(à qual Sayigh não se refere, e que ele rotula pejorativamente como “pacificação
coerciva”.
Essa outra história é história interna
síria – e, essa, nada tem de melancólica.
O que hoje gera amplo interesse dentro
da Síria é uma dinâmica de reconciliação –inclusive entre alguns
elementos armados. Muitos sírios (incluídos muitos que não aderem à oposição
externa, e, também, muitos dos que aderem a ela) deixaram de crer no “processo”
de Genebra, depois de ouvir os discursos em Genebra-2. Não poucos sírios
concluíram, do que ouviram lá e daqueles procedimentos, que o Ocidente não tem
qualquer interesse numa solução política para o país; que o Ocidente só faz
insistir que Assad “tem de sair”, e que todos os poderes executivos foram
delegados à oposição de exilados da Coalizão Nacional Síria, inventada e cevada
no Ocidente, e que tem ralo, ou nenhum, apoio dentro da Síria, em nenhum dos
campos.
Essa outra realidade recebe pouca
atenção da imprensa-empresa ocidental e, particularmente, dos think-tanks
ocidentais, precisamente porque não considera nem o “processo” de Genebra, nem
a Coalizão Nacional Síria. É realidade absolutamente contrária ao consenso que
o Ocidente fixou, de alívio orquestrado internacionalmente para o conflito. Mas
se Sayigh acerta ao dizer que alguns diplomatas ocidentais já viram que o “processo”
de Genebra está morto, faltou dizer que devem também começar a ver que militarmente, politicamente e socialmente, a Síria caminha cada vez mais
na direção de coisa diferente – uma nova dinâmica interna que, talvez, venha a
exigir atenção mais séria no futuro.
O processo de reconciliação não foi
lançado como uma política; aconteceu espontaneamente, e foi essencialmente um
processo de baixo para cima que emergiu à medida que os sírios comuns
descobriram uma via para “ação-agenciamento humano” – essencialmente em
contexto local. Em resumo, surgiu quando as pessoas passaram por uma mudança de
consciência: passaram a ver-se de outro modo, começaram a agir em defesa
própria, em nome de si mesmos. Em vários sentidos, os comitês de reconciliação
que agora existem e surgem em número sempre crescente de vilas e cidades,
assemelham-se aos comitês populares que brotaram durante as Intifadas palestinas
(e depois foram reprimidos pelos movimentos políticos palestinos).
Combatente do ESL passa por oficial do Exército sírio (17/2/2014) |
Outro componente – talvez o mais
evidente – foi o aspecto militar desse processo de reconciliação: cessar-fogos
foram diretamente negociados entre grupos da oposição armada e o Exército
Sírio; ou populações locais expulsaram os grupos insurgentes de suas vilas,
bairros ou cidades; ou, simplesmente, os próprios moradores organizaram
milícias para defender as próprias vilas – e pediram armas ao governo sírio.
O governo sírio respondeu a essas
iniciativas e permitiu que ex-insurgentes conservassem suas armas (leves) – e
preservassem o próprio status e a autoestima como combatentes. Ex-dissidentes,
de fato, estão sendo absorvidos nos grupos locais, ajudando a defendê-los e
participando do processo local de tomada de decisões. Nada disso aconteceu sem
aguda controvérsia. Muita gente que sofreu ou teve parentes mortos, ainda
guarda muito ressentimento e insiste em que os criminosos têm de ser
processados, não recuperados. Mas a posição do governo é que a reconciliação
tem de prosseguir – apesar da muita dor que cause a alguns.
O outro aspecto do que está ocorrendo é,
precisamente, a redescoberta da ação-agenciamento humano. E é esse aspecto que
tem imenso potencial político. Já se formaram comitês populares em muitas
cidades e vilas. O Ministério da Reconciliação [1] supre esses comitês locais com fundos, mas eles também recebem
doações de voluntários e colaboradores privados.
Embora mantidos com ajuda do Ministério
da Reconciliação, esses comitês, que incluem funcionários locais, profissionais
da educação, elementos das forças de segurança, sindicalistas, mulheres,
ativistas e voluntários, tomam suas próprias decisões. Tentam encontrar
professores voluntários para substituir professores ausentes nas escolas;
organizam mutirões para reconstruir moradias; organizam abrigo e alimentação
para famílias desabrigadas; dão apoio a mulheres atacadas ou violentadas; e
reúnem comerciantes e empresários locais para repor em funcionamento pequenas
fábricas em diferentes áreas. Como disse um analista, as pessoas já não esperam
que as decisões venham de Damasco: fazem as coisas ali mesmo. E aí está o
importante: sírios comuns estão redescobrindo as possibilidades da
ação-agenciamento humano, mas de modo muito diferente – e em oposição – ao que
fizeram os grupos armados radicais.
