sábado, 12 de fevereiro de 2011

Egito: O começo de nova luta

Syed Saleem Shahzad

13/2/2011, Syed Saleem Shahzad, Asia Times Online
Syed Saleem Shahzad é editor-chefe da sucursal de Asia Times Online no Paquistão
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

ISLAMABAD. Os 30 anos de governo do agora derrubado presidente Hosni Mubarak acabaram numa declaração de 56 palavras lida na 6ª-feira pelo porta-voz e ex-chefe da polícia secreta de Mubarak Omar Sulieman. O fim de Mubarak dá nova vida à antes adormecida Fraternidade Muçulmana, mas não implica mudança no regime. A ditadura permanece viva, como, antes, já acontecera na Tunísia. 

Suleiman leu a seguinte declaração: “Em nome de Deus, o misericordioso, o compassivo. Cidadãos. Nessas circunstâncias muito difíceis pelas quais passa o Egito, o presidente Hosni Mubarak decidiu deixar o cargo de presidente da República e encarregou o Alto Conselho das Forças Armadas de administrar os negócios do país. Que Deus ajude todos.” 

Essa declaração é indicação de que os militares lideram o golpe vitorioso, comandado pelo ministro da Defesa marechal-de-campo Mohammed Hussein Tantawi, depois de mais de duas semanas de protestos de rua. 

O fim da ditadura de Mubarak, 83 anos, quebrou a paralisia da inteligência coletiva no mundo muçulmano e há nova percepção de que a mobilização de massas é poder decisivo. Mesmo assim, na ausência de movimentos verdadeiramente democráticos, o mais provável é que o Oriente Médio venha a se converter em novo campo de batalha entre o Irã xiita e a Fraternidade Muçulmana predominantemente sunita. 

O Irã entende que se vive um estágio de transição no Egito, e que a mudança de todos os paradigmas – como a Revolução Islâmica no Irã em 1979 que derrubou o Xá – é ainda sonho distante; mas que, já nesse estágio inicial, começa a ser diluído o controle que exercem na Região regimes predominantemente sunitas, como na Arábia Saudita, no Egito, na Jordânia e na Tunísia. 

Esse quadro agravará ainda mais o confronto na rua árabe, e pode auxiliar o crescimento do Islã xiita no Oriente Médio – o que criará profundidade estratégica para o Irã e pode levar a um renascimento do califado fatimida, que existiu, com centro na Tunísia e no Egito, de 909 a 1171. 

Quando era já iminente queda do regime de Mubarak e a mobilização política na rua árabe não dava sinais de que arrefeceria, pela primeira vez em sete meses o próprio Supremo Líder do Irã, aiatolá Ali Khamenei, fez o sermão da 6ª-feira em Teerã, dia 4 de fevereiro.

“No momento da Revolução Islâmica da grande nação iraniana [em 1979], falava-se precisamente do que hoje se ouve, sobre um despertar islâmico. É o que hoje está aí” – disse ele. 

“Nossa revolução serviu como inspiração e modelo pela perseverança, estabilidade e insistência nos princípios” – disse Khamenei. 

“Hoje no Egito ouve-se o eco de nossa voz. O presidente que estava no poder nos EUA [Jimmy Carter] durante a revolução [iraniana] disse, em entrevista, que o que se ouve no Egito é familiar. O que se ouve hoje no Egito ouvia-se em Teerã naqueles dias” – disse Khamenei. Disse também que os desenvolvimentos no norte da África são resultado de “um despertar islâmico que se viu cada vez mais evidente depois da grande revolução islâmica da nação iraniana”. 

Kamal al-Halbavi, líder da Fraternidade Muçulmana, saudou as palavras de Khomenei, em entrevista à BBC em Teerã [em persa]. Disse que queria que seu país se desenvolvesse em todos os campos, como o Irã, que alcançasse sucessos nos campos tecnológico e científico e que se convertesse em potência regional. 

Jim Lobe, do Inter Press Service escreve:
“Considerada pela maioria a mais bem organizada e mais disciplinada agremiação política existente no Egito, a Fraternidade Muçulmana, cuja popularidade explica-se pela ampla rede que mantém de serviços médicos e assistência social para as populações mais pobres, além da longa história de oposição ao e perseguição pelo regime de Mubarak, parece contar com a lealdade de cerca de 30% da população. 

