segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Guerra à corrupção ou construção de uma Pax Americana? (1/2)

A Lei dos EUA contra Práticas de Corrupção no Estrangeiro

10/8/2013, Valentin Katasonov, Strategic Culture
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Entreouvido na Birosca do Enguiço: Outro artigo que não é nenhuma brastemp, mas pode talvez COMEÇAR a nos ensinar que kurrupção é business, business, business.

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Em outubro de 1995, o Departamento de Comércio dos EUA, em associação com a CIA e outras agências de inteligência, preparou um relatório secreto para o Congresso, e uma versão resumida para divulgação, sobre o uso de propinas pelos concorrentes estrangeiros do business norte-americano.

Os autores daquele relatório estimavam que, no período entre janeiro de 1994 até setembro de 1995, empresas norte-americanas haviam perdido contratos no exterior que somavam quase US$ 45 bilhões, por concorrência desleal praticada por empresas estrangeiras que usavam “estimulação” ilegal sobre funcionários públicos responsáveis pelas decisões de contratação e compra. (...)

A extraterritorialidade das leis norte-americanas

Em The Dollar Racket, escrevi sobre a aprovação de grande número de leis nos EUA, em anos recentes, todas extraterritoriais. São leis que criam punições para indivíduos e entidades legais que se engajem em várias modalidades de atividades ilegais. Nos termos do que essas leis determinam, não só os residentes nos EUA são submetidos àquelas penalidades, mas também não residentes – empresas, bancos e cidadãos estrangeiros.

Os EUA são o país que tem mais ampla capacidade para punir não residentes, ou, no mínimo, para manter não residentes sob rédea curta, de todo o planeta.

Zbigniew Brzezinski
Primeiro, porque cidadãos e empresas legais estrangeiras têm trilhões de dólares depositados em contas em bancos norte-americanos. Por exemplo, segundo Zbigniew Brzezinski, os cidadãos russos, só eles, mantêm cerca de 500 bilhões de dólares em bancos norte-americanos.

Segundo, porque a parte do leão das transações internacionais é realizada em moeda norte-americana; essas transações se fazem através de contas abertas em bancos norte-americanos por bancos de vários outros países.

Terceiro, porque muitas empresas e bancos estrangeiros são registrados na Bolsa de Valores de New York [New York Stock Exchange (NYSE)]; suas ações, bônus e ADRs [American Depository Receipts/ certificados representativos de ações], são comerciados no mercado norte-americanos de seguros. A Bolsa de Valores de NY é entidade líder do comércio mundial. Antes da mais recente crise financeira, a capitalização total era de 21 trilhões de dólares; eram negociados os seguros de 447 empresas estrangeiras de 47 países com capitalização total de mercado de 7,5 trilhões de dólares.

Quarto, porque muitos bancos e empresas estrangeiras compram ações no capital das corporações norte-americanas, representantes abertos ou ramos, e criam subsidiárias. Em outras palavras, o business estrangeiro possui parte significativa do patrimônio na economia norte-americana. Por exemplo, 20% do patrimônio do setor bancário nos EUA pertence a bancos estrangeiros.

Assim, o governo norte-americano tem capacidade para multar infratores estrangeiros, bloquear suas transações internacionais em dólares, avaliar ativos, congelar fundos em contas bancárias, etc., para nem falar das capacidades das autoridades norte-americanas para pressionar outros governos mediante o FMI, o Banco Mundial, o Banco de Compensações Internacionais e outras organizações financeiras e econômicas internacionais, nas quais os EUA têm posição de acionista majoritário [orig. “controlling interest”].

Especialistas em legislação identificaram as seguintes áreas nas quais é mais pronunciada a extraterritorialidade das leis norte-americanas: combate à corrupção; combate ao terrorismo; combate à lavagem de dinheiro; violações de direitos humanos; proteção à concorrência (combate aos monopólios); proteção aos direitos de propriedade intelectual; regulação do mercado de seguros; combate à evasão fiscal; e prevenção da proliferação de armas nucleares.

Sergei Magnitisky
As leis extraterritoriais permitem, essencialmente, que os EUA interfiram em assuntos internos de outros países e, gradualmente, os ponham sob seu controle. Essas leis também são usadas para intimidar cidadãos, políticos, executivos de empresas e bancos de outros países. Exemplo recente desse tipo de lei é a Lei Magnitisky.

As leis aprovadas nos EUA que ao longo dos anos impuseram sanções contra Cuba, Coréia do Norte e Irã são marcadamente extraterritoriais por sua própria natureza. Hoje, os EUA mantêm sanções declaradas contra um total de 14 países.

