Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Ministério da Verdade, George Orwell - 1984 |
Quando a coisa pega à vera, é só
convocar o Ministério da Verdade, [1] que
ele logo dá jeito.
Aproximava-se
o fim do Ramadan. Os jihadistas daquela entidade vaga, a al-Qaeda na
Península Arábica [al-Qaeda in the Arabian Peninsula (AQAP)], entraram em
surto de hiperatividade. Foi aquela multidão de gente saindo das prisões, da
Líbia ao Paquistão, via Iraque. E tudo em perfeita sincronia com duas
fatwas lançadas em rápida sucessão pelo bicho-papão perene, ex-braço
direito de Osama bin Laden, Ayman “Doutor Maldade” al-Zawahiri.
Edward Snowden |
Imagine
reunião de emergência, crise total, nos mais altos escalões do complexo
orwelliano/Panopticon: “Cavalheiros, temos aqui uma oportunidade de ouro.
Estamos sitiados pelo espião desertor Edward Snowden – que os soviéticos
libertaram – e o hack-terrorista Greenwald. Snowden pode estar ganhando:
até na opinião pública nos EUA cresce a percepção de que nós talvez sejamos
ameaça ainda maior que a al-Qaeda.
Assim
sendo, temos de mostrar que vigilantemente protegemos nossas liberdades. Taí!
Todos juntos, ao mesmo tempo, gritando Térã, Térã, Térã! [2] .
Instantaneamente
haverá fechamento, com muita fanfarra, de muitas embaixadas e consulados dos EUA
no “mundo muçulmano” e o Departamento de Estado lançará alerta “mundial” para
viagens aéreas – que a Interpol imediatamente expandirá. Segue-se vasta confusão
– com muitos tentando descobrir se “mochilar” na Tailândia ou comer caviar
fresco em Baku serão atividades nas quais você, garantido, não corre(ria) o
risco de acordar explodido.
Glenn Greenwald |
Instantaneamente,
temos também toda a imprensa-empresa nos EUA e no “ocidente” tombando de amores
pelo meme Térã, Térã, Térã, tudo outra vez. E amaldiçoados
os que pensam que isso teria algo a ver com islamofobia. Você pensou que
Térã, Terá fosse coisa do passado? Não, Térã, Terã é
onipresente, onisciente, espiando por todos os lados. Terá quer pegar
você. Térã Wants You. Trens e barcos e aviões – você jamais estará a
salvo, esteja onde estiver.
Pois
o fabuloso específico telegrama “de inteligência” que o Ministério da Verdade
deu jeito de desenterrar resume-se a alguns jihadi de baixo escalão que
se jactam, pela rede, de eles e seus camaradinhas estarem preparando alguma
coisa bem suja, em algum lugar, mas em vários lugares e não especificados, por
todo o Oriente Médio-Norte da África [orig. Middle East-Northern Africa
(MENA)].
Operação
clandestina [orig. False flag] à vista
Exame
mais detalhado dos “milhares” de al-Qaeda libertados das prisões e prontinhos
para fazer o inferno por todo o planeta mostra que muitos deles, afinal de
contas, parecem ser “nossos” amigos.
A
fuga em massa em Benghazi (fugiram provavelmente 1.000 prisioneiros) – não chega
realmente a preocupar os Amigos da OTAN do tipo Grupo de Combate Islâmico Líbio
[orig. Libyan Islamic Fighting Group]; essas milícias já estão no poder,
ocupadíssimos em destruir a Líbia até o status de estado falhado para sempre.
Na
dupla fuga em massa em Bagdá (podem ter escapado algo como 1.400 prisioneiros),
o destino geral foi o deserto da Síria, para unir-se em jihad com os
Amigos de Obama/Cameron/Hollande/Casa de Saud, no saco de gatos conhecido como
Frente Jabhat al-Nusra/Estado Islâmico do Iraque e Levante. Mas... peraí! Se são
“nossos” amigos na Líbia e na Síria, como é possível que sejam nossos inimigos
no Paquistão e no Iêmen?
Só falta o Rei Abdullah... |
No
Paquistão (fugiram provavelmente 500), eles se dispersarão pelas áreas tribais e
por lá ficarão quietos – ou serão dronados conforme ordene O-Oh!-Bama, o que tem
lista de licença para matar. Por falar nisso, não houve alerta para o Paquistão
(nem para a embaixada em Islamabad, nem para o consulado em Peshawar, por
exemplo), nem na Indonésia. Quer dizer: não se trata de “mundo muçulmano”; é
basicamente o MENA. E especificamente o Iêmen. Mas Obama, semana passada,
disse ao presidente do Iêmen que a al-Qaeda está(ria) em retirada. Mas então...
O que é isso? A Al-Qaeda na Península Arábica optou por uma des-retirada?
Em
resumo, é o seguinte: o continuum Bush-Obama nunca nos decepciona – e,
isso, para nem falar de al-Zawahiri, a velha raposa. O Doutor Maldade,
estrategista afiadíssimo que é, percebeu, há algum tempo, que se o mito do
bicho-papão global chamado “al-Qaeda” está hoje “mais forte do que nunca” é
graças ao governo Obama e aos seus poodles, com bases na Europa e no
Golfo Persa, com sua estratégica de Três Patetas para da Líbia até a Síria. O
Afeganistão é outra história, completamente diferente; não restou ali qualquer
al-Qaeda histórica; só um punhado, nas áreas tribais do Paquistão.
