(e as gargalhadas dos pashtuns)
Embaixador M. K. Bhadrakumar |
23/2/2011, M K Bhadrakumar, Asia Times Online
Traduzido pelo Coletivo da Vila Vudu
A indicação que o governo Barack Obama acaba de fazer, de Marc Grossman, para substituir o falecido Richard Holbrooke, ex-representante especial para o Afeganistão e o Paquistão, é importante por três razões. Se em sua carreira diplomática Grossman conheceu o Paquistão e os mujahideen afegãos, nos tempos em que o Paquistão era estado “linha de frente” para os EUA, suas duas temporadas de serviço na Turquia, em eras passadas, fazem dele “especialista” no estranho funcionamento de uma democracia política comandada por militares.
E Grossman também devotou sua carreira à reconstituição da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), incluindo a implantação das primeiras operações “fora-de-área” nos Bálcãs. Assim sendo, a nomeação de Grossman indica uma certa mudança no pensamento de Obama – que se afasta do “surge” militar no Afeganistão, em direção a uma trilha de reconciliação política e diplomática com os Talibãs.
Os “vazamentos” semana passada, de que o governo dos EUA está envolvido em conversações diretas com os Talibãs, por funcionários do governo, para o jornalista Steve Coll, Prêmio Pulitzer, aconteceram quase simultaneamente à indicação de Grossman. Coincidência ou não, foi essa também a tônica do discurso da secretária de Estado dos EUA Hillary Clinton na Asia Society, em New York na 6ª-feira, sobre a guerra.
Com a indicação de Grossman, reforçam-se as mudanças nas políticas dos EUA. Mas a capacidade dos EUA para deter a expansão da guerra, sobre a qual Clinton falou, permanece duvidosa. Os principais pontos de seu discurso foram:
- A transição para a segurança controlada pelo Afeganistão começará, como planejada, nas próximas semanas; e a retirada de soldados dos EUA estará completada no final de 2014.
- Washington continuará a perseguir uma estratégia de três vias “que se reforçarão mutuamente”: uma avançada militar [orig. surge] combinada com esforço civil para revitalizar a economia política do Afeganistão e do Paquistão, e uma avançada [orig. surge] diplomática para por fim à guerra.
- A reconciliação com os Talibãs, mas com pré-condições bem claras.
- Os EUA atacarão sem parar para minar os Talibãs, os quais encararão um “ostracismo” internacional, até que se decidam a fazer concessões políticas.
- Ao mesmo tempo, os EUA reconhecem que “jamais mataremos número suficiente de insurgentes, que ponha fim absoluto à guerra”.
- Assim sendo, os esforços dos EUA, civis e militares, visam a dar suporte a um acordo político durável; e os EUA “intensificaremos nossa diplomacia regional para tornar possível um processo político”.
Clinton abriu alguma via nova? A resposta é “não”. A guerra está-se transformando rapidamente em “ferida hemorrágica” [orig. bleeding wound] – para usar a famosa expressão do líder soviético Mikhail Gorbachev, falando de outra guerra de superpotência no Afeganistão. Clinton reconheceu tacitamente o impasse, o empate. Assim sendo, tudo o que os Talibãs têm a fazer é “deixar andar” [orig. wait it out]. Washington quer impor precondições? Os Talibãs, também.
Em declaração no sábado, os Talibãs foram direto ao ponto e falaram precisamente sobre a negociação, em andamento, para que se instalem bases dos EUA no Afeganistão, no pós- 2014 (aspecto que Clinton contornou atentamente, em seu discurso).
Disseram os Talibãs:
“O Afeganistão não é país cujos nativos tolerem a presença de soldados estrangeiros (...). Os norte-americanos deveriam saber que nem os governantes do regime fantoche nem o parlamento ‘selecionado a dedo’ têm legitimidade para negociar o destino do Afeganistão (...) o estabelecimento de bases permanentes é sonho-de-ópio dos norte-americanos e não é realizável.”
Ainda mais significativamente, os Talibãs concluíram:
“Os países regionais veem com absoluta clareza os objetivos dos EUA, por trás dessa prolongada permanência no Afeganistão. Naturalmente, os países regionais não aceitam essa noção e se oporão a ela. Construirão até uma aliança contra ela, se tiverem oportunidade de fazê-lo e se esforçarão para aplicar golpe forte, devastador, contra o plano dos EUA.”
O presidente Hamid Karzai do Afeganistão parece concordar com os Talibãs. Karzai disse em Kabul, no sábado: “Não se trata [o acordo sobre as bases dos EUA] de algo a ser feito só pelo governo afegão, que nem tem autoridade para isso. Cabe aos afegãos decidir. Em todos os casos, o Afeganistão precisa de paz, como precondição; e deseja ter certeza de que os países vizinhos não se sintam ameaçados.”
Interessante é que Karzai fez eco ao que dissera o ministro das Relações Exteriores da Rússia, pouco mais cedo, no mesmo dia: “Essa informação [sobre as bases dos EUA] faz pensar e levanta questões. Por que seriam necessárias bases dos EUA, depois de já não haver qualquer ameaça terrorista no Afeganistão? Kabul conseguirá combinar negociações sobre presença de longo prazo dos EUA no país, e o processo de reconciliação? Como os países vizinhos do Afeganistão veem o estabelecimento de bases militares estrangeiras tão próximas de seus territórios?”
