19/3/2014, [*] Walid Khalidi
– Centre for Palestine Studies, SOAS,
University of London
Primeira Conferência Anual,
6/3/2014 (vídeo 1h 10’
39” − em
inglês)
Traduzido da transcrição pelo
pessoal da Vila Vudu a partir de ~ 15’45”
Há cem
anos, que se completam em 2014, abriram-se as comportas da Iª Guerra Mundial e
desencadeou-se a sequência de eventos que levou à Declaração de Balfour. Quando
foi assinada, em 1917, já se passavam quase 40 anos desde o início da
colonização sionista, e 20 desde o 1º Congresso Sionista em Basel. Apesar do
fervor dos primeiros colonos, o movimento das massas de judeus que fugiam do
governo czarista não tomou o rumo sul, partindo do Levante, mas leste,
atravessando a Europa na direção das costas, que os atraíam como ímãs, da
América do Norte. Pouquíssimos chegaram à Palestina; uma vasta
maré humana cruzou o Atlântico.
Muitas
autoridades rabínicas dentro da Diáspora eram hostis ao sionismo, pela
apropriação do Messias judeu; e a burguesia judaica norte-americana e europeia
sentia-se embaraçada ante a ideia sionista, e temerosa ante acusações de dupla
lealdade.
Tudo isso
mudou, quando a Grã-Bretanha deu suas bênçãos à aventura sionista, na
Declaração de Balfour. E não deu só bênçãos: também concordou em transformar
essa declaração unilateral em obrigação autoimposta garantida pela lei
internacional, no sistema do Mandato da Liga das Nações recém estabelecida.
Só nessa
governança como poder imperial a Grã-Bretanha concordou com levar avante essa
parceria com um corpo privado estrangeiro (a Organização Sionista Mundial),
então elevado, sob o disfarce de Agência Judaica internacional, ao status de
ator independente reconhecido pela Liga das Nações para o objetivo específico
de criar o Lar Nacional Judeu na Palestina.
Uma questão
surge imediatamente à mente. Como é possível que Londres, com toda sua vasta
experiência pró-consular amadurecida durante séculos de contatos e negociações
com incontáveis raças e fés em todo o mundo, tenha-se deixado prender e tombado
a favor do plano sionista?
A resposta
curta tem duas sílabas: húbris. Ao final da Iª Guerra Mundial, com os EUA
fechados num paredão de isolacionismo e com os impérios otomano, Romanov,
Habsburg e Hohenzollern em ruínas, o poder britânico não tinha adversários. Só
o reino do rei Clóvis, do outro lado do canal, podia ameaçar a Grã-Bretanha.
Mas não era grande coisa, porque Sir Mark Sykes já tinha à mão a fórmula
para conquistar a aquiescência dos franceses: dividir o butim!
*****
Há, é claro,
resposta mais longa e é aí que entram nossos centros de pesquisa. Deixando de
lado as árvores e as muitas folhas dos “White Papers”, “Blue Books” e
“Comissões de Inquérito” do período do Mandato, nossos especialistas se
dedicariam a olhar mais profundamente e a examinar o modo como e as razões por
que a Londres imperial, entre as duas guerras mundiais, cevou um imperium in
império rival sob sua governança. A charada só aumenta, quando se considera
que esse imperium não seria só local. Ele tinha uma dimensão externa, um
imperium ex imperio, na Agência Judaica, cujas principais instituições
centrais e outras fontes de poder eram em larga medida norte-americanas, o que
o punha além do alcance do controle por Londres.
Assim,
quando, em 1939, Ben Gurion, o destacado líder do Yishuv, decidiu trocar de
montaria, abandonando o cavalo britânico (preferido de seu rival político Chaim
Weizmann), por cavalo norte-americano, ele o fez num cálculo deliberado: o
potencial dos EUA como contrapeso e sucessor da Grã-Bretanha.
A estória é
velha como a velha história: a revolta do cliente contra o patrão
metropolitano. Mas a erosão do acordo anglo-sionista ao final dos anos 1930s,
também ilustra uma lei de ferro da política. Não há duas entidades políticas
que permaneçam em sincronia eterna. Há “moral da história” aqui, que se aplica
à atual relação entre a Washington de Obama e a Telavive de Bibi.
II
Os eventos
de 1948 geraram mais controvérsia que qualquer outra fase do Problema
Palestino, eventualmente dando origem a uma nova escola de historiografia
pós-sionista em Israel. Esses autores têm sido designados os “Novos
Historiadores”, para diferençá-los dos “Velhos Historiadores” que articularam
uma narrativa fundacional sionista mítica.
