Para oferecer informação importante para as pessoas, Julian Assange teve de fazer um pacto com o diabo: os média dominantes. Por Israel Shamir, CounterPunch
ARTIGO | 19 FEVEREIRO, 2011 - 06:01
O The Guardian decidiu aparentemente destruir a WikiLeaks depois de a utilizar. |
Num relatório publicado aqui no CounterPunch, demonstrei que os EUA estiveram canalizando dinheiro secretamente para a Bielorrússia para financiar a oposição não eleita. Anteriormente, esta alegação tinha sido negada repetidamente. Agora temos prova legítima. Está gravada num telegrama confidencial da Embaixada dos EUA para o Departamento de Estado. É inegável.
Isto é, caso encontrássemos o telegrama e fossemos capazes de compreendê-lo.
E conseguíssemos compreender o contexto político do telegrama.
Os telegramas são informação em bruto. Não tão em bruto quanto os Diários Afegãos, a fuga anterior da WikiLeaks. Eles são escritos numa linguagem obscura própria do Departamento do Estado; grande parte da história está implícita, uma vez que os telegramas foram redigidos para colegas e definitivamente não para estranhos. Eles têm de ser simplesmente explicados, interpretados, anotados e finalmente entregues ao leitor. Colocar telegramas em bruto na Internet não resultaria: nunca se encontrariam os telegramas relevantes e provavelmente não seríamos capazes de compreender o seu significado ainda que o descobríssemos.
A tarefa principal de um jornal ou sítio de notícias é processar informação em bruto e transmiti-la ao leitor. Este trabalho requer ser levado a cabo por profissionais com experiência e altamente qualificados. Nem todos os jornais ou sítios de notícias dispõem de tais recursos e nenhum dos sítios independentes consegue competir com as outras fontes padrão mais acessíveis aos leitores. Se todos os telegramas fossem publicados num jornal local em Oklahoma ou Damasco, quem é que os leria? De modo a fazer chegar as nossas notícias até si, o nosso leitor, somos forçados a recorrer aos temíveis médias dominantes.
É por este fato que Julian Assange optou por colaborar com alguns importantes jornais liberais ocidentais dos média dominantes. Esclareçamos totalmente que compreendemos que todos os média dominantes estão com os seus corações incorporados; incorporados com o Pentágono, a CIA, com Wall Street e todos os seus parceiros. Esclareçamos também que compreendemos que nem todos os jornalistas da redação do The Guardian, Le Monde ou The NY Time são agentes nem sempre corretos da ideologia imperialista; não, nem mesmo todos os editores. Compreendemos, porém, que nem todas as pessoas estão dispostas a sacrificar as suas carreiras para tornar visível uma história que irá atrair uma chuva de protestos. Deste ponto de vista, a diferença entre os média liberais moderados e os média imperialistas extremistas diz respeito apenas ao estilo.
Por exemplo, se eles planejarem atacar o Afeganistão, os extremistas da Fox News solicitariam apenas um ataque contra os ratos das areias, enquanto o liberal Guardian publicaria um artigo de Polly Toynbee lamentando o destino ingrato das mulheres afegãs. A linha de orientação é a mesma: a Guerra.
Os média modernos constituem a arma mais importante dos governantes. O escritor moderno russo Victor Pelevin explicou sucintamente os seus modus operandi: “Os média incorporados não se preocupam com o conteúdo e não tencionam controlá-lo; eles apenas adicionam mais uma gota de veneno na corrente no momento certo”.
Para, além disso, arranjarem habilmente a informação de forma a iludir-nos. O título poderá gritar ASSASSINATO EXTREMAMENTE CRUEL, mas o artigo descreve um acidente inevitável. Não olhamos para além do título, mas este foi escrito pelo editor e não pelo jornalista que assinou o artigo. O Twitter não é mais que uma confusão de títulos; estamos sendo treinados para pensar em termos de slogans.
No caso da Bielorrússia, o The Guardian publicou três telegramas no dia antes das eleições, de forma a maximizar a exposição e a influenciar os resultados da eleição. Um dos títulos, publicado a 18 de Dezembro de 2010, afirmava: “WikiLeaks: a fortuna de Lukashenka [sic] é estimada em 9 mil milhões de dólares”. Era um título bastante enganador. A WikiLeaks não fez quaisquer afirmações sobre a riqueza de Lukashenko. Leia o artigo na íntegra e irá descobrir que tudo não passou de um funcionário da embaixada dos EUA que tinha ouvido um rumor e transmitiu-o ao Departamento de Estado. Apenas nas duas últimas frases do artigo mencionam que o telegrama admite: “o funcionário da embaixada não poderia verificar as fontes [sic!] ou veracidade da informação”.
