domingo, 4 de agosto de 2013

Caso Snowden: Obama completamente desnorteado

1/8/2013, [*] Yves Smith, Naked Capitalism
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Barack Obama
Por causa da pose, do afamado ar cool, da cara de “sem drama”, é difícil detectar quando Obama está suando frio. Mas se se examina a substância de suas ações, é claro que o presidente já perdeu a pose, no mínimo no que tenha a ver com Snowden e as revelações sobre o estado de vigilância. Ainda não tenho certeza de que o presidente ande metendo os pés pelas mãos arrastado por alguma obsessão pessoal, ou se Obama já entendeu que escorrega velozmente para a posição de pato manco, e a frustração ante o poder que lhe escapa entre os dedos é mais visível no ponto mais sensível – a saber: a verdade sobre o que realmente faz a Agência de Segurança Nacional dos EUA.

Um dos sinais de que Obama está fora de prumo é a quantidade de erros consecutivos nos contatos com a Rússia. A pressuposição patética de que bastaria Obama ordenar e Putin obedeceria parece corolário da certeza de que os russos cooperariam e entregariam Snowden, tão logo Obama “amaciasse” o líder russo. Dado o pé em que estão hoje as relações EUA-Rússia, esta ideia beira o delírio limítrofe e a irracionalidade.


Michael Hirsh
Na década seguinte ao colapso da URSS no final de 1991, os EUA deram aos russos muitos maus conselhos econômicos – nascidos da cabeça de consultores de livre mercado do Harvard Institute para Desenvolvimento Internacional e do FMI (...).

Aquela era de desconfiar dos EUA levou diretamente aos anos de Putin. Desde então, apesar das várias tentativas do que a ex-secretária de Estado, Hillary Rodham Clinton chamava de “um reset” das relações, os EUA só fizeram estimular a desconfiança dos russos, insistindo em tratar os “russos como herdeiros das políticas e objetivos da União Soviética”, como Leslie Gelb e Dimitri Simes escrevem num novo artigo na revista The National Interest (...). Assim se criou a impressão de que as principais prioridades do ocidente, muito depois da Guerra Fria, ainda incluíam não apenas conter a Rússia, mas também transformá-la.

Putin tossiu um primeiro pigarro logo no início e tratou logo de lembrar aos EUA que Rússia e EUA não têm tratado de extradição e que, regra geral, a Rússia não extradita ninguém. Tratar o caso Snowden como “caso especial”, só porque os EUA “exigiam” que ele lhes fosse entregue, jamais entrou nas cogitações de Putin. Putin assumiu a posição segundo a qual não valeria a pena explorar Snowden e seu potencial gigante de causar problema aos EUA: “É como tosquiar porco: muito berreiro e nenhuma lã”.

Oleg Kalugin
Vale observar que essa formulação não veda a possibilidade de que a Rússia se interesse por trocar Snowden por indivíduos que vivem hoje nos EUA e que os russos querem ter de volta, como Oleg Kalugin, ex-agente da KGB.

Mas... Não! Obama imediatamente rejeitou essa possibilidade, e pôs-se a insistir que a Rússia seria obrigada pela lei internacional a devolver Snowden (engraçado é que a lei internacional torna-se super operante quando Obama precisa dela, mas não em casos como o de Kalugin; dos prisioneiros alimentados contra vontade na prisão de Guantánamo; ou de crianças paquistanesas assassinadas por drones). Obama também disse que

Não vou mobilizar jatos bombardeiros para apanhar um hacker de 29 anos (...) Não telefonei pessoalmente ao presidente Xi nem ao presidente Putin, e a razão é... No.1: não tinha de telefonar.
No.2, temos muitos negócios com China e Rússia e não vou ter um caso de suspeito que tentamos extraditar elevado de repente ao ponto de eu me pôr a manobrar e negociar e comerciar uma vasta série de outras questões.

Sim, mas... e o que aconteceu em seguida? Ora bolas! Obama não mobilizou pessoalmente jatos bombardeiros, mas se você não tomar como agressão o que fizeram contra o avião em que viajava o presidente Evo Morales, tenho cá uma ponte que você talvez queira comprar. E embora Putin tenha pronunciado as palavras “não se cogita de extradição” na formulação mais clara possível, nem assim Obama deu sinais de estar captando a mensagem. Já citei algumas vezes essa passagem do blog Moon of Alabama, mas vale a pena relembrá-la:

Vladimir Putin
Putin deixou bem claro desde o início que não haveria extradição de Snowden. Ponto final. Funcionários russos repetiram incansavelmente a mesma coisa, inclusive hoje. Perguntado por um repórter se a posição do governo teria mudado, Dmitry Peskov disse a agências russas de notícias que “a Rússia jamais extraditou quem quer que fosse e jamais extraditará.