A velha
narrativa mostrava um Davi Yishuv ante um Golias Árabe, com a Pérfida Albion
decidida a estrangular o estado recém-nascido. Também envolveu centenas de
milhares de palestinos terem deixado suas casas, plantações e negócios,
obedecendo ordens dos seus próprios líderes, para dar lugar aos exércitos
árabes invasores, dia 15/5/1948.
Dado o
papel que nosso Instituto de Estudos Palestinos e também o meu papel, na
articulação da contranarrativa palestina em oposição àqueles Velhos
Historiadores, talvez seja útil, para efeitos de documentação histórica,
partilhar com vocês alguns elementos de como o processo desenvolveu-se.
Um dos
primeiros relatos de autoridade, que contestou versão oficial do mito da ordem
israelense foi apresentado pelo historiador palestino Arif al-Arif. Arif vivia
em Ramallah como comissário distrital assistente durante os últimos anos do
Mandato, e os jordanianos o mantiveram como um governador civil de facto.
Em meados
de julho de 1948, as forças israelenses lançaram ataque massivo contra as
cidades palestinas de Lydda e Ramla, com os exércitos árabes, ali bem próximos,
que não moveram uma palha. Toda a população das duas cidades, cerca de 60 mil
pessoas, foram forçadas a uma longa viagem até Ramallah. Chegaram em condições
lastimáveis; várias centenas morreram no caminho.
O conde
Bernadotte, mediador da ONU, chegou a Ramallah na terceira semana de julho de
1948. Arif, destacado para acompanhá-lo, ficou boquiaberto quando Bernadotte
lhe contou que altos oficiais israelenses que acabava de encontrar lhe haviam
“assegurado” que os moradores de Lydda e Ramla haviam saído de suas casas
obedecendo ordens que teriam sido dadas por líderes da próprias comunidades.
Imediatamente
Arif providenciou para que Bernadotte se encontrasse com aqueles líderes
palestinos, que ainda viviam em cavernas e sob pontes, depois da expulsão:
clérigos muçulmanos e cristãos, conselheiros municipais, juízes, profissionais
de todos os tipos.
Não tenho,
eu, pessoalmente, dúvida alguma de que esse encontro contribuiu para que
Bernadotte recomendasse à ONU que ordenasse o imediato retorno dos refugiados,
resolução que a Assembleia Geral aprovou, depois de Bernadotte
ter sido assassinado pela organização terrorista judia, Stern
Gang de Yitzhak Shamir.
Nos anos
1950s, a imprensa-empresa britânica já estava sob estrito controle da narrativa
do mito. Naquele momento, predominava a versão israelense, de que as ordens
para abandonar as casas haviam partido da liderança palestina, não de líderes
locais. O expoente mais agressivo dessa versão era o jornalista britânico Jon
Kimche, então editor do semanário Jewish Observer, órgão da Federação
Sionista Britânica.
O principal
líder palestino, Haj Amin al-Husseini, vivia então exilado no Líbano.
Conhecia-o desde menino e ele sempre foi extremamente gentil comigo. Quando lhe
falei do impacto da mentira sobre as tais ordens, no Ocidente, Haj Amin
imediatamente me franqueou acesso irrestrito aos seus arquivos (que foram
destruídos pelas forças da Falange, durante a guerra civil libanesa, nos anos
1970s).
Antes, eu
já tivera acesso às gravações de monitoramento, pela BBC, de rádios
árabes, de 1948, conservadas no Museu Britânico em Londres.
Somei os
dados que obtivera de Haj Amin e o que encontrara nas gravações da BBC,
e escrevi o artigo “Why
Did the Palestinians Leave?” [Por que os palestinos partiram?”],
publicado em 1959 no periódico East Forum
dos alunos da American University
em Beirute.
Entra
Erskine B. Childers. Pouco depois de publicado esse artigo, recebi em Beirute a
visita desse jovem jornalista irlandês, que se mostrou muito interessado nas
gravações da BBC e disse que as examinaria ele mesmo, quando voltasse a
Londres.
No início
dos anos 1960s, entra Ian Gilmour, proprietário de Spectator,
prestigiosa revista semanal britânica. Acabava de visitar Israel, onde ouvira a
mentira das tais ordens, de altos funcionários israelenses. Conhecia também o
artigo do Middle East Forum; fez muitas perguntas e partiu.
Dia
12/5/1961, a revista Spectator publicou artigo de Childers, intitulado
“O outro êxodo” e que concluía: jamais houve ordem alguma.
Seguiu-se
então uma torrente de cartas de leitores que durou quase três meses nas colunas
de Spectator e graças à qual, graças a Gilmour, a contranarrativa, de
oposição à versão israelense, ganhou exposição que jamais antes tivera.