Por isso, o título correto deveria ser: “WikiLeaks revela: diplomatas americanos espalham rumores inverificáveis acerca da riqueza pessoal de Lukashenko.” Mas o The Guardian fez parecer que foi a WikiLeaks que fez tal afirmação.
Suponhamos que um dia a WikiLeaks publique os telegramas da Embaixada Russa em Washington para o Centro de Moscou. Deveremos então esperar por um título gritante, como por exemplo: “WikiLeaks: A Mossad por trás do 9/11!”.
Não seria então ainda mais provável que nos fosse dito de forma soberba: “A WikiLeaks revela que diplomatas russos em Washington informam sobre os rumores persistentes acerca do envolvimento israelita no 9/11”?
Outro telegrama acerca da Bielorrússia publicado no mesmo dia foi intitulado: “Telegramas da embaixada dos EUA: o Presidente da Bielorrússia justifica a violência contra os opositores”. Uma vez mais, um título enganador e novamente a maioria nunca irá ler para além disso. Na verdade, este relatório interessante contém o interrogatório do Ministro dos Negócios Estrangeiros da Estônia, após a sua longa conversa com o Presidente Lukashenko. A curiosidade mais interessante não foi deliberadamente sublinhada no artigo: Lukashenko disse ao visitante estoniano que a oposição na Bielorrússia nunca se uniria e existia apenas “para sobreviver de subsídios ocidentais”. Quando lemos o artigo, o nosso olhar dirige-se imediatamente para a seção em destaque, saltando aos nossos olhos a informação valiosa logo acima. De fato, a própria seção em destaque não refere nada acerca da justificação da violência contra os opositores. O texto diz algo completamente diferente: “Lukashenko declarou que a oposição deveria esperar ser ferida quando atacam a polícia nos confrontos”. Uma vez mais, é a verdade legítima: em cada país, as pessoas que atacam a polícia em confronto acabam por se ferir. Em Israel também são alvejados, mas isso é outra história.
Desta forma o The Guardian recorreu à WikiLeaks de modo a influenciar os eleitores bielorrussos e das audiências ocidentais e prepará-los para o conflito do dia das eleições.
E chegamos a este ponto: de forma a obter informação importante para as pessoas, Julian Assange teve de fazer um pacto com o diabo: os média dominantes. Foi extremamente natural para ele ter de lidar com a facção liberal dos média dominantes, já dos extremistas nem sequer se aproximava. No entanto, uma vez que os jornais liberais estão também incorporados, eles distorcem livremente os telegramas com títulos enganadores e citando erradamente a partir do texto.
Para mim, leitor do The Guardian desde que trabalhei na BBC em meados da década de 1970, é doloroso dizer que o The Guardian se tornou impostor. Este jornal tem por objetivo fornecer a verdadeira informação aos cidadãos liberais e socialistas de Inglaterra; mas no momento da verdade, o The Guardian, com bom blairista, irá mudar de lado.
Além disso, o The Guardian decidiu aparentemente destruir a WikiLeaks depois de a utilizar. O Bárbaro fez o seu trabalho, o Bárbaro está dispensado. Os editores do The Guardian, tomando perfeita consciência que a equipa da WikiLeaks não será dominada ou subvertida, estão preparando um livro intitulado The Rise and Fall of Wikileaks (A Escalada e a Queda do Wikileaks). Ainda não foi publicado; porque terão ainda de encontrar material para a parte da queda.
Isso será feito em duas etapas.
Primeiramente, difamando Julian Assange, o líder da WikiLeaks. Destrói-se a cabeça e o corpo definha e morre. Este não é o local para lidar com alegações em detalhe, mas nunca tinha visto um artigo tão deformado e enganador como aquele que o The Guardian publicou recentemente sobre Assange – e já vi algumas pérolas. É o julgamento pelos média na melhor tradição ao estilo de Pravda 1937. O seu autor, Nick Davies, insinuou-se na vizinhança do confiável Julian e depois mordeu-o à maneira típica de um escorpião. Davies escreveu há anos atrás no seu Flat Earth News que a prática do jornalismo no Reino Unido está “torta”; agora, provou-o, através da sua própria escrita, sem que restassem dúvidas.
