21/8/2013, [*] David
Harvey (entrevista), Red Pepper, UK
David Harvey interview: The importance
of postcapitalist imagination
Traduzido
pelo pessoal da Vila
Vudu
Este
é um trecho da entrevista, publicado hoje, 21/8/2013. A íntegra será publicada
na edição de outono de The Irish Left
Review
David Harvey |
Mês
que vem completam-se cinco anos que Lehman Brothers foram protagonistas do maior
caso de falência de banco na história dos EUA. O colapso sinalizou o início da
Grande Depressão – a crise mais substancial do capitalismo mundial desde a 2ª
Guerra Mundial. Como entender os fundamentos desse sistema agora em crise? E,
com o sistema em guerra contra a classe trabalhadora, sob o disfarce da
‘austeridade, como imaginar um mundo depois disso?
Poucos
pensadores geraram respostas mais influentes para essas perguntas que o geógrafo
marxista David Harvey. Aqui, em
entrevista recente, ele fala a Ronan Burtenshaw e Aubrey Robinson sobre esses
problemas.
Red
Pepper: Você
está trabalhando agora num novo livro, The Seventeen Contradictions of
Capitalism [As 17 contradições do capitalismo]. Por que focar essas
contradições?
David
Harvey: A
análise do capitalismo sugere que são contradições significativas e
fundamentais. Periodicamente essas contradições saem de controle e geram uma
crise. Acabamos de passar por uma crise e acho importante perguntar que
contradições nos levaram à crise? Como podemos analisar a crise em termos de
contradições? Um dos grandes ditos de Marx foi que uma crise é sempre resultado
das contradições subjacentes. Portanto, temos de lidar com elas próprias, não
com os resultados delas.
Red
Pepper: Uma
das contradições a que você se dedica é a que há entre o valor de uso e o valor
de troca de uma mercadoria. Por que essa contradição é tão fundamental para o
capitalismo e por que você usa a moradia para ilustrá-la?
David
Harvey: Temos
de começar por entender que todas as mercadorias têm um valor de uso e um valor
de troca. Se tenho um bife, o valor de uso é que posso comê-lo, e o valor de
troca é quanto tenho de pagar para comê-lo.
A
moradia é muito interessante, nesse sentido, porque se pode entender como valor
de uso que ela garante abrigo, privacidade, um mundo de relações afetivas entre
pessoas, uma lista enorme de coisas para as quais usamos a casa. Houve tempo em
que cada um construía a própria casa e a casa não tinha valor de troca. Depois,
do século 18 em diante, aparece a construção de casas para especulação –
construíam-se sobrados georgianos [reinado do rei George, na Inglaterra] para
serem vendidos. E as casas passaram a ser valores de troca para consumidores,
como poupança. Se compro uma casa e pago a hipoteca, acabo proprietário da casa.
Tenho, pois, um bem, um patrimônio. Assim se gera uma política curiosa – “não no
meu quintal”, “não quero ter gente na porta ao lado que não se pareça comigo”. E
começa a segregação nos mercados imobiliários, porque as pessoas querem proteger
o valor de troca dos seus bens.
Então,
há cerca de 30 anos, as pessoas começaram a usar a moradia como forma de obter
ganhos de especulação. Você podia comprar uma casa e “passar adiante” – compra
uma casa por £200 mil, depois de um ano consegue £250 mil por ela. Você ganha
£50 mil, por que não? O valor de troca passou a ser dominante. E assim se chega
ao boom especulativo. Em 2000, depois do colapso dos mercados globais de
ações, o excesso de capital passou a fluir para a moradia. É um tipo
interessante de mercado. Você compra uma casa, o preço da moradia sobe você diz
“os preços das casas estão subindo, tenho de comprar uma casa”, mas outro compra
antes de você. Gera-se uma bolha imobiliária. As pessoas ficam presas na bolha e
a bolha explode. Então, de repente, muitas pessoas descobrem que já não podem
usufruir do valor de uso da moradia, porque o sistema do valor de troca destruiu
o valor de uso.
E
surge a pergunta: é boa ideia permitir que o valor de uso da moradia, que é
crucial para o povo, seja comandado por um sistema louco de valor de troca? O
problema não surge só na moradia, mas em coisas como educação e atenção à saúde.