O que haveria, aí, tão difícil de entender? Por que os EUA continuam a tentar?

Parece ser coisa da personalidade de Obama. Ele pediu pessoalmente que Putin extraditasse Snowden, mesmo depois de Putin ter dito publicamente (e quando, portanto, havia chance zero de mudar de posição) que não haveria extradição. Agora, Obama está no mato sem cachorro. Como é possível levar, ELE, um “não”, bem na cara, de um país como a Rússia?

Há duas semanas, Obama telefonou a Putin e pediu-lhe que despachasse Snowden de volta para os EUA, mas Putin recusou, segundo um funcionário que foi informado sobre o telefonema. Depois dessa resposta, ressentida como grosseria, a equipe de Obama passou a dedicar-se à nova política de tratar Putin com ares de pouco caso.

Samuel Charap
O caso Snowden está afetando definitivamente as relações EUA-Rússia, não há dúvidas sobre isso. Se você deixa claro que algo é muito importante para os EUA e requeremos cooperação e nosso requerimento é rejeitado, a rejeição terá impacto no relacionamento mais amplo. Ninguém pode levantar o nariz ante o presidente dos EUA e esperar que o gesto não tenha consequências. Se o presidente envolveu-se pessoalmente no caso e recebeu um não como resposta, é como jogar pela janela o livro de regras – disse Samuel Charap, alto dirigente do Instituto Internacional Rússia e Eurásia de Estudos Estratégicos.

Então, sim. Certo. O livro de regras voou pela janela. Ferro na diplomacia pública. Nem se preocupe com o modo como o mundo verá os EUA. Trata-se de Obama, ofendidíssimo, porque Putin “levantou o nariz” para ele. Quem é esse tal de presidente da Federação Russa que se atreve a fazer tal desaforo para o Rei Obama dos EUA?

Parece até que Obama esqueceu que a Rússia ainda tem arsenal atômico.

Agora que Obama aprendeu que não pode jogar com Putin de um lado para outro, tudo sugere que os EUA tentam oferecer gente e mais gente que interesse aos russos, em troca de Snowden (agradecimentos, pela dica, a Deontos):

Screen shot 2013-08-01 at 5.16.35 AM

Mas depois de ter forçado o avião de Morales a fazer um pouso de emergência, e depois dos desenvolvimentos das duas últimas semanas (em breve haverá outras notícias atualizadas), Obama já não está conseguindo sequer disfarçar o desespero e a urgência em capturar Snowden. Para piorar, e perversamente, quanto mais as negociações se arrastam, mais valioso Snowden vai-se tornando, com revelações que não cessam de pingar, pingar, pingar (com todo o material agora sob a guarda do jornal The Guardian e do jornalista Glenn Greenwald), e o estado de segurança oficial cada dia mais impotente, o que torna toda a situação cada dia mais frustrante para Obama. Putin, hoje, canta do poleiro mais alto. Pode continuar a rejeitar ofertas e mais ofertas dos EUA, esperando, enquanto a oferta sobe, sobe, sobe.

Glenn Greenwald
Agora, enquanto Snowden assume importância simbólica indevida (dado que o verdadeiro jogo está nas mãos de Greenwald e do jornal The Guardian; ter acesso a Snowden é interessante, mas não suficiente para impedir que os vazamentos prossigam), objetivamente, o governo dos EUA está na pior posição de todo o quadro.

Vários leitores desse blog Naked Capitalism resistem a dar importância à apertada derrota da emenda Amash, semana passada, que teria posto sob cabresto o estado de segurança, apostando que a votação não passou de encenação. Mas a emenda Amash teria proibido a transferência de fundos públicos para uso da Agência de Segurança Nacional para a finalidade de “coletar números de telefones e outros registros de qualquer pessoa que não seja alvo de investigação”. A emenda foi rejeitada por 217 a 205 votos.

A rejeição, por tão apertada margem de votos é evento de proporções sísmicas.

Keith Alexander
Lembremos que graças ao sistema “pagar e votar” que rege os dois partidos, a liderança na Câmara de Representantes manda muito mais, nos membros, que há 25 anos. As lideranças dos dois partidos e a Comissão de Inteligência da Câmara opuseram-se à emenda e fizeram cerrada campanha pela rejeição. O diretor da Agência de Segurança Nacional, Keith Alexander, falou sob sigilo aos deputados, para dizer, sem meias palavras, que haveria consequências terríveis caso a emenda fosse aprovada. Até a Casa Branca distribuiu declaração  em que se empenhou diretamente a favor da rejeição da emenda. Ouvi dizer, na Câmara de Representantes, que ninguém, ali, conseguia recordar outro caso em que o governo inteiro tenha jogado todo o seu peso contra a aprovação de alguma emenda. Figurões da comunidade de Defesa estiveram na mídia, em tempo integral, fazendo as mais aterrorizantes ameaças sobre os danos que a aprovação daquela emenda traria para interesses dos EUA. Como ouvi de um assessor, no Congresso: “Quebraram braços e pescoços para obter a rejeição”.  

