20/8/2013, [*] M K
Bhadrakumar, Asia Times Online
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Placa na praça principal em Montereau-Fault-Yonne |
Yves Jégo |
Yves
Jégo, prefeito de Montereau-Fault-Yonne, no subúrbio ao sul de Paris, anunciou
2ª-feira que os proprietários de cães em sua cidade serão doravante filmados por
câmeras de vigilância. Os que não tenham noção do dever cívico e não recolham
das calçadas o cocô dos seus animaizinhos receberão multa de 35 euros
(US$46).
O
sr. Jego comparou esses proprietários irresponsáveis a traficantes de drogas,
que ameaçam a segurança pública. Pode-se aplicar a analogia à Síria.
De
fato, no instante em que o prefeito Jego falava à Agência France-Presse (AFP), a mesma AFP
distribuía notícias sobre uma reunião discreta, marcada para meados da próxima
semana, bem distante dos holofotes da divulgação internacional, numa cidade
localizada a 468,7 km ao norte de Paris:
Haia.
Wendy Sherman |
Há
fiapos de esperança de que não se deva descartar completamente, desde já,
qualquer possibilidade de nova ação para a Síria.
Cidade
bizantina de cães selvagens
Segundo
a AFP, a reunião prevista de altos funcionários de EUA e Rússia em Haia foi
concebida na reunião do dia 9/8 em Washington dentro do formato
“2+2” dos
Ministros de Defesa e Relações Exteriores dos dois países.
Wendy
Sherman, subsecretária de Estado dos EUA para assuntos políticos, chefia a
equipe norte-americana, que inclui – interessante! – o embaixador dos EUA à
Síria Robert Ford, que o presidente Barack Obama acaba de renomear como seu
próximo enviado especial ao Cairo. Lakhdar Brahimi, enviado da ONU-Liga Árabe à
Síria, também participará.
Lakhdar Brahimi |
O
objetivo declarado da reunião de Haia é discutir preparativos para a sempre
adiada conferência internacional para a paz na Síria, apelidada
“Genebra-2” ,
que visa a aproximar o regime sírio, aliados e a oposição.
Moscou
ainda não divulgou o nível da representação que enviará à reunião de Haia. Os
russos estarão ansiosos por dar a impressão de que a reunião é rotina nas
relações com Washington, apesar do bruaáááá sobre o alertador, Edward
Snowden, ex-CIA, e o subsequente cancelamento, por Obama, de reunião “bilateral”
com Vladimir Putin prevista para o mês que vem.
Robert Ford |
A
presença de Ford na reunião de Haia pode parecer desconcertante, se se pensa em
sua controversa folha-corrida como diplomata no Iraque e na Síria, por onde
deixou montanhas de cocô de cachorro espalhadas pela calçada. Mas Moscou não
deixará de considerar – ideia sempre aproveitável – que esse tipo de gente pode
ser bem aproveitada no serviço de limpeza de vias públicas, dado que sabem,
melhor que qualquer outro agente, de onde provém toda a imundície.
E
há movimento muito evidente, que está crescendo, a favor de conversações de paz
para a Síria. Por um lado, os cães da guerra na Síria começam a ver-se cada vez
mais apertados entre sete varas. O general Abdel Fattah al-Sisi, homem-forte do
Egito, odeia cachorros; já ordenou que toda a matilha dos cães de guerra sírios
desapareça totalmente da cidade do Cairo.
Abdel Fattah al-Sisi |
Está
pronto para seguir as pegadas do Sr. Jego e fazer instalar câmeras de vigilância
pelas margens do Nilo. A melhor parte da história é que, sendo ele homem pobre,
a nova empreitada de expulsar cachorros se autofinanciará... Agora que recebeu
generosa contribuição financeira que lhe veio dos mesmos xeiques riquíssimos aos
quais pertenciam, até há pouco tempo, os mesmos cães de guerra sírios.
Aqueles
xeiques estão cada dia mais preocupados: se o vento carregar o fedor das
calçadas sírias para o Egito, diretamente para os salões dos palácios deles, e
empestear as suas belas paisagens desérticas, nem todos os perfumes de toda a
Arábia bastarão para encobrir a fedentina.
Hosni Mubarak |
Um
Sisi já fortalecido pretende agora extrair do retiro o ex-ditador, Hosni
Mubarak, homem no qual os xeiques confiam implicitamente e cujas legendárias
competências na gestão de cocô de cachorro são legião.