Um dos
primeiros a responder foi Jon Kimche, que opinou: “Novas mentiras (...) para
substituir as velhas. Os israelenses contribuíram, mas mais recentemente
apareceram mentiras dos propagandistas árabes (Walid Khalidi e Erskine
Childers)”.
Naquele
momento eu estava em afastamento sabático da Universidade Americana em Beirute,
e estava em Princeton, examinando as gravações de monitoramento feito pela CIA,
de transmissões de rádios árabes, em 1948, na Firestone Library. De lá, escrevi à revista Spectator dizendo
que não conhecia Childers (o que não era verdade), mas manifestando enorme
prazer ao constatar que, por pesquisa independente, ele chegara às mesmas
conclusões que eu (o que era verdade). Escrevi também que minhas novas
pesquisas e o que encontrara em gravações feitas pela CIA confirmavam o
que as gravações da BBC já haviam revelado.
Enquanto
permaneci em Princeton, examinei também fontes em hebraico, com a ajuda de uma
simpática professora idosa, sefardita.
O resultado
dessa pesquisa foi “Plan
Dalet: The Zionist Master Plan for the Conquest of Palestina” [Plano
Dalet: o grande plano sionista para a conquista da Palestina], que seria
publicado em 1961, também no Middle East Forum. Como a correspondência
de leitores da Spectator cada vez mais envolvia o êxodo palestino em
termos mais gerais, contribuí com um resumo das minhas descobertas. Na carta,
escrevi, inter alia:
Um amplo plano sionista, chamado “Plano
Dalet”, para ocupação à força de áreas árabes dentro e fora de terras do Estado
Judeu ‘dadas’ pela ONU aos sionistas foi posto em operação. O plano visava à
desarabização de todas as áreas sob controle dos sionistas.
O Plano Dalet visava a quebrar a espinha da
resistência palestina árabe e a desafiar a ONU, os EUA e os países árabes,
impondo-lhes um fato consumado, militar e político, no menor tempo possível –
daí os ataques massivos e impiedosos contra centros de população árabe.
Com o Plano Dalet em andamento, e dezenas de
milhares de civis árabes em pânico nos países árabes vizinhos, a opinião
pública árabe forçou seus vacilantes governos a enviar seus exércitos regulares
para a Palestina.
Na refletida e pesquisada opinião desse
autor, só a entrada de exércitos árabes na região frustrou os objetivos mais
ambiciosos do Plano Dalet, que consistiam em nada menos que obter o controle
militar de toda a Palestina a oeste do rio Jordão.
Tanto
quanto sei, foi a primeira vez que se mencionou o Plano Dalet, no Ocidente.
III
Assim como
a Iª Guerra Mundial fez nascer a Declaração de Balfour, a guerra de 1967 fez
nascer outro documento provocativo: a Resolução 232 do Conselho de Segurança.
E assim
como a Declaração de Balfour é, num sentido, a nascente de todos os
desenvolvimentos do Problema Palestino/conflito árabes/israelenses no resto do
século 20 e incluindo a guerra de 1967, assim também a Res. 242-CS é, em certo
sentido, a vertente básica de todos os desenvolvimentos no conflito, do final
do século 20 até hoje.
Estranhamente,
muitos observadores têm opinião positiva sobre a Res. 242, em grande parte
porque o preâmbulo fala sobre a “inadmissibilidade da aquisição de território
mediante guerra”. Mas nos parágrafos operacionais, a Res. 242 faz exatamente o
oposto.
É verdade
que fala da “retirada de forças armadas israelenses dos territórios ocupados”,
mas não especifica prazo para o início da retirada; não diz até onde Israel
terá de retroceder, nem por quanto tempo poderá estender-se a retirada. Nem
lista, por nome, os territórios dos quais Israel teria de retirar-se.
A Resolução
clama por paz e “fronteiras seguras e reconhecidas” entre os protagonistas, mas
não nomeia quem decide sobre a segurança e a localização das tais fronteiras.
Nem uma palavra sobre as linhas do Armistício.
A resolução
afirma a necessidade de uma “justa solução para o problema dos refugiados”, mas
não nomeia que decide sobre a justiça da solução nem quem são esses refugiados.
A palavra “palestinos” está completamente ausente; e não há referência à
aplicabilidade das Convenções de Genebra aos territórios ocupados.
Esse texto
espantoso tem de ser visto sobre o pano de fundo das decisões tomadas pelo
gabinete israelense nos dias 18-19 de junho, logo depois do fim das
hostilidades.