Alan Grayson 
Pouco depois da votação, Alan Grayson convidou alguns membros para uma sessão agendada para a manhã da 4ª-feira, 31/7, na qual Greenwald deporia por teleconferência. Richard Clarke, presidente do Grupo de Segurança Contra-terrorismo e um dos membros do Grupo de Segurança Nacional também estava agendado para participar. 24 horas depois de Grayson ter anunciado a reunião, que despertou considerável interesse entre os membros, Clarke desistiu. De início, disse que havia um conflito de agenda, mas logo ficou claro que recebera, do governo, uma dose de tratamento Elizabeth Warren – foi convidado para outra missão (nada de alto valor monetário, mas prêmio prestigiado, de participação em processo interno) e foi informado de que, caso participasse daquela reunião, perderia a chance de ver-se incluído na outra iniciativa.

Mas aparentemente nem toda essa macaqueação foi suficiente. A possibilidade de criar-se um canal de contato direto entre Greenwald e outros “sentinelas vazadores” [orig. whistleblowers] e membros do Congresso, que, num certo momento, configurou-se bem claramente, foi sentida por Obama como ameaça grave demais. Jane Hamsher comenta os desenvolvimentos

Jane Hamsher 
O presidente Obama sempre, historicamente, considera o Congresso como uma antessala do inferno. Uma das maiores queixas dos Democratas no Congresso sempre foi que o presidente não os consulta nem os inclui na modelagem de sua agenda legislativa, e nem se fala de dar uma passada por ali, para conversar um pouco. Imagine-se, portanto, a surpresa geral quando, de repente, o presidente anunciou que viria hoje ao Capitólio, para reunir-se com todos os Democratas – exatamente na véspera do início das férias de agosto.

Por coincidência, Alan Grayson foi obrigado a cancelar a audiência sobre a Agência de Segurança Nacional marcada para hoje, durante a qual se ouviria o depoimento de Glenn Greenwald do The Guardian. Grayson organizara a audiência bipartidária para dar aos críticos dos programas de vigilância ilimitada da Agência de Segurança Nacional uma oportunidade para expor suas preocupações, e controlar a maré montante de “informação sempre errônea e viciada” distribuída pela comunidade de inteligência.

Gen. James Clapper
Especificamente, o encontro repentinamente agendado aconteceria com o chamado “Caucus Democrata”. Não conflitava diretamente só com a sessão para ouvir Greenwald, mas dado que esse período de atividade do Congresso se encerra na 6ª-feira, seria impossível reagendar a teleconferência para adiante, ainda nessa semana (tipo “não se conseguiu sala desocupada”). Muita gente me disse que o gambito de Obama ficou escandalosamente claro e óbvio para todos, no Congresso.

Consideremos, então, o que aconteceu: temos um presidente que encara um jornalista como ameaça pessoal e que faz o diabo para impedir que o jornalista fale diretamente aos congressistas. Nada disso, é claro, intimida Greenwald. Um dos pontos do testemunho da 4ª-feira (tecnicamente, não seria audiência) era dar oportunidade a Greenwald para responder a Obama, James Clapper e Keith Alexander, que haviam declarado que os programas da Agência de Segurança Nacional eram limitados.

Edward Snowden
Se você ainda não leu as informações que Greenwald acaba de distribuir sobre o programa Xkeyscore, o The Guardian resumiu os pontos mais críticos: 

Um dos programas top secret da Agência Top Secret de Segurança Nacional dos EUA permite que os analistas pesquisem – sem qualquer autorização ou mandado judicial – todas as vastas bases de dados em que se arquivam e-mails, chats online e os históricos de mensagens e contatos de milhões de indivíduos (segundo os documentos distribuídos pelo sentinela tocador de apito [orig. whistleblower] Edward Snowden).

Os arquivos lançaram luz sobre uma das falas mais controversas de Snowden, de sua primeira entrevista por vídeo publicada pelo jornal The Guardian dia 10/6.

Eu, sentado à minha mesa – disse Snowden - podia ouvir e copiar tudo de todos, de você, do seu advogado, do seu contador, de um juiz da corte suprema e até do presidente. Bastava que eu tivesse um endereço pessoal de e-mail.