Seja
como for, a matilha síria rapidamente identificou em Sisi sinais de incômodo; e
os cães de guerra sírios fugiram do Cairo para Istambul, aproveitando-se, a seu
favor, de um momento em que as autoridades turcas e egípcias, pelo menos por
hora, não se conversam.
Mas
Istambul tampouco será por muito tempo paraíso seguro para eles, porque, antiga
cidade bizantina, ali também há cães selvagens. A matilha síria é uma variedade
relativamente delicada, sobretudo na comparação com os cães do Curdistão e da
Mesopotâmia mais profunda,que são mastins sedentos de sangue e alguns deles, ao
que se diz, canófagos (cães que comem
cães).
Há
também indicações embora ainda vagas de que é questão de tempo, e o patrão turco
seguirá ele também os passos de Sisi e decidirá livrar-se de todos os cães que
fluem para a Anatólia vindos de regiões circundantes e poluem seu belo conjunto
arquitetônico.
Queda
trágica, mas potencialmente catártica
Expliquemos.
O primeiro-ministro turco Recep Erdogan telefonou a Putin há duas semanas e
propôs encontro entre os dois, à margem da reunião do Grupo dos 20 no início de
setembro em São Petersburgo: conversa de homem para homem, sobre a Síria.
Erdogan, político hábil, já entendeu que perdeu a disputa pela Síria; e que
Putin tem em mãos todos os trunfos, inclusive a assustadora “carta curda”.
Vladimir Putin e Recep Erdogan: Reunião de cúpula Russia-Turquia ( Kremlin dez/2012) |
Dentre
crescentes indícios de que há uma entidade curda tomando forma no norte da
Síria, ao longo da fronteira turca, nas linhas do Curdistão Iraquiano, Moscou
sugeriu, sem piscar nem baixar os olhos, que os curdos sírios poderiam também
enviar representação independente às conversações Genebra-2.
Hamad bin Khalifa al-Thani |
Erdogan
imediatamente captou a mensagem. O xeique Hamad bin Khalifa al-Thani do Qatar e
Mohamed Mursi do Egito sempre foram íntimos associados de Erdogan no projeto
sírio. Mas já foram aliviados da carga do poder – um abdicou, o outro foi
deposto.
Por
outro lado, o golpe egípcio encontra Erdogan em posição de cavaleiro sem
escudeiro no tabuleiro do xadrez regional, enquanto Arábia Saudita e aliados do
Conselho de Cooperação do Golfo, o Iraque, a Síria, Israel e até o Irã já
resolveram negociar com a junta militar no Cairo.
Para
Erdogan, a parte mais dura de engolir é que Obama o está ignorando. Do alto
pedestal em que foi aclamado líder modelar para o novo Oriente Médio, Erdogan
tombou, “queda shakespeariana” – trágica, mas ao mesmo tempo potencialmente
catártica.
Erdogan
sabe que o Egito ocupará todo o tempo de Obama, até o fim de seu mandato na Casa
Branca, o que implica que os EUA estão sendo virtualmente obrigados a
desengajar-se do projeto sírio. E, seja lá como for, não se atravessa momento
muito adequado para pressionar a favor de “mudança de regime” no Oriente
Médio.
Em
resumo, Erdogan compreende perfeitamente bem que Moscou avalia que, na Síria, a
maré virou.
A
insistente campanha de propaganda, de Moscou, falando do espectro da al-Qaeda
que estaria erguendo as garras na Síria, entrou fundo no consciente ocidental e,
ao mesmo tempo, Bashar al-Assad pressiona em casa, a cavaleiro da vantagem que
obteve no campo de batalha; e vai-se aproximando cada vez mais de ser reeleito
presidente da Síria nas eleições de 2014.
Males portentosos estão para acontecer [1]
Dito
de modo simplificado, a Rússia pós-soviética está de volta, pisando firme, ao
tabuleiro de xadrez no Oriente Médio. De fato, coisas estranhas já acontecem por
toda a Região.
Khaled Khoja |
O
representante do Conselho Nacional Sírio em Istambul, Khaled Khoja, disse com
amargura, em entrevista publicada no jornal turco Hurriyet no fim de semana:
O
movimento da oposição síria no Egito está sendo expulso [pelo governo de Sisi],
e figuras da oposição síria já começam a deixar o Egito. Estamos transferindo a
sede da Coalizão Nacional Síria, do Egito para a Turquia.