Não existem dúvidas: Assange nunca violou ninguém. Na véspera da alegada violação, a alegada vítima desabafou aos amigos dela no Twitter que tinha passado um ótimo tempo com o violador. Foi tudo publicado.
Além disso, caso as autoridades suecas estivessem primeiramente preocupadas em acusar Julian de violação, por que é que incluíram uma condição especial aos seus pedidos de extradição, especificamente reservando o direito de passá-lo para as autoridades dos EUA?
Nick Davies deu claramente uma machadada. Mas estava publicando o artigo por um mau julgamento do The Guardian, ou a começar uma campanha difamatória? “Uma vez pode ser por acaso, duas vezes é coincidência e três vezes é ação inimiga”, como afirmava o James Bond em007 contra Goldfinger. Aqui está o segundo ataque. O terceiro foi uma tentativa surpreendente de difamar Assange associando-o comigo.
Este último ataque, redigido por Andrew Brown, tem sido descrito como “o idiota residente do The Guardian”, e com razão. Gosto sempre de discutir os meus pontos de vista, apesar de Brown não ter percebido as subtilezas e nuances da minha escrita. Andrew Brown é um homem que entende a necessidade do público ler títulos gritantes. Somos agora deixados com imensos bloggersloucos que afirmam que eu sou o elo de ligação entre a Mossad e a WikiLeaks e que a WikiLeaks é um auxiliar pertencente totalmente à Mossad.
Nem por um único momento penso que alguém com o seu perfeito juízo mental leva a sério estas acusações ridículas – são apenas mais coisas contra Julian. Eu não sou membro da WikiLeaks, nem sequer porta-voz, apenas amigo. Mas ainda que seja sem mim, Brown ainda será capaz de atacar Assange citando Solzhenitsyn, o vencedor do Prémio Nobel e “famoso anti-semita cujos trabalhos estão sendo publicados por um sítio racista.” Citando um blog popular, Brown “está abaixo do desprezo, e, a partir de agora, abaixo de ter atenção”. Ainda assim, os editores do The Guardian libertam-no da sua trela de tempos em tempos, para sua eterna desgraça.
O segundo modo de ataque à WikiLeaks é usá-la como fonte de má informação. Estes telegramas do Departamento de Estado dos EUA são facas de dois gumes. Estão repletos de rumores, balões de julgamento e pensamento esperançoso. Pior, os títulos dos jornais declaram frequentemente que a WikiLeaks é a fonte do rumor e deixam ao critério do discernimento do leitor para descobrir que um funcionário da embaixada foi a verdadeira fonte da história. Os leitores nem sempre percebem que os títulos não passam de incentivos e refletem uma interpretação bastante livre do conteúdo do artigo. Eles têm a tendência de acreditar no título enganador que afirma, “WikiLeaks: O Irã prepara armas nucleares” ou, “WikiLeaks: todos os árabes querem que os EUA destruam o Irã”. A WikiLeaks nunca afirmou tais coisas! Foram o The Guardian e o NY Times que o afirmaram e em alta voz. Um título correto seria este:
A Wikileaks revela que diplomatas dos EUA espalham rumores infundados sobre o programa nuclear do Irã de forma a agradarem ao Departamento de Estado.
Mas não viveremos o tempo suficiente para vermos este título. É este o preço por usar os média dominantes: no fim de contas eles acabam por envenenar a fonte mais pura.
No entanto, eu apostaria em Assange. Ele é inteligente e tem a mente de um jogador profissional de xadrez. Tem muitas surpresas na manga. É possível que o The Guardian tenha de alterar o título do seu livro para The Rise and Rise of Wikileaks (A Escalada e a Escalada do Wikileaks).
O Ângulo Israelita
Agora consegue-se perceber o mistério da satisfação israelita com a WikiLeaks. Enquanto as autoridades dos EUA estavam furiosas com o desfecho, os israelitas estavam bastante orgulhosos e satisfeitos. O Haaretz tinha o seguinte título: “Netanyahu: as revelações da WikiLeaks foram boas para Israel.”