Mike Rogers
Funcionários dos EUA apressaram-se a desmentir veementemente essa específica parte do que Snowden disse. Mike Rogers, o Republicano presidente da Comissão de Inteligência da Câmara de Representantes, disse, sobre a frase de Snowden: “É mentira. Está mentindo. É impossível para ele fazer o que diz que poderia fazer”.

Mas os materiais de treinamento para o programa XKeyscore agora distribuídos detalham precisamente como os analistas podem usar o programa e outros sistemas para pesquisar nas gigantescas bases de dados da Agência, bastando para tanto preencher um simples formulário em tela, e fornecer qualquer vaga justificativa para a pesquisa. A solicitação não é fiscalizada por nenhum juiz da Suprema Corte ou de qualquer outra corte ou tribunal nem por qualquer funcionário da própria Agência de Segurança Nacional, antes de ser processada.

O programa XKeyscore, os documentos alardeiam, é o sistema de “mais amplo” alcance de toda a Agência de Segurança Nacional de desenvolvimento de inteligência a partir de redes de computador – o que a Agência chama de Digital Network Intelligence (DNI) [Rede de Inteligência Digital]. Um dos documentos diz que o programa cobre “praticamente tudo que um usuário típico faz na internet”, incluindo conteúdo de e-mails, websites visitados e pesquisa, além dos respectivos metadados.

Os analistas da Agência de Segurança Nacional dos EUA também podem usar o sistema XKeyscore e outros sistemas da Agência para obter interceptação “em tempo real” da atividade de indivíduos na Internet.

Monica Lewinsky
Por mais danosas que sejam essas revelações, a reação da Agência e, agora, a atitude suspeita de Obama, que não está negociando com honestidade com o Congresso e já começa a tentar “qualquer coisa” para impedir que Greenwald fale (e até os mais empedernidos congressettes já começam a suspeitar que nem Obama conseguirá safar-se como “falso inocente”) já começam a dar sinal de que há risco de o tiro sair pela culatra. Basta ter em mente que o que derrubou Nixon, em Watergate, e o que mais dano causou a Clinton no affair Monica Lewinsky não foram os eventos propriamente ditos, mas as tentativas de esconder os eventos.

Aqui e agora, a Agência de Segurança Nacional e o governo dos EUA parecem incapazes de aceitar que Greenwald tem, sim, os documentos, e que prosseguirá metodicamente a liberar as informações. Se a Agência de Segurança Nacional sabe o que Snowden copiou (e dizem que sabem), então devem saber muito bem o que ele pode divulgar. Apesar disso, insistem em mentir descaradamente, todos os dias, em todos os jornais e televisões, mentiras que Greenwald tem meios para desmascarar, acima de qualquer dúvida possível, com o próprio material da Agência de Segurança Nacional.

O governo dos EUA e seus principais funcionários parecem organicamente, constitucionalmente, incapazes de reconhecer que não têm meios para deter o processo que já está em andamento, a menos que... façam explodir a redação do jornal The Guardian, ou tentem, sabe-se lá... um golpe de Estado?! (Mas eu, pessoalmente, tenho certeza de que ambos, Greenwald e Snowden, têm cópias de itens críticos do material entregues a mãos suficientes, provavelmente do próprio The Guardian, de tal modo que a publicação dos documentos prosseguirá, mesmo que algo aconteça ao jornal e aos jornalistas ou ao próprio Snowden). O estado de vigilância parece incapaz de entender que não tem meios para vencer essa luta e que, se não fizerem pelo menos algum esforço para embarcar no ônibus, correm o risco de acabar sob as rodas.

A reunião convocada por Grayson foi adiada para setembro. As táticas de procrastinação de Obama, que acabará por levar a discussão para o horário nobre no próximo outono, tem tudo para acabar como gol contra. Permaneçam sintonizados nesse canal. 

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[*] Yves Smith anima incisivamente o popular blog financeiro "Naked Capitalism" desde 2006. Passou mais de 25 anos em empresas financeiras e atualmente dirige a Aurora Advisors, uma empresa de consultoria especializada em gestão, consultoria financeira corporativa e serviços financeiros, sediada em New York. Experiência anterior inclui Goldman Sachs (em finanças corporativas), McKinsey & Co. e Sumitomo Bank (como chefe de fusões e aquisições). Yves escreveu para publicações nos Estados Unidos e na Austrália, incluindo The New York Times, The Christian Science Monitor, Slate, The Review Board Conference, Institutional Investor, The Daily Deal e Australian Financial Review. [Yves é graduada no Harvard College e Harvard Business School].

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