Nas eleições parlamentares de 2005, candidatos associados à Fraternidade Muçulmana – o partido não concorre oficialmente a eleições, desde que foi banido em 1954 – conquistou 20% dos assentos no Parlamento egípcio. Nas eleições de novembro último receberam pouquíssimos votos, em eleições que, segundo observadores locais e internacionais, foram acintosamente manipuladas a favor do Partido Nacional Democrático de Mubarak no poder e cujo futuro é hoje considerado incerto.” [1]

A Fraternidade Muçulmana e sua ideologia têm raízes profundas na luta dos islâmicos predominantemente xiitas do Irã entre meados dos anos 1960s até os anos 1970s, refletida nos escritos do Dr. Ali Shariati[2], ideólogo da Revolução Islâmica do Irã, que citava frequentemente Syed Qutb, da Fraternidade Muçulmana do Egito.

Depois da Revolução Islâmica, o Irã converteu-se em força por trás de todos os movimentos islamistas[3] no mundo. Khalid Islambouli, oficial do exército egípcio que matou o presidente Anwar Sadat no atentado de 1981, era ligado à Jihad Islâmica do representante da Al-Qaeda Dr. Ayman al-Zahawari. O governo do Irã, em resposta ao tratado de paz que Sadat assinou com Israel e ao asilo que o Egito ofereceu ao Xá deposto do Irã, rompeu relações diplomáticas com o Egito. Em Teerã, há uma rua com o nome de Islambouli. Depois da execução de Islambouli, o Líder Supremo do Irã declarou-o mártir. E o Irã ofereceu asilo a membros da família de Islambouli. 

Entre os anos 1980s e 1990s, o pior período da perseguição que o governo egípcio sempre moveu contra a Fraternidade Muçulmana, o Irã converteu-se em segundo lar de muitos líderes da Fraternidade Muçulmana. Depois dos ataques aos EUA em 11/9/2001, o Irã ofereceu santuário aos principais líderes da al-Qaeda. (Ver: How Iran and al-Qaeda made a deal, Asia Times Online, 30/4/2010, e “Broadside fired at al-Qaeda leaders Asia Times Online, 10/12/2010). 

O Irã continuou como principal força de apoio das duas principais organizações da Fraternidade Muçulmana na Palestina – o Hamás e a Jihad Islâmica. 
Para os movimentos islâmicos, o apoio que recebem da revolução iraniana e o apoio que o Irã dá a organizações predominantemente sunitas-salafitas explica-se como uma espécie de “dever histórico”.  

A Fraternidade Muçulmana apoiada pela Arábia Saudita apoiou a revolução no Irã, numa aposta para por fim à dinastia xiita do Xá, que se misturara profundamente com um viés paroquial contra árabes e turcos e à continuação do império safavida cujos ancestrais converteram-se ao Islã xiita em 1501 para criar um pretexto para não aceitarem os turcos otomanos como parte do califado. Ideólogo da revolução do Irã, o Dr. Ali Shariati chamaria depois o xiismo do Xá e dos safavidas de “Xiismo Negro”, que teria vícios anti-islâmicos e traços anti-islamistas. 

A Fraternidade Muçulmana investiria suas esperanças no “Xiismo Vermelho” de Shariati, que tem raízes no Corão, na vida do Profeta Maomé e na vida de descendentes do Profeta Maomé (Bani Fatima). Assim se pôde manter que a Revolução Islâmica do Irã seria aliada de todas as nações árabes. Mas foi aliança estratégica, que interessava aos dois lados, aos xiitas e aos sunitas, para benefício de ambos. Os xiitas também visavam a ampliar seu papel no mundo muçulmano. 

O recente apoio do Irã aos islâmicos de todo o Oriente Médio é também movimento estratégico, na medida em que grupos sunitas não têm condições de promover qualquer revolução islâmica, embora possam, sem dúvida, contribuir para o caos político. O presidente do Iêmen Ali Abdallah Saleh e o rei Abdullah da Jordânia têm enfrentado movimentos de desestabilização nas últimas semanas, mas nem depois da derrubada de Mubarak há nesses países grupos políticos com força suficiente para catalisar qualquer mudança significativa. 

De um modo ou de outro, o ambiente politicamente carregado do Oriente Médio pode gerar algum efeito dominó no Iraque, Bahrain, Kuwait e Arábia Saudita. 