Politicamente,
Bashar al-Assad está convertido em ditador exemplar para todos os ditadores
árabes. O que al-Assad e a Shabiha
[militantes
armados, em trajes civis, que apóiam al-Assad] são para a Síria, [o general
Abdel Fattah] al-Sisi e seus grupos armados são para o Egito.
Cresce
entre muitos ditadores árabes a convicção de que é possível parar a Primavera
Árabe. Entre esses, os líderes da Arábia Saudita, Jordânia e Emirados Árabes
Unidos, que estão no grupo dos Amigos da Síria. Todos esses apoiaram
al-Sisi.
Depois
de um sítio de nove meses, quando as forças de oposição tomaram o aeroporto
próximo a Aleppo, encontraram foguetes da Arábia Saudita destinados ao regime.
Os Emirados Árabes Unidos estão no Grupo Amigos da Síria, mas Dubai já é o banco
central do regime sírio. Embora os Amigos da Síria devessem apoiar a oposição,
hoje já tendem mais a proteger o regime de Al-Assad.
Rei Abdullah (Arábia Saudita) |
Não
surpreendentemente, Moscou vai aquecendo os contatos com o “estado profundo” da
era Mubarak no Egito, e a manifesta simpatia que já mostra em relação à junta
militar no Cairo, combinada ao ódio visceral que historicamente lhe inspira a
Fraternidade Muçulmana, estão gerando uma estranha aproximação entre Rússia e
Arábia Saudita em questões vitais que afetam a futura trajetória da Primavera
Árabe.
Analisada
em retrospecto, a iniciativa do rei Abdullah, de mandar seu espião-chefe,
príncipe Bandar, falar com Putin mês passado, mostra que os sauditas sentem que
têm interesses próximos dos interesses de Moscou sobre a Síria, interesses que
estão emergindo no plano regional – uma comunidade de interesse que os sauditas
não sentem com nenhuma outra grande potência, nem com os EUA.
Pode
ter emergido dos relatos a impressão de que Putin e Bandar mantiveram distância
ostensiva e mal se falaram, um desconfiado do outro. Mas a verdade é que
conversaram durante quatro longas horas na residência do presidente da
Rússia.
Ahmad Jarba |
A
Síria com certeza foi e continua a ser ponto de diferença entre Arábia Saudita e
Rússia. Mas ambos, Putin e o rei Abdullah, são pragmáticos por excelência e,
como Mao Tse Tung ensinou certa vez, “Diferenças entre amigos sempre reforçam a
amizade”.
Dito
de outro modo, a decisão de Sisi de expulsar do Cairo os membros do Conselho
Nacional Sírio jamais seria possível sem um aceno e uma piscadela dos sauditas
e, é altamente improvável que Bandar não tenha sensibilizado Putin. Afinal de
contas, o líder do Conselho Nacional Sírio, Ahmad Jarba, sempre foi bem
conhecido como protegido dos sauditas.
Khoja, representante do Conselho Nacional Sírio, bem
poderia ter repetido as palavras do Imperador, em Julio Cesar de William Shakespeare,
[2]
Minha
esposa Calpúrnia é que me prende,
não
querendo que eu saia.
Viu
em sonho minha estátua, esta noite,
como
fonte que despejava sangue vivo por cem bocas,
na
qual romanos sorridentes e robustos banhavam as mãos.
Para
ela, a visão é uma advertência
de
que males portentosos estão para acontecer.
E
pediu-me, de joelhos, que eu não saia de casa.
________________________
Notas dos tradutores
[1] Orig.
Portents of evils imminent (Shakespeare, Julio Cesar, ato 2, cena 2)
.
Calpurnia, my wife, stays me at home;
She dreamt to-night she saw my statua,
Which, like a fountain with an hundred spouts,
Did run pure blood; and many lusty Romans
Came smiling, and did bathe their hands in it:
And these does she apply for warnings, and portents,
And evils imminent; and on her knee
Hath begg'd that will stay at home to-day.
__________________
[*] MK Bhadrakumar foi diplomata de carreira do Serviço
Exterior da Índia. Prestou serviços na União Soviética, Coreia do Sul, Sri
Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão e Turquia. É
especialista
em questões do Irã,
Afeganistão
e Paquistão e escreve sobre temas de
energia e segurança para várias publicações, dentre as quais The Hindu, Asia Times Online e Indian
Punchline.
É o filho mais velho de MK Kumaran (1915–1994), famoso escritor, jornalista,
tradutor e militante de Kerala.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Registre seus comentários com seu nome ou apelido. Não utilize o anonimato. Não serão permitidos comentários com "links" ou que contenham o símbolo @.