Em forma
resumida, o gabinete israelense firmou consenso sobre os seguintes pontos:
(1) retirada, só sob condições de acordos
de paz;
(2) tratados de paz com Egito e Síria,
“consideradas” as fronteiras internacionais e as necessidades da segurança de
Israel;
(3) anexação da Faixa de Gaza; e
(4) o Rio Jordão como “fronteira de
segurança” de Israel, o que implica controle sobre a Cisjordânia.
Ninguém
precisa ser especialista em decifração de códigos secretos para ver que a
Resolução 242 está em perfeita harmonia com essas especificações – melhor
dizendo, instruções – do Gabinete israelense.
O foco nos
tratados de paz com Egito e Síria com exclusão da Jordânia é, claro, planejado
para separar esses dois países – Síria e Egito – do problema palestino e isolar
ambos, os palestinos e a Jordânia.
Dia
28/6/1967, dez dias depois dessa reunião do Gabinete, Israel revelou suas
verdadeiras intenções, anexando as 2,5 milhas quadradas de Jerusalém Leste, e mais
22,5 milhas
quadradas de território adjacente da Cisjordânia, com uma configuração
territorial obscena logo ao norte, em Ramallah.
A Res. 242
foi vitória diplomática e política israelense não menos importante que a
vitória no campo de batalha. Mas só foi possível por causa do presidente Lyndon
B. Johnson. O que realmente motivou LBJ permanece como objeto e campo de
estudos para todos os centros de estudos palestinos. Como senador em 1956,
Johnson havia-se oposto fortemente à decisão de Eisenhower de forçar Israel a
restaurar o status quo anterior
e a devolver seus “territórios obtidos mediante guerra”.
Depois da
guerra de 1967, o Ministro do Exterior de Israel, Abba Eban, trabalhou muito
próximo do círculo mais íntimo de LBJ, inclusive do embaixador dos EUA na ONU,
Arthur Goldberg. (Como membro de uma delegação iraquiana pré-Sadam à Assembleia
Geral da ONU logo após a guerra, tive de ouvir Eban tecer sua rede de
falsidades, mas também tive a chance de retrucar).
Eban revela
em suas memórias que insistiu com seus contrapartes norte-americanos para que
“erradicassem” da mente até o conceito de “armistício” e para que ligassem a
retirada de Israel das atuais linhas de cessar-fogo a “negociações nas quais os
limites seriam fixados por acordos”.
Significa
que o ponto de partida das negociações seriam os mais distantes buracos aos
quais a Israel blindada tivesse chegado em território árabe. Também significa
que Israel poderia – como de fato pôde – usar todo o peso de suas ocupações e
sua superioridade militar para ditar, a hora, o ritmo, a sequência e a extensão
de sua retirada.
O “regime”
estabelecido pela Res. 242 foi consentido, se não estimulado, por sucessivos
governo dos EUA desde Johnson. A opacidade e a permissividade da Resolução
permitiu a política da colonização (chamada “de assentamento”) que prossegue
até esse exato instante. Aquele regime enviou Sadat a Jerusalém e Arafat, a
Oslo.
A guerra de
1967 assestou o golpe de misericórdia ao panarabismo secular, que já estava em
agonia terminal.
Mas
catapultou o movimento palestino de guerrilhas para as linhas de frente, porque
ele simbolizava a resistência de todo o mundo árabe, depois da humilhante
derrota dos exércitos árabes.
Mas o
impacto mais profundo e potencialmente mais catastrófico da guerra, contudo,
está na inspiração que deu ao messianismo neossionista fundamentalista
religioso, e na criação, por ele, de condições que levaram à disputa pelos
locais sagrados de Jerusalém, entre jihadistas judeus e evangélicos cristãos,
de um lado; e jihadistas muçulmanos, de outro.
IV
Quando se
olha a cena palestina hoje, vê-se um povo pendurado pelas pontas das unhas às ruínas
de sua terra ancestral.
Nessa
situação de dificuldade extrema, a absoluta prioridade dos palestinos deveria
ser, é claro, cerrar fileiras, ombro a ombro.
Por isso a
rixa Fatah/Hamas é tão absolutamente escandalosa. Precisa-se dos dois punhos,
quando a luta é de sobrevivência. Cabe culpa aos dois lados. Os dois lados
devem ser instados, incansavelmente, sem parar, a se reconciliar.
Claro que o
simples ato de reconciliação entre eles será atacado, por Netanyahu, como ato
de guerra. Mas não há dúvidas de que Israel sabe que a intrarreconciliação
palestina é indispensável para qualquer paz palestinos-Israel.