Em vários desses campos, liberamos a dinâmica do valor de troca, sob a teoria de
que ele garantirá o valor de uso, mas o que se vê frequentemente, é que ele faz
explodir o valor de uso e as pessoas acabam sem receber boa atenção à saúde, boa
educação e boa moradia. Por isso me parece tão importante prestar atenção à
diferença entre valor de uso e valor de troca.
Red
Pepper: Outra
contradição que você comenta envolve um processo de alternar, ao longo do tempo,
entre a ênfase na oferta, na produção, e ênfase na demanda, pelo consumo, que se
vê no capitalismo. Pode falar sobre como esse processo apareceu no século 20 e
por que é tão importante?
David
Harvey: Uma
grande questão é manter uma demanda adequada de mercado, de modo que seja
possível absorver seja o que for que o capital esteja produzindo. Outra é criar
as condições sob as quais o capital possa produzir com lucros.
Essas
condições de produção lucrativa quase sempre significam suprimir a força de
trabalho. Na medida em que se reduzem salários – pagando salários cada vez
menores –, as taxas de lucro sobem. Portanto, do lado da produção, quanto mais
arrochados os salários, melhor. Os lucros aumentam. Mas surge o problema: quem
comprará o que é produzido? Com o trabalho arrochado, onde fica o mercado? Se o
arrocho é excessivo, sobrevém uma crise, porque deixa de haver demanda
suficiente que absorva o produto.
A
certa altura, a interpretação generalizada dizia que o problema, na crise dos
anos 1930s foi falta de demanda. Houve então uma mudança na direção de
investimentos conduzidos pelo Estado, para construir novas estradas, o WPA
[serviços públicos, sob o New Deal] e
tudo aquilo. Diziam que “revitalizaremos a economia com demanda financiada por
dívidas” e, ao fazer isso, viraram-se para a teoria Keynesiana. Saiu-se dos anos
1930s com uma nova e forte capacidade para gerenciar a demanda, com o Estado
muito envolvido na economia. Resultado disso, houve fortes taxas de crescimento,
mas as fortes taxas de crescimento vieram acompanhadas de maior poder para os
trabalhadores, com salários crescentes e sindicatos fortes.
Sindicatos
fortes e altos salários significam que as taxas de lucro começam a cair. O
capital entra em crise, porque não está reprimindo suficientemente os
trabalhadores. E o “automático” do sistema dá o alarme. Nos anos 1970s,
voltaram-se na direção de Milton Friedman e da Escola de Chicago. Passou a ser
dominante na teoria econômica, e as pessoas começaram a observar a ponta da
oferta – sobretudo os salários. E veio o arrocho dos salários, que começou nos
anos 1970s. Ronald Reagan ataca os controladores de tráfego aéreo; Margaret
Thatcher caça os mineiros; Pinochet assassina militantes da esquerda. O trabalho
é atacado por todos os lados – e a taxa de lucros sobe. Quando se chega aos anos
1980s, a taxa de lucro dá um salto, porque os salários estão sendo arrochados e
o capital está se dando muito bem. Mas surge o problema: a quem vender aquela
coisa toda que está sendo produzida.
Nos
anos 1990s tudo isso foi recoberto pela economia do endividamento. Começaram a
encorajar as pessoas a tomarem empréstimos – começou uma economia de cartão de
crédito e uma economia de moradia pesadamente financiada por hipotecas. Assim se
mascarou o fato de que, na realidade, não havia demanda alguma. Em 2007-8, esse
arranjo também desmoronou.
O
capital enfrenta essa pergunta, “trabalha-se pelo lado da oferta ou pelo lado da
demanda?” Minha ideia, para um mundo anticapitalista, é que é preciso unificar
tudo isso. Temos de voltar ao valor de uso. De que valores de uso as pessoas
precisam e como organizar a produção de tal modo que satisfaça à demanda por
aqueles valores de uso? Hoje, tudo indica que estamos em crise pelo lado da
oferta. Mas a austeridade é tentativa de encontrar solução pelo lado da demanda.
Como resolver isso?
É
preciso diferenciar entre os interesses do capitalismo como um todo e o que é
interesse especificamente da classe capitalista, ou de uma parte dela. Durante
essa crise, a classe capitalista deu-se muitíssimo bem. Alguns saíram queimados,
mas a maior parte saiu-se extremamente bem. Segundo estudo recente, nos países
da OECD a desigualdade econômica cresceu significativamente desde o
início da crise, o que significa que os benefícios da crise concentraram-se nas
classes mais ricas. Em outras palavras, os ricos não querem sair da crise,
porque a crise lhes traz muitos lucros.