Assim
sendo, al-Zawahiri logo percebeu que o bicho papão seria inevitavelmente
ressuscitado, em perfeita sincronia com suas recentes fatwas, porque
guerra “longa” – ou “infinita” = dinheiro perpétuo para o complexo
orwelliano/Panopticon. E é essencial que haja um conveniente inimigo
estrangeiro. E ninguém em Washington, em tempo algum, de modo algum, jamais
admitirá publicamente que o “inimigo” real, como concorrente estratégico, é o
dragão chinês.
Ayman al-Zawahiri |
O
Doutor Maldade e o complexo orwelliano/Panopticon estão do mesmo lado – e isso
explica por que lhe será permitido continuar como máquina perpétua de emissão de
fatwas enquanto quiser, e ele não será preso como qualquer pateta, pelo
modelito da bomba na cueca. O complexo está ofendido. Reformar a Agência de
Segurança Nacional? Meterem o nariz nos nossos metadados? Para quê? Pois se
acabamos de alertar o governo dos EUA em níveis “pré 11/9” de papo terrorista!
É possível que a Al-Qaeda na
Península Arábica decida não participar desse roteirinho mundial “pré 11/9”.
Verdadeiros jihadistas, afinal, não são idiotas a ponto de se deixarem
apanhar pelo programa XKeystroke. Eis aí, pois, um quebra-cabeças [Bob] Dylanesco para vocês. All along the
watchtower [da torre do sentinela, da trincheira], [3]
aproxima-se
uma bandeira falsa – “disse o coringa [o piadista, o falastrão] para o ladrão”.
Há muita Terã confusão, e não teremos paz. [4]
Notas
dos tradutores
[1 ] No livro 1984, de George
Orwell, o Ministério da Verdade (em Novilíngua, Miniver ou
Minivero) é um dos quatro ministérios que compõem o governo da Oceania.
Analogamente aos demais ministérios, (Ministério do Amor, Ministério da Fartura,
Ministério da Paz), o seu objetivo é exatamente o oposto da Verdade: este
ministério é diretamente responsável pela falsificação da história. Em
Novilíngua, porém, o nome é apropriado, já que “verdade” é aquilo que o Estado
quer que seja verdade. O protagonista do livro, Winston Smith, trabalha no
Ministério da Verdade. Na parede externa do Ministério da Verdade estão os três
slogans do Partido: “Guerra é Paz”, “Liberdade é Escravidão” e “Ignorância é
Força”. O Ministério da Verdade cuida das notícias, entretenimento, artes e
educação. O seu propósito é reescrever a história e alterar os fatos, de forma
que eles se encaixem na doutrina do Partido. Por exemplo, se o Grande Irmão fez
uma previsão que se revelou errada, os funcionários do Ministério devem
reescrever a história, de forma que a previsão do Grande Irmão seja precisa.
Dentro da novela, Orwell discute qual é a razão para a existência deste
ministério: o seu objetivo é criar a ilusão de que o Partido é absoluto. O
Partido não muda suas diretrizes (por exemplo, ele não troca seus aliados ou
inimigos entre Lestásia e Eurásia), não comete erros (o Partido não demite
membros nem faz previsões erradas sobre suprimentos), porque isto implicaria
fraqueza, e para manter o poder o Partido deve parecer eternamente correto e
forte.
[2]
Modo como Bush pronuncia a palavra “terroristas”.
[3]
All Along the Watchtower é
título de canção de Bob Dylan, de 1968, gravada por Jimi Hendrix. Leia
matéria sobre a canção, em que a letra é
analisada quase linha a linha (em inglês). Ouve-se a seguir:
[4] São palavras “rearranjadas”, dos versos de All
along the Watchtower:
“There must be some way out of here”,
said the joker to the thief, / “There's too much confusion, I can't get no
relief. / Businessmen, they drink my wine, plowmen dig my earth, / None of them
along the line know what any of it is worth.”/ “No reason to get excited,” the
thief, he kindly spoke, / “There are many here among us who feel that life is
but a joke. / But you and I, we've been through that, and this is not our fate,
/ So let us not talk falsely now, the hour is getting late.” / All along the
watchtower, princes kept the view / While all the women came and went, barefoot
servants, too. / Outside in the distance a wildcat did growl, / Two riders were
approaching, the wind began to howl.
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[*] Pepe
Escobar (1954) é jornalista brasileiro, vive em São Paulo,
Hong Kong e Paris, mas publica exclusivamente em inglês. Mantém coluna
(“The Roving Eye”) no Asia
Times Online; é também analista e
correspondente das redes The Real News
Network TV e Al-Jazeera.
Seus artigos podem ser lidos, traduzidos para o português pelo Coletivo de
Tradutores da Vila Vudu, no blog
redecastorphoto.
Livros
-
Globalistan: How the Globalized World is Dissolving into Liquid War, Nimble Books, 2007
-
Red Zone Blues: A Snapshot of Baghdad During the Surge, Nimble Books, 2007
-
Obama Does Globalistan, Nimble Books, 2009
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