A distância
que separa Fatah e Hamas no quesito forma de luta é muito grande. Abbas está
comprometido com a não violência. Não é compromisso filosófico: adepto da
violência em seus dias de guerrilheiro, Abbas há muito tempo absorve o custo e
as consequências da violência. Não é coincidência que tenha sido o primeiro dos
líderes do Fatah a propor um diálogo com interlocutores israelenses sensíveis.
O
compromisso de Abbas com a não violência é estratégia, não tática. Tenho
certeza disso, depois de ouvi-lo e aos três que o antecederam: Arafat, Shuqairi
e Haj Amin.
Em vários
sentidos, Abbas é figura trágica. É líder guerrilheiro, convertido em
“colaboracionista”. Todas as noites suas forças de segurança recolhem-se aos
alojamentos, enquanto comandos israelenses circulam livremente pelos Kasbahs,
pelos campos de refugiados e por vilas da Cisjordânia, à caça de jovens
militantes. É preço terrível a pagar, por uma posição moral.
Por quanto
tempo Abbas pode manter sua política sem qualquer avanço real rumo à paz? Por
quanto tempo os palestinos acompanharão sua liderança?
Mesmo
assim, não se pode esquecer que o movimento “Boicote, Desinvestimento, Sanções”
(BDS) jamais teria avançado tanto quanto avançou, sem Abbas.
Por maior
que seja a distância que separa Abbas e Hamas na questão da luta armada, não é
distância infranqueável. Há sinais de pragmatismo na liderança do Hamas. E, se
pensa teologicamente, pode também conceber saída teológica estratégica de seu
declarado compromisso com a luta armada.
Em todos os
casos, o compromisso de Abbas com a não violência não impede a desobediência
civil. Esse pode ser o campo de encontro, depois que se estabelecer a dinâmica
da reconciliação, e chegar o tempo da desobediência civil.
Se a
disputa Fatah/Hamas é perigosa, em detrimento da causa palestina, o desacordo
quanto ao objetivo político também o é. Não é segredo que a questão
dois-estados/um-estado é tema de grande debate, não só no campo palestino como
também num círculo muito mais amplo de aliados e apoiadores.
Como muitos
de vocês sabem, são sou advogado eterno da divisão da Palestina, vale dizer, da
solução “Dois Estados”. De fato, abracei esse lado da disputa já bem tarde.
Aconteceu em 1978, em artigo publicado em Foreign Affairs, intitulado
“Pensando o impensável” [orig. “Thinking
the Unthinkable: A Sovereign Palestinian
State”].
Continuo
adepto de “Dois Estados” e explico por quê: a solução Dois Estados tem apoio
global – com exceção, talvez, dos Estados Federados da Micronésia. Seria
leviano desperdiçar esse patrimônio inestimável.
Já tentamos
o modelo “um estado” durante os 30 anos do Mandato britânico, e sabemos o que
acontece, ainda que o equilíbrio de poder tenha pendido, de início, massivamente
a favor dos palestinos.
Hoje, o
equilíbrio de poder está esmagadoramente do lado oposto. Israel é a
superpotência do Leste [orig. Mashriq] árabe, graças à podridão do
sistema dos estados árabes e suas elites no poder. Em contexto de solução
um-estado, Israel teria o álibi ideal para remover quaisquer impedimentos que
restem aos “assentamentos”. Num piscar de olhos, os palestinos teriam sorte se
conservassem canteiros de terra para plantar cebolas no quintal e para enterrar
os mortos, logo ao lado.
A
Declaração de Independência de Israel, de 1948, promete garantir “completa
igualdade de direitos sociais e políticos a todos os habitantes, sem diferenças
de religião, raça ou sexo”.
Agora,
Netanyahu vive a insistir na exigência de que se reconheça o caráter judeu de
Israel, exigência absoluta para qualquer acordo de paz.
Dos 37
signatários da Declaração de Independência de Israel de 1948, só um nasceu na
Palestina. Todos os demais vieram, a maioria, da Polônia e do Império Russo:
de Plonsk, Poltava & Pinsk, de Lodz
e Kaunas. Esses homens eram de esquerda ou do centro, mas não viajaram até a
Palestina para, lá chegados, dividir a casa nova com outros moradores.
Quando
Netanyahu fala de um estado judeu, fala em nome de um vasta e crescente
eleitorado nacionalista fundamentalista de direita – que racha a sociedade
israelense judaica pelo meio, de alto a baixo.
Hoje, a
divisão da população de judeus em Israel já não se dá entre Esquerda e Direita,
mas entre secularistas e religiosos. Muitos secularistas são liberais e
pós-sionistas, mas não estão em crescimento.
