por Yoshie Furuhashi*
Contudo, a cobertura da Revolta Árabe feita pela Al Jazeera começou a deteriorar-se quando fagulhas revolucionárias principiaram a esvoaçar na direção dos estados do golfo, os quais acabaram por atear um levantamento sem precedentes (e politicamente muito prometedor [1]) no Bahrain, constituído por mais de 100 mil manifestantes num país cuja população é apenas cerca de 800 mil. Tendo prestado muita atenção ao papel da Al Jazeera na Revolta Árabe, As'ad AbuKhalil criticou a reviravolta no seu blog Angry Arab News Service:
GCC emite uma declaração em apoio ao Bahrain. O povo do Bahrain está agora por conta própria: não há uma Al-Jazeera para apoiar a sua causa e desmascarar o regime, e os EUA e a UE farão todo o possível para racionalizar e apoiar a repressão do governo. É vergonhoso que a Al-Jazeera em árabe tenha abandonado o povo do Bahrain e também por invocar um elemento sectário na sua cobertura, implicando que apenas os xiitas estão a protestar. (17/Fevereiro/2011)
Aproximadamente ao mesmo tempo, eclodiu um levantamento na Líbia. A violenta repressão do regime Kadafi, mais o contínuo espetáculo de aparentemente infindáveis defecções de oficiais de alta patente e militares do regime, demonstraram-se um presente dos céus para todos aqueles cuja maior preocupação é o que pode acontecer à sede da Quinta Frota dos EUA – e, ainda mais importante, ao seu vizinho da Arábia Saudita, cuja população xiita própria não só partilha dos mesmos agravos dos seus vizinhos do Bahrain como também está concentrada em uma da suas regiões produtoras de petróleo. Esqueçamos o Bahrain, vamos centrar-nos na Líbia!
Foi aproximadamente essa a diretiva, suspeita-se, de Sheikh Hamad bin Thamer Al Thani, patrão da Al Jazeera.
Não há nada de errado em falar acerca da Líbia se o objetivo é transmitir informação exata acerca dela. Mas está tudo errado ao fazer propaganda acerca de um caminho para colocar o seu povo em risco. Receito que seja exatamente isso que a Al Jazeera começou a fazer. Tanto em árabe como em inglês, a estação tem estado a apresentar membros destacados National Front for the Salvation of Libya , uma organização financiada pela CIA e a Arábia Saudita durante a Guerra Fria, como fontes críveis de notícias e pontos de vista, tal como os media ocidentais têm feito. [2]
Isto já é bastante mau. Ontem, a Al Jazeera atingiu um novo ponto baixo: deu ao pretenso “príncipe coroado” da Líbia –Muhammad as-Senussi – uma plataforma a partir da qual apela “à comunidade internacional para ajudar a remover Kadafi do poder e parar o massacre em curso” . Por “comunidade internacional”, naturalmente ele não se refere àqueles de nós que podem organizar protestos em embaixadas líbias ou essa espécie de coisa. Ele quer dizer a grande e as não tão grandes potências que podem ser persuadidas a instalar as suas forças armadas na Líbia.
“Príncipe coroado”: O que tento fazer é parar o massacre – tento fazer pressão e apelar à comunidade internacional para parar esta matança. Kadafi – ele deve abandonar [o poder]. E é o que tento fazer todo dia.
Barnaby Phillips, Al Jazeera: Então, o que a comunidade internacional deveria fazer e o que a comunidade internacional pode fazer?
“Príncipe coroado”: A comunidade internacional – eles sabem o caminho para parar o massacre.
Barnaby Phillips: Mas está a favor da intervenção militar da comunidade internacional?
“Príncipe coroado”: Eu penso que a apoiarei, qualquer coisa que pare a matança.
E o entrevistador da Al Jazeera deixou o “Príncipe coroado” sair-se com essa, sem desafiá-lo de todo quanto a este ponto. (É desnecessário dizer, ele não pôs uma questão que destrói a estrutura narrativa da intervenção militar estrangeira: uma vez que seções das forças armadas já aderiram à revolta, o que está a acontecer agora na Líbia não será tanto o regime a ceifar manifestantes desarmados e mais uma guerra civil entre dois campos armados, cada um controlando vastos territórios com recursos valiosos?)
Com seriedade: qual é o significado de um levantamento para recuperar o país do seu governante atual – e de fato já o conseguiu recuperar grande parte do mesmo – se potências estrangeiras obtêm a entrada no país por insistência do seu pseudo-rei, para tomá-lo outra vez? Estará a Al Jazeera pela revolução ... Ou pela contra-revolução?
Agora, ninguém à esquerda deveria perder o sono quanto ao destino de um homem que ergueu demasiadas tendas em demasiados campos contraditórios. Mas temos toda a razão para estarmos preocupados quanto ao que o império, ajudado pelos mass media, pode tentar na Líbia, desde obter os seus activos para aproveitar-se de um levantamento para o qual, estando seguramente no exílio, eles não fizeram quaisquer sacrifícios pessoas, até arrancar ao controle da Líbia regiões produtoras de petróleo, ou talvez mesmo todo o país, das mãos não só do seu dentro em breve antigo regime como também do seu povo.