E deve-se enfatizar que as leis norte-americanas sobre sanções contra alguns estados são talvez a única categoria de leis extraterritoriais na origem, há décadas. Por exemplo, nos anos 1970s os EUA tentaram fazer gorar o acordo “gás em troca de gasodutos” (o “negócio do século”) entre a União Soviética e empresas da Europa Oriental. Naquele momento, os contratos eram feitos para entrega à URSS, de dutos, compressores e equipamentos especiais para os dutos. Washington usou vários tipos de alavancagem sobre os fornecedores europeus; mesmo assim, o “negócio do século” prosperou.

Hoje, os EUA já se deixaram levar de tal modo pelas sanções contra países e empresas que tenham agido de modo a merecer o “desprazer” norte-americano, colaborando com estados “fora da lei”, que as leis extraterritoriais nesse campo já são aprovadas não só no plano federal, mas, também, no plano dos estados individualmente.

Há leis estaduais que proíbem a compra de bens e serviços de empresas estrangeiras que colaborem com países listados nas “listas negras” do governo norte-americano.

Depois dos eventos do 11/9/2001, o caráter extraterritorial de muitas leis norte-americanas cresceu abruptamente. Naquele momento, os EUA aprovaram a lei conhecida vulgarmente como Patriot Act [Lei Patriótica], pela qual o disfarce de combater o terrorismo internacional deu às agências do governo, à inteligência e aos tribunais norte-americanos mais autoridade para interferir em assuntos internos de outros países. 

Algumas leis norte-americanas, aprovadas já há muito tempo, só agora começam a deixar ver o próprio potencial extraterritorial.

Lei dos EUA contra Práticas de Corrupção no Estrangeiro 
[US Foreign Corrupt Practices Act (FDPA)]

Uma dessas leis é a Lei dos EUA contra Práticas de Corrupção no Estrangeiro [US Foreign Corrupt Practices Act (FCPA)], que entrou em vigência em 1977. É considerada a primeira lei, em todo o mundo, que proíbe subornar funcionários estrangeiros, mas até meados da década passada só raras vezes foi aplicada. O ímpeto que levou à aprovação dessa lei foi um escândalo que eclodiu em 1977, no centro do qual estavam a empresa aérea norte-americana Lockheed e o governo japonês. Descobriu-se que, para conseguir pedidos de compra na “terra do sol nascente”, a Lockheed vinha sistematicamente subornando funcionários japoneses de alto escalão. Efeito do “caso”, o gabinete japonês renunciou e o Congresso nos EUA redigiu e aprovou a Foreign Corrupt Practices Act em regime de urgência. Naquele momento, a lei visava diretamente empresas norte-americanas e impunha penas pesadas a indivíduos e a entidades norte-americanos apanhados na prática de subornar funcionários de governos estrangeiros. A lei teve consequências complexas para os EUA.

Por um lado, elevou a reputação dos EUA, que declarou guerra sem quartel e sem concessões contra a corrupção, tanto doméstica quanto em outros países.

Por outro lado, a lei pôs o business norte-americano em posição desfavorável, na comparação com empresas estrangeiras que praticavam o suborno para obter os contratos mais rentáveis. As leis de outros países só puniam quem pagasse propinas dentro do próprio país, não no exterior. Além disso, a legislação em alguns países europeus até encorajava a prática do pagamento de propinas no exterior.

Por exemplo, a República Federal da Alemanha permite a inclusão de despesas com propinas pagas no exterior, sob a rubrica dos “custos operacionais”; são consideradas despesas para facilitar a promoção dos produtos alemães no mercado mundial.

Tentativas empreendidas pelo governo dos EUA, para forçar outros países a aprovarem leis assemelhadas à Lei dos EUA Contra Práticas de Corrupção no Estrangeiro [US Foreign Corrupt Practices Act (FCPA)], não tiveram sucesso.

Em outubro de 1995, o Departamento de Comércio dos EUA, em associação com a CIA e outras agências de inteligência, preparou um relatório secreto para o Congresso, e uma versão resumida para divulgação, sobre o uso de propinas pelos concorrentes estrangeiros do business norte-americano.

Os autores daquele relatório estimavam que, no período entre janeiro de 1994 até setembro de 1995, empresas norte-americanas haviam perdido contratos no exterior que somavam quase US$ 45 bilhões, por concorrência desleal praticada por empresas estrangeiras que usavam “estimulação” ilegal sobre funcionários públicos responsáveis pelas decisões de contratação e compra em países estrangeiros.

Só 20 anos depois da aprovação da Lei dos EUA Contra Práticas de Corrupção no Estrangeiro [US Foreign Corrupt Practices Act (FCPA)] é que Washington conseguiu alguma abertura, no sentido de obter que outros países se unissem à sua luta contra a corrupção em países estrangeiros. Em dezembro de 1997, afinal, no contexto da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), foi aprovada a Convenção de Combate ao Suborno de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais [orig. Convention on Combating Bribery of Foreign Public Officials in International Business Transactions]. A convenção obriga os países signatários a fazer aprovar leis internas que prevejam sanções criminais para o crime de subornar funcionários em países estrangeiros.