O que está
em crescimento é um movimento de colonos neo-sionista messiânico da direita
religiosa, aliado ao evangelismo cristão norte-americano apocalíptico,
incendiado em 1967 pelo furor da conquista de toda a Eretz Israel e pela
volta do “Monte do Templo” à posse militar dos judeus.
Essa
coalizão considera os palestinos canaanitas, cuja desgraça está biblicamente
predestinada. Não vê com olhos muito mais benevolentes os israelenses judeus
seculares. Em Israel já não há consenso sobre quem é judeu. Talvez possam pedir
a Bibi que forneça uma definição de “judeu”.
Muitos
proponentes de BDS são defensores de um-estado, interessados no sucesso das
sanções contra a África do Sul do apartheid, mas entre o início das sanções
contra a África do Sul no início dos anos 1960s e a eleição de Mandela em 1994
passaram-se 30 anos. O tempo não corre a favor dos palestinos num contexto de
um-estado, apesar do fator demográfico.
Não sou
contrário ao movimento BDS. Quero que tenha sucesso. Para que tenha sucesso,
precisa dos judeus pós-sionistas e dos sionistas liberais. Mas deslegitimem a
ocupação, que suas chances aumentam. Delegitimar a própria Israel lhes custará
a maioria dos seus aliados judeus e muitas das capitais aliadas em todo o
mundo.
Organizemos
duas campanhas BDS: BDS-1, pelo fim da ocupação; BDS-2, para implementar a
promessa de Israel aos seus cidadãos árabes na Declaração de Independência de
Israel – nessa sequência.
Abraçar a
própria identidade nacional numa era de globalização é fenômeno global ao qual
se assiste na divisão de estados e em movimentos de devolução, em todo o mundo.
Os pregadores da solução “um-estado” caminham contra essa tendência.
É
imperativo que haja um estado palestino. Os palestinos têm de preservar o laço
que os une ao que resta de sua terra ancestral. Precisam de um cordão umbilical
que os conecte às lembranças coletivas de pais e avós.
Precisam de
uma tribuna da qual falar por eles e pelos deles que restarão da diáspora
deles. Precisam transferir sua herança aos netos e bisnetos. Precisam de um
ponto sob o sol de Deus, onde não sejam fantasmas estrangeiros ou sem estado,
nem sejam cidadãos de segunda classe.
V
O estado
lastimável em que está a “Nação Árabe” pode ser aferido pelo fato de que o
futuro da Palestina depende hoje mais dos “desejos e preconceitos” de Benjamin
Ben Zion Nathan Netanyahu, que de qualquer dos governantes das orgulhosas
capitais árabes, na Damasco Umayyad, na Bagdá abássida, na Cairo ayyubida
ou na Riad wahhabista.
Mesmo
assim, a atual conversa tripartite entre Netanyahu, Kerry e Abbas é, na
realidade, apenas uma fachada para encobrir a maratona de luta-livre em curso
entre Bibi e Obama, já há cinco anos.
Tenho
ouvido atentamente a conversa de Bibi. O modelão ideológico foi forjado e
incorporado dos ensinamentos do avô dele, rabino Nathan e do pai dele,
professor Ben Zion.
O rabino
Nathan, contemporâneo de Herzl, foi Sionista Nacional Religioso (espécime raro
naquele tempo).
Foi ardente
seguidor de Vladimir Jabotinsky, fundador do Movimento Sionista Revisionista,
assim denominado porque, no início dos anos 1920s, queria “revisar” a
estratégia gradualista de Chaim Weizmann e Ben Gurion.
JABOTINSKY
insistia em que se afirmasse, sem meias medidas e sem meias palavras, que o
objetivo era o Lar Nacional Judeu – um estado judeu – pelo meio do qual corre o
Rio Jordão, não um pedaço disso, com o Jordão numa das fronteiras.
Esse
objetivo deveria ser alcançado no menor tempo possível, por imigração massiva,
protegida por uma “Cortina de Ferro”, significando “estupenda força militar”.
Ben Gurion referia-se rotineiramente a Jabotinsky como “Vladimir Hitler”.
O ardor de
Ben Zion por Jabotinsky não era menos intenso que o de Nathan. Uniu-se ao
Partido Revisionista aos 18 anos e mais tarde editou um diário revisionista,
intitulado Jordan, pelo qual criticou incansavelmente Weizmann e Ben
Gurion.
Ben Zion,
pai de Bibi, acompanhou Jabotinsky aos EUA, onde se tornou seu secretário. Lá
ficou por dez anos, espalhando a ideologia revisionista, mas retornou a Israel
para atacar Begin por seu tratado de paz com o Egito.