A inesperada aparição do Líder Supremo do Irã depois de longo afastamento das manifestações públicas e sua conclamação para um despertar islâmico no Oriente Médio não recebeu qualquer apoio material dos sunitas do mundo árabe, mas não há dúvidas de que o Irã financiará algum “despertar islâmico” nos círculos xiitas do Iraque, Iêmen, Bahrain, Kuwait e Arábia Saudita, como já fez quando a Arábia Saudita e o Iêmen uniram-se para reprimir as revoltas xiitas apoiadas pelo Irã em 2009. O Bahrain sempre dependeu dos Guardas Nacionais Sauditas para controlar qualquer agitação apoiada pelos xiitas iranianos. 

Ideologicamente, o Islã sunita e o Islã xiita sempre foram rivais políticos, desde o começo. Historicamente, só houve uma aliança entre as duas ideologias, quando Bani Fátima (os descendentes do Profeta Maomé) e Bani Abbas (os descendentes do tio do Profeta Maomé) uniram-se para derrubar a dinastia Umayyad e pôr no poder a dinastia Abbasid em 750 dC. E essa aliança durou apenas os quatro anos do reinado de al-Saffah Abbasi. 

Shariati cunhou a expressão Willayat-e-Faqih (guardiões da jurisprudência islâmica até a reemergência de al-Mahdi), reviveu leis islâmicas na religião xiita e criou espaço para uma revolução islâmica. A doutrina novamente apostava numa aliança entre Islã sunita e Islã xiita – dessa vez, com o Irã xiita no comando de uma revolução e os islâmicos sunitas como aderentes. Mesmo assim, sempre foi aliança incômoda, apesar de o Irã garantir proteção aos líderes da Fraternidade Muçulmana e à al-Qaeda e apoiar a resistência islâmica palestina. 

Com a al-Qaeda construindo um teatro de guerra do Afeganistão à Ásia Central e do Iraque à Somália, e com a Fraternidade Muçulmana liderando um levante no Oriente Médio e no Norte da África, ambos, o Islã sunita e o Islã xiita entram em fase nova e decisiva da luta. 

Seja como for, os conceitos de Imamat (liderança xiita) e de Califado (liderança sunita) inevitavelmente baterão de frente, e nenhum tipo de coexistência será possível.

Se houver insurgências de xiitas no Oriente Médio, para as quais o Líder Supremo do Irã repentinamente apresentou-se como líder e campeão, haverá confrontos mortais entre esses dois principais segmentos do mundo muçulmano. 



NOTAS DE TRADUÇÃO

[1] Jim Lobe, “The Brotherhood Bogeyman”, 12/2/2011,  [em tradução].
[2] 1933-1977. Mais, sobre ele, em: Ali Shariari, Iranian Personality
[3] A palavra “islamista” não aparece ainda nos dicionários brasileiros, mas já é usada em todo o mundo, em várias línguas, sempre que é preciso demarcar a diferença que há entre “apoiar movimentos políticos inspirados na religião islâmica” e “praticar ou seguir ou pregar a própria religião islâmica”. Em inglês, diz-se “islamist”, no primeiro caso; e “islamic”, no segundo. Em francês, diz-se “islamiste” e “islamique”, na mesma oposição. O fato de a palavra “islamista” não estar ainda dicionarizada em português do Brasil não tem importância alguma para nenhum efeito de “correção” ou de revisão; a palavra deve ser mantida quando for usada nas nossas traduções, mesmo sem estar “oficializada” nos dicionários. Edição nova que se faça dos dicionários de língua portuguesa do Brasil, das duas uma: ou incluirá a nova palavra, ou repetirá os erros de repetição conservadora dos dicionaristas e gramáticos conservadores autoritários.

10 comentários:

  1. Comentário do pessoal da Vila Vudu

    O grande filósofo do terror islâmico

    por Paul Berman, do "New York Times"

    Nos dias que seguiram o 11 de setembro de 2001, muitas pessoas previram uma rápida e satisfatória vitória norte-americana sobre a Al-Qaeda. Acreditava-se que o exército terrorista não fosse maior que um navio pirata, e que as forças policiais de todo o mundo afundariam o navio com prisões imediatas e manobras obscuras. A Al-Qaeda foi tirada de suas bases no Afeganistão. As prisões e manobras ocorreram e ainda estão ocorrendo.