Combatentes do ESL caminham por bairro pacificado em Aleppo (17/2/2014) |
O que temos aqui? Em certo sentido é
mudança quase impalpável; é difícil de definir empiricamente, precisamente
porque é iniciativa local; é condicionada por situações locais, e é iniciativa
atomizada. Mas é o que se vê, muito frequentemente, em sociedades que
conheceram conflitos e crises (a África do Sul, por exemplo): a própria
sociedade reemerge psicologicamente transformada. A experiência do trauma existencial
– individual ou coletivo – pode levar à ruptura psíquica, ou, alternativamente,
a um fortalecimento, mesmo, até, a um endurecimento, e a uma atitude psíquica
reenergizada.
No caso da Síria, quem visite Damasco
pode sentir que, apesar de os combates continuarem, provocados pelos
insurgentes, com morteiros lançados sem alvo, diariamente, nos arrabaldes da
cidade, as pessoas comuns mostram-se mais determinadas, mais resolutas e mais
autossuficientes.
Como isso se manifestará politicamente,
no plano nacional? Ainda é muito cedo para dizer, mas a experiência do Irã, no
início de 2009, mostra que, ao sair de uma crise nacional, é possível unir-se
nacionalmente para construir uma nova direção política (no Irã, nas eleições
presidenciais do ano passado, houve mudança clara de direção, mas mudança que,
como os eleitores desejavam que acontecesse, acomodou-se dentro do sistema
vigente).
Por que acontece assim? Os sírios dizem
que o que disparou a mudança que se vê hoje, com mudança de consciência, foi a
súbita percepção (generalizada na população), de que o que acontecia na Síria
nada tinha a ver com reformas, democracia ou participação popular no governo;
que se tratava, exclusivamente, de derrubar uma sociedade síria que existia e
prosperava, para substituí-la por outra, algo distante do modo de viver dos
sírios, da história social, política e cultural dos sírios.
Por hora, o foco não está em detalhes
políticos (por exemplo, emendar o Artigo 8º da Constituição) – isso virá à sua
hora. As pessoas sentem-se envolvidas num conflito de vida ou morte, uma
guerra. E, em guerra, todas as energias concentram-se em sobreviver, viver e
vencer o combate de hoje. Política é coisa para depois.
Mesa de negociações de Genebra II |
O senso de luta existencial foi
reforçado recentemente, por várias coisas: pelo linguajar e ações emanados dos
estados do Golfo; pelo linguajar de Genebra II; pelos padecimentos dos
palestinos; e, com absoluta certeza, pelos recentes eventos na Ucrânia.
Um veterano especialista em Síria
disse-nos que, há duas semanas, praticamente não se ouvem discussões na Síria
sobre o próprio conflito sírio: que só se fala da Ucrânia. É evidente: a Síria
e o Irã (tanto no plano das discussões entre os cidadãos, quanto no plano do
governo) compreenderam imediatamente e plenamente a importância dos eventos que
se desenrolam na Ucrânia. Os sírios comuns conseguem muito facilmente
identificar o próprio sofrimento e o sofrimento dos ucranianos e “admiram Putin
por levantar-se contra as maquinações ocidentais que se veem por lá” – como
disse bem claramente um sírio.
Por hora, toda a política, na Síria,
condensa-se numa única demanda: a volta da vida em segurança, e a normalização
da vida diária. Por isso se vê ali – como também se vê no Irã – um
reposicionamento em torno do sistema existente, enquanto, simultaneamente, se
articula o desejo de viver sob uma nova política. As lideranças, na Síria e no
Irã parecem também compreender com clareza esse movimento, razão pela qual se
veem tantos esforços para fazer avançar os processos de diálogo nacional interno
e de reconciliação.
____________________
Nota dos tradutores
[1] Não se
encontra notícia alguma sobre esse Ministério da Reconciliação na Síria, na
imprensa-empresa ocidental. Mas há notícia na mídia chinesa, por exemplo, 13/2/2013,
Xinhuanet: “Syrian
minister confirms readiness for talks with opposition” (notícia do ano
passado, portanto).
____________________
[*] Conflicts Fórum visa mudar a opinião ocidental em direção a uma compreensão mais
profunda, menos rígida, linear e compartimentada do Islã e do Oriente Médio.
Faz isso por olhar para as causas por trás narrativas contrastantes: observando
como as estruturas de linguagem e interpretações que são projetadas para
eventos de um modelo de expectativas anteriores discretamente determinam a
forma como pensamos - atravessando as pré-suposições, premissas ocultas e até
mesmo metafísicas enterradas que se escondem por trás de certas narrativas,
desafiando interpretações ocidentais de “extremismo” e as políticas
resultantes; e por trabalhar com grupos políticos, movimentos e estados para
abrir um novo pensamento sobre os potenciais políticos no mundo.
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