Recentemente,
pouco antes de morrer, Ben Zion disse a um jornal israelense que “corte a
comida das cidades árabes, acabe com as escolas, a energia elétrica e tudo
mais, e os árabes não conseguirão existir e fugirão para bem longe daqui”.
Biógrafos
israelenses de Bibi contam que Ben Zion dava aulas aos filhos de história e
judaísmo, e que os filhos manifestavam ao pai “santa reverência”. Menino, Bibi
seguidamente queria discutir “as duas margens do Jordão”.
Se o avô e
o pai foram influências ideológicas, o personagem modelo da vida de Bibi foi
seu irmão mais velho, Jonathan, herói de Entebbe, onde foi morto em ação. A
insolência de Bibi vem daí.
A morte de
Jonathan traumatizou pai e filho. Em homenagem a ele, criaram o Instituto Jonathan
em Jerusalém, dedicado ao estudo do “terrorismo internacional”.
Bem
adequadamente, uma das conferências desse Instituto ficou a cargo do
primeiro-ministro Menachem Begin, o qual, contudo, não contou sobre a
organização da qual foi membro, Deir Yasin,
nem informou que seu grupo terrorista, Irgun, introduziu no Oriente Médio a
carta-bomba, o pacote-bomba, o mercado-bomba e o carro-bomba.
Para Bibi,
os EUA são pátria mãe, como Israel. Viveu lá desde os sete anos: escola
primária, ginásio, MIT, uma empresa de consultoria em Boston. Lá ganhou
sotaque da Filadélfia e aprendeu o vocabulário do beisebol. Pelo menos três de
seus tios emigraram para os EUA, onde se tornaram magnatas do aço e alumínio.
Depois da
invasão de Israel ao Líbano em 1982, Yitzhak Shamir, então ministro do
Exterior, mandou Bibi como attaché para a embaixada em
Washington, com a missão de reparar a imagem de Israel.
Bibi foi
sucesso instantâneo: estava em todos os jornais, endeusado pelas grandes
organizações de judeus. Como embaixador à ONU de 1984 a1988, consolidou seu
estrelato com o público pró-Israel nos EUA.
Em 1991,
Shamir, então primeiro-ministro, fez Bibi seu vice-primeiro-ministro, fazendo-o
salivar ainda, naquele seu apetite político himalaico. Em 1993 Bibi era líder
do Likud e, em 1996, primeiro-ministro.
Interessante
fonte de insights sobre as relações entre Washington e Telavive, são as
memórias e autobiografias de presidentes e secretários de estado. O espaço
dedicado ao conflito árabe-israelense nesses escritos cresceu enormemente nas
últimas décadas. Curiosamente, até agora não se viu interesse em reunir essas
informações às de outras fontes – mais um campo de estudo para centros de
pesquisa palestinos.
Desde os
dias de embaixada em Washington, Bibi teve contato, em cargos diferentes, com
cinco presidentes dos EUA. Considera a arena política nos EUA legitimamente
sua. Permanece convencido, até hoje, de que seus escritos sobre terrorismo
convenceram o Presidente Reagan a alterar a política dos EUA sobre o tema.
Vangloria-se
de ter feito bem-sucedido lobby no Congresso para pôr fim às tentativas
do secretário Baker, que queria abrir diálogo com a OLP. Explica que: “Tudo que
fiz foi forçá-lo (Baker) a mudar de política, aplicando-lhe um pouco de pressão
diplomática. Esse é o nome do jogo...”
Na primeira
visita aos EUA como primeiro-ministro, em 1996, Bibi falou ao Congresso e foi
ovacionado pelos dois partidos. Um tio magnata que ele convidara a ouvi-lo
disse a um jornal norte-americano que seu sobrinho poderia facilmente derrotar
Bob Dole e Bill Clinton na eleição presidencial.
O
presidente Clinton reclamou que, numa das visitas de Bibi à Casa Branca, o
“pastor Jerry Falwell gritava na calçada, “reunindo uma multidão, que elogiava
a resistência do governo de Israel contra a retirada em etapas dos Territórios
Ocupados”. Clinton também reclamou que “agentes do Likud nos EUA uniram-se aos
Republicanos nos EUA, para espalhar desconfianças contra a diplomacia [do EUA]
para o Oriente Médio”. Clinton acreditava que “no fundo do coração”, Bibi “resistia
contra o processo de paz”. Sua tática favorita era “obstruir”; quando
desafiado, punha-se a gritar “insulto nacional”.
E entra
Barack Obama. Bibi, nascido em 1949, é 12 anos mais velho. Quando Obama
concorreu ao Senado, em 2003, Bibi já fora embaixador à ONU, líder do Likud,
primeiro-ministro, ministro do Exterior e, então, era ministro interino das
Finanças.