    As raízes da Al-Qaeda não estão na pobreza ou no anti-americanismo mas nas idéias de Sayyid Qutb

    Mas a Al-Qaeda não pareceu se preocupar. Sua popularidade, que era difícil de imaginar no começo, passou a ser grande e genuína em mais do que alguns poucos países. A Al-Qaeda sustenta uma visão mundial paranóica e apocalíptica, de acordo com a qual “guerreiros e sionistas” conspiram há séculos para destruir o islã. E esta visão mundial é aceita em muitos lugares.

    A Al-Qaeda foi criada no final da década de 1980 pela fusão de três facções armadas – o círculo de árabes “afegãos” de Osama bin Laden, com duas facções do Egito, o Grupo Islâmico e a Jihad Islâmica Egípcia, o último liderado pelo dr. Ayman al-Zawahiri, o principal teorizador da Al-Qaeda. As facções egípcias surgiram de uma corrente mais antiga, uma escola de pensamento de dentro do movimento fundamentalista do Egito, a Fraternidade Muçulmana, das décadas de 1950 e 1960.

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  2. (continuação)

    Manifesto clássico da ala terrorista

    No coração desta escola de pensamento estava, até sua execução em 1966, um filósofo chamado Sayyid Qutb – o herói intelectual de todos os grupos que eventualmente entraram na Al-Qaeda, seu Karl Marx (se podemos assim chamar), seu guia.

    Qutb escreveu um livro chamado “Marco Histórico” (sem publicação no Brasil), e este livro foi citado em seu julgamento, o que lhe rendeu imensa publicidade, especialmente depois que seu autor foi enforcado. O livro se tornou um manifesto clássico da ala terrorista do fundamentalismo islâmico. Ele foi tirado de seu vasto comentário sobre o Alcorão chamado “Na Sombra do Alcorão” (também não publicado no Brasil), que é uma obra-prima.

    A Al-Qaeda e organizações afiliadas não são meramente populares, saudáveis, globais, bem conectadas e institucionalmente sofisticadas. Esses grupos também se baseiam em uma série de idéias, e algumas dessas idéias podem ser patológicas, o que é uma velha história na política moderna; mas mesmo assim, as idéias são poderosas. Deveríamos saber disso, é claro. Mas deveríamos saber também de muitas outras coisas.

    Gamal Abdel Nasser e um grupo de oficiais do exército nacionalista derrubaram o rei do Egito em 1952 e deram início a uma revolução nacionalista em territórios pan-árabes. E, conforme os pan-árabes continuaram a promover sua revolução, Sayyid Qutb continuou a promover sua própria e diferente revolução.

    Sua idéia era “islamista”. Ele queria transformar o islã em um movimento político para criar uma nova sociedade, baseada em antigos princípios do Alcorão. Qutb se juntou à Fraternidade Muçulmana, tornou-se editor de seu jornal e se estabeleceu imediatamente como o principal teorizador do islamismo no mundo árabe.

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  3. (continuação)

    Uma das obras mais notáveis produzidas na prisão

    Uma vez que os pan-árabes tinham derrubado o rei, as diferenças entre os dois movimentos começaram a superar as semelhanças. Nasser tomou medidas severas contra a Fraternidade Muçulmana, e depois que alguém tentou assassiná-lo, ele culpou a Fraternidade e assumiu uma posição ainda mais dura.

    Nasser prendeu Qutb em 1954, libertou-o por um breve período, prendeu-o novamente por dez anos, libertou-o por alguns meses e finalmente o enforcou em 1966. Durante seus anos na prisão, contrabandeando documentos, Qutb conseguiu continuar a escrever, não mais com a veia “em tom ocidental” de seus primeiros dias literários, mas como um revolucionário muçulmano maduro. E de alguma forma, ele produziu “Na Sombra do Alcorão”, seu estudo gigantesco, que deve ser uma das obras mais notáveis de literatura produzidas em prisão.

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  4. (continuação)

    Qutb deu aos guerreiros de 11 de setembro e a seus companheiros uma razão de buscar a morte

    Qutb escreveu que, em todo o mundo, os humanos tinham atingido um momento de crise insuportável. A corrida humana perdeu o contato com a natureza humana. A inspiração, a inteligência e o moralismo do homem estavam se degenerando. As relações sexuais estavam se deteriorando “a um nível mais baixo que o dos animais”. O homem era miserável, ansioso e cético, afundando na idiotice, na insanidade e no crime. As pessoas estavam recorrendo, devido à sua infelicidade, às drogas, ao álcool e ao existencialismo.