Os ingênuos fanáticos por conspirações concluíram de imediato que a WikiLeaks é um instrumento israelita, ou, por outras palavras, de um homem particularmente ingênuo: um “envenenado sionista”.
A verdade não é tão fantástica, mas muito mais deprimente. O The Guardian e o New York Times, Le Monde e Spiegel estão praticamente impossibilitados de publicar uma história inaceitável para Israel. Podem assinar um artigo moderado com “palha” ou uma análise ligeiramente crítica de forma a convencer os leitores perspicazes da sua objetividade. Podem até transmitir muito raramente a opinião de um (a) opositor (a). Porém, nunca poderiam publicar uma história que afetasse Israel verdadeiramente. Esta é a verdade para os média dominantes.
Para além disso, nenhum embaixador americano enviaria um telegrama verdadeiramente inaceitável para Israel – a menos que tencionasse reformar-se no mês seguinte. Ainda assim, supondo que este embaixador kamikaze enviaria o telegrama, os jornais ignorá-lo-iam.
Apesar dos milhares de telegramas secretos acerca de Israel em suas mãos, os média dominantes atrasam e enganam. Eles não permitem que ninguém lhes grite. É por este motivo que têm adiado a publicação dos artigos. Uma vez forçados pela circunstância ou competição a publicarem os conteúdos dos telegramas, podemos apostar que deturparão as revelações de forma a criar títulos bajuladores e enterrarão a verdade no último parágrafo.
Sempre atencioso, Julian Assange atribui este comportamento à “sensibilidade do púbico Inglês, Alemão e Francês”. Eu não sou tão atencioso; chamo a isso cobardia, ou se preferirem, prudência. Qualquer jornalista que confronte o estado judaico irá sofrer as consequências.
Numa situação dessas, os média dominantes não podem simplesmente ajudar-nos. Os jornalistas profissionais têm famílias e carreiras a proteger. Não podemos contar com eles quando pressentimos o perigo. Nunca deveremos saber nem compreender totalmente a verdade por detrás de qualquer acontecimento com ligação a Israel, enquanto os telegramas permanecerem apenas nas mãos dos média dominantes.
Editado por Paul Bennett
Tradução de Sara Vicente para o Esquerda.net
Outros artigos:
Extraído do Esquerda.net
9comentário enviado por e-mail e postado por Castor Filho)
ResponderExcluirEste é um texto excelente, cujo significado amplia a necessidade de os leitores servirem-se da chamada imprensa "alternativa" (em aspas, porque não gosto do qualificativo). Redigido em português de Portugal - país que não obedece na íntegra o Acordo Ortográfico firmado pelos membros da CPLP como o nosso, e fazem-no muito bem -, acredito que patrícios, desacostumados às leituras de textos lusitanos, não entendam lá muito bem o sentido da escolha de palavras e o uso de expressões em voga no país europeu.
Mas o que importa é o que o texto quer dizer e comunicar, o melhor exemplo em torno da questão de Israel, verdadeiro terror para órgãos mediáticos, editores, redatores-chefes, jornalistas e ensaistas, e não só nos países centrais do Ocidente (veja-se o caso brasileiro, v.g.).
O medo da acusação de antissemitismo e de penalidades profissionais de jaezes inesperados induz a pequena minoria bem informada sobre Israel a conter-se no que escreve, se quer ver publicadas suas matérias e sair incólume de represálias profissionais.
A perversidade das táticas do neossionismo resultou nesse encurralamento das mentes, degenerando nessa autodefesa prévia, vejam a que ponto chegamos.
O conceito de terror-terrorismo é bem mais amplo do que se divulga, óbvio, não podendo ficar restrito apenas a grupos de resistência mundo afora. Essa situação roça uma realidade cuja discussão também se procura evitar em diferentes meios e "média", como escrevem os portugueses o termo neutro do latim(*), bem mais correto que o nosso ridículo "mídia(s)", grafado de acordo com a prosódia estadunidense: o que significa democacia em 2011? Qual será o seu futuro (da democracia)? Sobreviverá a disposição de discuti-la? Por que sua realização falhou, nos séculos do Iluminismo e nestes tempos de "pós-modernos" de caos e dissolução da Razão?
Não são questionamentos abstratos, pelo contrário.
Abraços do
ArnaC
(*) Retiraria eu o acento agudo da grafia do termo, que não seria estampado em itálico nem sublinhado, incorporado que foi, já faz quatro décadas.