A Convenção da OCDE foi ratificada pelos EUA em meados de 1998, e passou a vigorar em fevereiro de 1999. Em janeiro de 1999, o Conselho da Europa adotou a Convenção da Lei Criminal contra a Corrupção [orig. Criminal Law Convention on Corruption]. Em novembro de 1999, o Conselho da Europa adotou mais uma lei – a Convenção da Lei Civil contra a Corrupção [orig. Civil Law Convention on Corruption]. Finalmente, em 31/10/2003, foi aprovada a Convenção da ONU contra a Corrupção. Até hoje, já foi assinada por 140 países. EUA e Rússia assinaram e ratificaram a convenção. Países que assinem e ratifiquem essa convenção ficam obrigados a estabelecer, por lei, sanções criminais para todos os atos que a convenção define como “crime de corrupção”. A convenção criou algumas condições para a aplicação da lei nacional anticorrupção de um país, no território de outros países.

O problema da corrupção sempre foi agudo para todos os estados, mas, hoje, o aspecto econômico externo da corrupção vai-se tornando cada dia mais significativo.

A competição internacional por mercados para produtos e serviços de alta tecnologia, concessões e licenças para exploração e desenvolvimento de recursos naturais, aquisição de patrimônio no quadro de programas de privatização etc. é, a cada dia, mais feroz.

Segundo estimativas muito conservadoras dos especialistas da OCDE, cerca de US$ 100 bilhões são pagos, como propina, anualmente. E 30% desse total é pago por empresas para promover seus projetos comerciais em outros países.

Vários países europeus já aprovaram suas próprias leis anticorrupção (ou emendaram leis já vigentes), depois de subscreverem as convenções acima mencionadas. Nenhuma delas tem o caráter marcadamente extraterritorial da FCPA norte-americana, exceto talvez a UK Bribery Act (UKBA) [Lei Britânica do Suborno], aprovada pelo Parlamento britânico em abril de 2010 e vigente a partir de 1/7/2011.

A FCPA norte-americana: a lei “adormecida” afinal acordou

Em 2007-2008, registrou-se nos EUA um aumento abrupto no número de casos investigados por suspeita de prática de corrupção nos termos da Lei dos EUA contra Práticas de Corrupção no Estrangeiro [US Foreign Corrupt Practices Act (FCPA)]. Enquanto nas três décadas anteriores o número de investigações simultâneas jamais passara de dez, em 2008 o número de casos ultrapassou uma centena. Vale observar que o número de empresas não residentes conectadas com esses casos já ultrapassa largamente o número de empresas norte-americanas.

Inúmeros aspectos formais – como parte do patrimônio e dos negócios de uma empresa estrangeira estar em território norte-americano; haver participação de investidores norte-americanos (pessoas físicas ou jurídicas) no capital de empresa estrangeira; ou a empresa ter ações na Bolsa de Valores de New York – passaram a servir como base para que empresas não residentes fossem investigadas. Passaram a ser considerados, inclusive, aspectos como os fundos de alguma empresa estrangeira terem passado por contas em bancos norte-americanos. Significa que se passava a poder iniciar investigações contra alguma empresa, mesmo no caso de a empresa não ter feito nenhuma transação comercial no território dos EUA. E também no caso de a propina ter sido paga a alguém que não fosse cidadão norte-americano ou mesmo que não fosse sequer residente permanente. As investigações eram conduzidas, como o são até hoje, pelo Departamento de Justiça e a Comissão de Câmbio e Seguros dos EUA.

As empresas Daimler e Siemens (Alemanha), Statoil (Noruega), DPC Tianjin (China) e Vetco Gray (Grã-Bretanha) são apenas uns poucos exemplos de empresas não norte-americanas que foram processadas nos termos da Lei dos EUA contra Práticas de Corrupção no Estrangeiro [US Foreign Corrupt Practices Act (FCPA)] por subornar funcionários não norte-americanos fora do território dos EUA. No primeiro lugar da lista por valor das multas impostas aparece hoje a alemã Siemens (2008). Dentre os principais processos, pode-se também mencionar o caso, de 2009, em que duas empresas norte-americanas foram condenadas a pagar multas no total de US$ 579 milhões, por inúmeras violações da Lei dos EUA contra Práticas de Corrupção no Estrangeiro [US Foreign Corrupt Practices Act (FCPA)] na Nigéria.

Mas a maior parte das investigações de suborno a funcionários públicos de países estrangeiros conduzidas pelo Departamento de Justiça e pela Comissão de Câmbio e Seguros dos EUA teve a ver com empresas não residentes. E desde 2009 começou a prática de processar indivíduos por violações da lei norte-americana – não só cidadãos norte-americanos, mas estrangeiros em geral.


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