A
população como um todo está sofrendo, o capitalismo como um todo não está
saudável, mas a classe capitalista – sobretudo uma oligarquia que há ali – está
muito bem. Há várias situações nas quais capitalistas individuais operando
conforme os interesses de sua classe, podem de fato fazer coisas que agridem
muito gravemente todo o sistema capitalista. Minha opinião é que, hoje, estamos
vivendo uma dessas situações.
Red
Pepper: Você
tem repetido várias vezes, recentemente, que uma das coisas que a esquerda
deveria estar fazendo é usar nossa imaginação pós-capitalista, e começar por
perguntar como, afinal, será um mundo pós-capitalista. Por que isso lhe parece
tão importante? E, em sua opinião, como, afinal, será um mundo pós-capitalista?
David
Harvey: É
importante, porque há muito tempo trombeteia-se nos nossos ouvidos que não há
alternativa. Uma das primeiras coisas que temos de fazer é pensar a alternativa,
para começar a andar na direção de criá-la.
A
esquerda tornou-se tão cúmplice com o neoliberalismo, que já não se vê diferença
entre os partidos políticos da esquerda e os da direita, se não em questões
nacionais ou sociais. Na economia política não há grande diferença. Temos de
encontrar uma economia política alternativa ao modo como funciona o capitalismo.
E temos alguns princípios. Por isso as contradições são interessantes.
Examina-se cada uma delas, por exemplo, a contradição entre valor de uso e valor
de troca e se diz – “o mundo alternativo é mundo no qual se fornecem valores de
uso”. Assim podemos nos concentrar nos valores de uso e tentar reduzir o papel
dos valores de troca.
Ou,
na questão monetária – claro que precisamos de dinheiro para que as mercadorias
circulem. Mas o problema do dinheiro é que pessoas privadas podem apropriar-se
dele. O dinheiro torna-se uma modalidade de poder pessoal e, em seguida, um
desejo-fetiche. As pessoas mobilizam a vida na procura por esse dinheiro, até
quem não sabe que o faz. Então, temos de mudar o sistema monetário – ou se taxam
todas as mais-valias que as pessoas comecem a obter ou criamos um sistema
monetário no qual a moeda se dissolve e não pode ser entesourada, como o sistema
de milhagem aérea.
Mas
para fazer isso, é preciso superar a dicotomia estado / propriedade privada, e
propor um regime de propriedade comum. E, num dado momento, é preciso gerar uma
renda básica para o povo, porque se você tem uma forma de dinheiro antipoupança
é preciso dar garantia às pessoas. Você tem de dizer “você não precisa poupar
para os dias de chuva, porque você sempre receberá essa renda básica, não
importa o que aconteça”. É preciso dar segurança às pessoas desse modo, não por
economias privadas, pessoais.
Mudando
cada uma dessas coisas contraditórias chega-se a um tipo diferente de sociedade,
que é muito mais racional que a que temos hoje. Hoje, o que acontece é que
produzimos e, em seguida, tentamos persuadir os consumidores a consumir o que
foi produzido, queiram ou não e precisem ou não do que é produzido. Em vez
disso, temos de descobrir quais os desejos e vontades básicas das pessoas e
mobilizar o sistema de produção para produzir aquilo. Se se elimina a dinâmica
do valor de troca, é possível reorganizar todo o sistema de outro modo. Pode-se
imaginar a direção na qual se moverá uma alternativa socialista, se nos
afastamos da forma dominante da acumulação de capital que hoje comanda tudo.
[*]
David Harvey
(Gillingham, Kent, 7 de dezembro de 1935) é um geógrafo marxista britânico,
formado na Universidade de Cambridge. É professor da City University of New York e trabalha
com diversas questões ligadas à geografia urbana. Seu primeiro livro,
Explanation in Geography, publicado em 1969, versa sobre a epistemologia
da geografia, ainda no paradigma da chamada geografia quantitativa.
Posteriormente, Harvey muda o foco de sua atenção para a problemática urbana, a
partir de uma perspectiva materialista-dialética. Publica então Social
Justice and the City no início da década de 1970, onde confronta o paradigma
liberal e o paradigma marxista na análise dos problemas
urbanos.
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