    Qutb admirava a produtividade econômica e o conhecimento científico. Mas ele não achava que a riqueza e a ciência estivessem salvando a raça humana. Ele percebeu que, pelo contrário, os países mais ricos eram os mais infelizes de todos. E qual era a causa de sua infelicidade – a separação mais desprezível entre a natureza humana mais pura e a vida moderna?


    O sagrado e o secular

    Na visão de Qutb, o cristianismo tinha perdido o contato com o mundo físico. O antigo código de Moisés, com suas leis para dieta, modo de se vestir, casamento, relações sexuais e outras coisas, tinha envolvido o divino e o mundano em um único conceito, que era a devoção a Deus.

    Mas o cristianismo dividiu essas coisas em duas, o sagrado e o secular. O cristianismo dizia: “Atribua a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. O cristianismo colocou o mundo físico de um lado e o mundo espiritual de outro lado: as perversões de Constantino aqui, a renúncia dos monges ali.

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  5. (continuação)

    Qutb deu aos guerreiros de 11 de setembro e a seus companheiros uma razão de buscar a morte

    Qutb escreveu que, em todo o mundo, os humanos tinham atingido um momento de crise insuportável. A corrida humana perdeu o contato com a natureza humana. A inspiração, a inteligência e o moralismo do homem estavam se degenerando. As relações sexuais estavam se deteriorando “a um nível mais baixo que o dos animais”. O homem era miserável, ansioso e cético, afundando na idiotice, na insanidade e no crime. As pessoas estavam recorrendo, devido à sua infelicidade, às drogas, ao álcool e ao existencialismo.

    Qutb admirava a produtividade econômica e o conhecimento científico. Mas ele não achava que a riqueza e a ciência estivessem salvando a raça humana. Ele percebeu que, pelo contrário, os países mais ricos eram os mais infelizes de todos. E qual era a causa de sua infelicidade – a separação mais desprezível entre a natureza humana mais pura e a vida moderna?


    O sagrado e o secular

    Na visão de Qutb, o cristianismo tinha perdido o contato com o mundo físico. O antigo código de Moisés, com suas leis para dieta, modo de se vestir, casamento, relações sexuais e outras coisas, tinha envolvido o divino e o mundano em um único conceito, que era a devoção a Deus.

    Mas o cristianismo dividiu essas coisas em duas, o sagrado e o secular. O cristianismo dizia: “Atribua a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. O cristianismo colocou o mundo físico de um lado e o mundo espiritual de outro lado: as perversões de Constantino aqui, a renúncia dos monges ali.

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  6. (Continuação)

    Agressão interna dos muçulmanos

    Qutb queria que os muçulmanos reconhecessem a natureza do perigo – reconhecessem que o islã sofreu agressões de fora e também de dentro do mundo muçulmano. A agressão externa foi realizada por guerreiros e por sionistas de todo o mundo (embora algumas vezes ele também tenha mencionado o comunismo).


    Para Qutb, o elemento verdadeiramente perigoso na atividade americana não era o capitalismo, política internacional ou independência da mulher

    Mas a agressão interna foi conduzida pelos próprios muçulmanos – isto é, por pessoas que se diziam muçulmanas mas que poluíram o mundo muçulmano com idéias incompatíveis derivadas de outros lugares.

    Os verdadeiros defensores do islã pareciam ser poucos, mas números não significavam nada. Os poucos tinham que se reunir no que Qutb em “Marco Histórico” chamou de uma vanguarda. Essa vanguarda de verdadeiros muçulmanos realizaria a renovação do islã e da civilização em todo o mundo.

    A vanguarda se voltaria contra os falsos muçulmanos e “hipócritas” e fazer o que Maomé tinha feito, que foi fundar um novo Estado, baseado no Alcorão. E de lá, a vanguarda ressuscitaria o califado e levaria o Islã a todo o mundo, assim como Maomé tinha feito.

    O martírio estava entre seus temas. Ele discute passagens na sura “A Vaca” do Alcorão, e explica que morrer como um mártir não é algo a se temer. Sim, algumas pessoas terão que ser sacrificadas.

    “Aqueles que arriscam suas vidas e saem para o combate, e que estão preparados para renunciar às suas vidas pela causa de Deus são pessoas honráveis, puras de coração e abençoadas de alma. Mas a grande surpresa é que aqueles entre eles que são mortos na luta não devem ser considerados ou descritos como mortos. Eles continuam a viver, como Deus mesmo afirma claramente”.