Notas de tradução
1. Mulheres na vanguarda de uma greve politica! Cânticos pela unidade acima das seitas! Muçulmanos e laicos de esquerda juntos nas ruas!
2. Ex., "Deadly 'Day of Rage' in Libya" (citando “Mohammed Ali Abdellah, vice-líder da National Front for the Salvation of Libya”, Al Jazeera, 18/Fevereiro/ 2011); “Libya's Lucrative Ties” (entrevista ao “Dr. Mohamed al-Magariaf, co-fundador da National Front for the Salvation of Libya”, Al Jazeera, 22/Fevereiro/2011); “Libya on the Brink" (entrevista a “Ibrahim Sahad, secretário-geral da National Front for the salvation of Libya”, Al Jazeera, 23/Fevereiro/2011); www.aljazeera.net/... (Al Jazeera, 21/Janeiro/2011); www.aljazeera.net/... (Al Jazeera, 14/Fevereiro/2011).
* Editor da MRZine.
O original encontra-se em: Al Jazeera Promotes Libya ’s “Crown Prince” Who Calls for Military Intervention in Libya
Este artigo encontra-se em Resistir .
(comentário enviado por e-mail e postado por Castor Filho)
ResponderExcluirO Golfo é. de fato, algo bem separado do Máchireke (Levante) e Mághrebe (Poente) e não é, muito menos, parte do Oriente Médio. David Lean, aliás, deixou isso bem claro, na cena em que, preocupado em conquistar Ákaba, Lawrence procura atrair a ajuda de Auda Ábu Tái (Anthony Quinn), para a campanha antiturca em que o britânico se metera com Xerife Áli (Ômar Shêrif). Chama-o de "árabe", o que quase ofende Auda, da tribo Haiuitate. A turma do Golfo é bem diferente mesmo dos semitas do Oriente Médio, como Uri Avnery trata indistintamente muçulmanos, cristãos árabes e judeus. A "unidade" étnico-cultural do panarabismo é mais mítica que fundamento real do que preconizam seus defensores.
No caso do Bahrêine, as manifestações inesperadas tomaram os logradouros públicos, sobretudo em torno da Rotatória ("balão" rodoviário) Verde. Inimaginável, que tal estivesse acontecendo num país do Golfo, onde só se cultiva a ideia da prosperidade e do sucesso econômico, como a propaganda-Dubai expressa. Nas seis nações do Golfo, não se costumam tratar os desequilíbrios sociais nem se admite a existência de um proletariado e subproletariado, que existem, formados em geral por mão-de-obra importada. Mas também a desigualdade atinge os nativos e esse flanco escondido ficou à mostra no Bahrêine, um Reino anômalo em que uma minoria religiosa sunita domina os 70% xiitas da população.
Um país "curioso" em que uma das suas principais mesquitas é devotada a Mériam, ou seja, à Virgem Maria, sim, Mãe de Aïssa (Jesus), figuras sagradas no Islam, conquanto Ele não seja Filho de Deus, porque Állah "não gera". A saída em massa da população rebelada às ruas, inclusive de sunitas, em maifestação antigovernamental, representou um choque para o monarca, o príncipe-herdeiro, familiares, gente do poder; para os países vizinhos, todos alinhados ao "circuito da prosperidade", Arábia Saudita à frente; e para outros países árabes, europeus, investidores asiáticos e EUA. Abria-se um flanco inesperado no Golfo, logo havia que se reprimir pronta e violentamente os rebelados e ligar de imediato o gerador da máqina ocidental de propaganda, o que foi tempestivamente executado.
Permiti-me meter o bedelho na tradução do diligente pessoal da Vila Vudu, interferindo na grafia de nomes e geônimos, patronímicos e gentilícos - não me conformo que reproduzamos grafias prosódicas de outros idiomas - de vez que ostentamos a existência de uns 12 milhões de árabes e descendentes de primeira e segunda gerações em nossa sociedade. Não creio ter cometido falta qualquer a direitos de autoria tradutora, tendo tomado essa responsabilidade, sem prévia consulta, porque o que produz um coletivo tem de ser necessariamente coletivo.
Temos todos a considerar que esse trabalho, único no País, só deve resultar em público respeito, de vez que abrange as principais crises do mundo, avultando as do Oriente Médio, árabes, centro-asiáticos, paquistanenses e extremo-orientais. Ideal seria apostilá-los e distribuí-los nessa miríade de cursos de Relações Internacionais, os quais se reproduzem em coelheiras universitárias com rapidez espantosa, apesar de não sermos gente muito interessada ou versada em temas internacionais. Devo, por último, notar que, segundo se depara nos textos lusitanos, Portugal não se submete absolutamente ao Acordo Ortográfico adotado pela CPLP, no Brasil regulado por Decreto vinculante.
Abraços do
ArnaC