Karzai está convencido de que Washington trabalha sistematicamente para enfraquecê-lo. Karzai e os líderes militares paquistaneses verão a nova abordagem que surgiu no discurso de Clinton como mais um golpe contra seu empenho para dar início a um processo de paz “intra-afegão” e, em termos gerais, como tentativa de criar confusão entre os protagonistas afegãos.
Clinton errou, ao não assegurar papel central ao Paquistão, na busca de qualquer acordo. Definiu o papel do Paquistão como “encarregado” de destruir os santuários dos Talibãs, mantendo relações cordiais, entre estados, com o Afeganistão, sem interferência nos assuntos afegãos e, principalmente, mudando-se para uma trajetória sustentada de acerto entre as diferenças (inclusive sobre o próprio Afeganistão) e de normalização com a Índia. Em resumo, Clinton ofereceu ao Paquistão um “dividendo de paz”, com maior estabilidade interna e maior cooperação regional com a Índia.
Mas Clinton não soube ver os interesses “especiais” do Paquistão. Ao Paquistão não interessa nenhuma matriz mais ampla de segurança que inclua necessariamente o risco alarmante (do ponto de vista de Islamabad) de desequilíbrio regional que resultará de maior cooperação militar EUA-Índia e do reconhecimento unilateral, pelos EUA, da Índia, como potência nuclear.
Por outro lado, Clinton deixou fartamente claro que os comandos do processo político de reconciliação com os Talibãs, assim como as políticas regionais relacionadas ao problema afegão, permanecerão controlados por Washington.
É possível que Washington esteja contando com seus aliados não-pashtuns dentro do Afeganistão, para que frustrem qualquer processo de paz Afeganistão-Paquistão – que está além do alcance dos EUA e pode ameaçar seus objetivos; e, em segundo lugar, os EUA contam com a Arábia Saudita, para que opere como “equilibrador” regional em relação ao Paquistão e ao Irã, dados os velhos laços que há entre Riad e os Talibãs. Washington parece confiar que conseguirá criar alta confusão entre os líderes Talibãs, suficiente para dividir ou atomizar o grupo – com o quê conseguiria neutralizar o “trunfo estratégico” do Paquistão.
A estratégia dos EUA, esboçada no discurso de Clinton, bem pensada que tenha sido, ou não, pode gerar dificuldades para o plano de jogo de Karzai no Paquistão. Mas parece implicar esperança excessivamente ousada ou otimista.
As duras realidades aí estão, à vista de todos:
Os EUA têm capacidade limitada para persistir na linha tão prestigiada das avançadas (“surge”) civil e militar.
Os EUA repetem que os Talibãs estão enfraquecendo, mas não parecem convencidos e não soam convincentes. A situação da segurança é cada dia mais precária, a guerra expandiu-se para o norte, e o perímetro de segurança em torno de Kabul já foi invadido.
O mais recente acordo entre militantes na província de Kurram garante “profundidade estratégica” aos Talibãs que operam foram da área tribal do Waziristão Norte no Paquistão.
Os militares dos EUA estão presos na situação contraditória de, ao mesmo tempo em que atacam os Talibãs no front de combate, têm de reforçar um suposto “surge” político e diplomático.
A harmonia entre Washington, Kabul e Rawalpindi jamais foi mais precária do que hoje.
Os EUA não têm qualquer tipo de controle sobre as relações entre Afeganistão e Paquistão.
As relações entre Índia e Paquistão são um oceano de pontos de interrogação, e Washington está ante a tarefa de Sísifo de manter laços equilibrados com os dois estados inimigos no Sul da Ásia.
O “impasse” entre EUA e Irã entra agora em território desconhecido e não mapeado, depois dos eventos recentes no Oriente Médio e no Golfo Persa.
As potências regionais nutrem desconfianças profundas quanto à abordagem “unilateral” dos EUA e seus objetivos geopolíticos.
A guerra é questão cada dia mais controversa na opinião pública no Ocidente, e Obama aproxima-se de uma duríssima campanha de reeleição. Não há dúvidas de que demarcar prazos favorece os Talibãs.
Nada parece justificar o otimismo de Clinton, que disse: “Hoje, a pressão crescente imposta por nossa campanha militar obriga os Talibãs a decidir. Se romperem laços com a al-Qaeda, entregarem as armas e renderem-se à constituição afegã, poderão reintegrar-se à sociedade afegã. Recusem, e continuarão a enfrentar as consequências de aliar-se à al-Qaeda como inimigos da comunidade internacional. Não nos podem expulsar. Não nos podem derrotar. Não podem fugir da escolha”.
Falou grosso, sim. Mas... ah! Seria ótimo se a vida fosse assim tão simples, a estrada, assim tão reta, o futuro, assim tão certo.
Tariq Ali, comentarista e autor britânico-paquistanês, escreveu certa vez que sempre depois de surtos dessa retórica assim autoritária candente, “as montanhas do Hindu Kush reverberam ao som das gargalhadas dos pashtuns.”[1]
Nota de tradução
[1] Tariq Ali, “Farsa em Kabul, tragédia no Paquistão”, 23/10/2009, em português, em . Orig. 20/10/2009, Counterpunch, em Farce in Kabul , Tragedy in Pakistan
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