É provável
que Obama só tenha começado a aparecer no radar político de Bibi depois do
discurso de 2004 na Convenção Nacional dos Democratas. De onde saiu esse
sujeito? E com esse nome?! É tentador especular se Bibi sentiu que Obama
estivesse metendo o nariz em “território de Bibi”.
Não há
tempo aqui para listar todos os vários rounds da queda-de-braço entre
Obama-Bibi – congelamento dos ‘assentamentos’, ambições nucleares do Irã, as
fronteiras de 1967, reconhecimento na ONU, acordo Hamas-Fatah. Alguns
observadores entendem que Bibi “eclipsou” Obama. Pessoalmente, vejo um empate.
Senhoras e
senhores,
Nos últimos
cem anos, desde 1914, o sionismo andou montado às costas da Pax Britannica,
depois da Pax Americana para estabelecer uma Pax Israeliana à
custa do povo palestino. Por quanto tempo mais pode persistir na recusa a
encarar o que foi feito aos palestinos?
Meu palpite
é que Bibi concordará com o geral das propostas de Kerry, mas só porque tem já
a intenção de brecar tudo. Bibi acredita que possa fazer sempre a mesma coisa.
Vê-se como mais do que apenas primeiro-ministro de Israel. Em 2010 e 2012, o
jornal Jerusalem Post apresentou-o no primeiro lugar da lista dos Judeus
mais Influentes do Mundo.
Para Bibi,
o Atlântico atravessa Eretz Israel. Bibi sabe que sobreviverá politicamente a
Obama. Em Israel, uma vez primeiro-ministro, primeiro-ministro para sempre. Em
menos de três anos, Obama será passado. Bibi sabe que, até lá, também pode
derrotar Obama no Congresso. Com certeza tem mais votos nos dois partidos, que
o atual inquilino do Salão Oval.
Todos os
demais protagonistas estão comprometidos com uma solução pacífica. Kerry fala a
voz do patrão, e Obama tem compreensão muito mais ampla da questão palestina
que qualquer dos que o antecederam no cargo. O compromisso de Abbas com a paz é
genuíno. Na idade em que está, a paz seria o coroamento de sua vida política.
As dinastias do Golfo babam por uma solução na Palestina, que lhes permita
concentrar-se no inimigo real: Teerã, panislamista e antimonarquista.
Bibi jamais
dividirá Jerusalém. Ocupação e colonização (“assentamentos”) continuadas
continuarão a apertar a corda em torno de Jerusalém Leste, o que é receita
garantida para catástrofe apocalíptica mais cedo ou mais tarde, contra os
lugares sagrados dos muçulmanos na Cidade Antiga. Com levantes repetidos de
fanatismo religioso dos dois lados, a estrada para o Armageddon começa em Jerusalém.
Eis por
que, senhores e senhoras, Benjamin Ben Zion Ben Nathan Nethanyahu é o mais
perigoso líder político em atividade no mundo, hoje.
[*] Professor Walid
Khalidi nasceu em Jerusalém, Palestina, em 1925.
Estudou em Oxford e lecionou nessa universidade, na American University de
Beirute, em Harvard e em Princeton. Co-fundador e secretário-geral desde 1963
do Instituto de Estudos Palestinos, com sede em Beirute, é atualmente diretor
do afiliado Instituto de Estudos Palestinos (EUA), com sede em Washington DC, e
membro da Academia Norte-Americana de Artes e Ciências.
Algumas observações:
ResponderExcluir1. Sempre me intrigou o fato de a Resolução 242 falar da retirada "militar" de Israel. E a retirada civil, como fica? Uma das instituições israelenses que mais controla a Cisjordânia ocupada tem o nome de Administração Civil, odiada por todos os palestinos, sem exceção, e submetida ao exército israelense.
2. Eu, porém, desconhecia o fato de que a Res. 242 fora elaborada pelo gabinete do governo sionista da época. A meu ver, a expressão "militar", no que diz respeito à invasão/ocupação da Palestina, ganhou agora uma conotação ainda mais sórdida: seria mantida a ocupação civil, sob o domínio da militar. E tudo continuaria como dantes, embora sob disfarces de nomenclatura.
3. Não se pode mesmo abrir mão do patrimônio dos dois Estados, assim como não se pode abrir mão do direito inalienável do retorno dos refugiados (de 1948, de 1967 e dos descendentes -- incluindo a mim). A solução de dois Estados, invenção ocidental à revelia do povo palestino, viola o direito inalienável dos refugiados. Pois é.
4. Ou o mundo acaba com o sionismo ou o sionismo acaba com o mundo. Simples assim. E complicado assim.