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  7. (continuação)


    Nasce o movimento terrorista egípcio

    Qutb escreveu: “Para todas as intenções e propósitos, essas pessoas podem muito bem parecer sem vida, mas a vida e a morte não são julgadas apenas pelos meios físicos superficiais. A vida é caracterizada principalmente pela atividade, crescimento e persistência, enquanto a morte é um estado de perda total de função, de completa inércia e falta de vida. Mas a morte daqueles que são mortos pela causa de Deus dá mais ímpeto à causa, que continua a prosperar em seu sangue. Sua influência naqueles que eles deixam para trás também cresce e se espalha. Portanto depois de suas mortes eles continuam a ser uma força ativa em modelar a vida de sua comunidade e lhe dar direção. É neste sentido que essas pessoas, tendo sacrificado suas vidas pelo bem de Deus, retêm sua existência ativa na vida do dia-a-dia. (...) Não há senso real de perda em sua morte, já que elas continuam a viver”.

    E foi assim com Sayyid Qutb. No período antes de sua prisão final e execução, diplomatas do Iraque e da Líbia lhe ofereceram a chance de fugir para a segurança em seus países. Mas ele se recusou a ir, com o argumento de que 3 mil jovens no Egito eram seus seguidores, e que ele não queria desfazer uma vida de ensinamentos se recusando a dar a essas 3 mil pessoas um exemplo de verdadeiro martírio.

    E, na verdade, alguns desses seguidores foram em frente para formar o movimento terrorista egípcio na década seguinte, de 1970 – os grupos que massacraram turistas e cristãos e que assassinaram o presidente do Egito, Anwar Sadat, depois que ele fez paz com Israel; os grupos que, anos depois, acabaram se fundindo com o grupo de Bin Laden e fornecendo suas doutrinas fundamentais à Al-Qaeda.


    As pessoas nesses grupos não eram estúpidas e não lhes faltava educação.

    Pelo contrário, continuamos a perceber como essas pessoas são educadas, que muitas delas vêm de classes altas, que elas são ricas. E não há motivo para que fiquemos surpresos. Essas pessoas estão em possessão de uma filosofia poderosa, que é a de Sayyid Qutb. Elas estão em possessão de uma gigantesca obra de literatura, que é “Na Sombra do Alcorão”.

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  8. (continuação)


    Idéias assustadoras

    Essas pessoas sentem que, consultando suas próprias doutrinas, elas possam explicar a infelicidade do mundo. Elas sentem que, com um estudo intenso do Alcorão, como dirigido por Qutb e outros pensadores, elas possam dar um sentido para milhares de anos de erro teológico. Elas sentem que, na noção de shariah de Qutb, elas comandem os princípios de uma sociedade perfeita.
    Essas pessoas acreditam que, em todo o mundo, elas estejam sozinhas preservando o Islã da extinção. Elas sentem que estão beneficiando o mundo, mesmo que estejam cometendo massacres. Elas certamente não estão preocupadas com a morte. Qutb deu a essas pessoas um motivo para desejar a morte. Sabedoria, piedade, morte e imortalidade são, em sua visão de mundo, a mesma coisa.

    Uma vida devota é uma vida de luta pelo islã, e luta significa martírio. Podemos pensar: essas são idéias assustadoras. E sim, as idéias são assustadoras. Mas há, na apresentação de Qutb, uma atração estranha nessas idéias.

    Seria ótimo pensar que, na guerra contra o terror, nosso lado também fala de profundas idéias filosóficas. Mas nossos líderes políticos falam de resoluções das Nações Unidas, de unilateralismo, de multilateralismo, de inspetores de armas, de coerção e de não-coerção. Isso não é uma resposta para os terroristas.

    O presidente George W. Bush, em seu discurso ao Congresso alguns dias depois dos ataques de 11 de setembro de 2001, anunciou que travaria uma guerra de idéias. Ele não fez isso. Ele não é homem para isso. Os filósofos e líderes religiosos terão que fazer isso por conta própria.

    Eles estão fazendo isso? Os exércitos estão se movimentando, mas os filósofos e líderes religiosos, os pensadores liberais, estão se movimentando também? Há algo para nos preocuparmos aqui, um aspecto da guerra que a sociedade liberal parece ter problemas para entender – mais uma preocupação, além de todas as outras, e possivelmente a maior preocupação de todas.

    Paul Berman é autor do novo livro “Terror and Liberation” (“Terror e Libertação”), ainda sem publicação no Brasil, do qual este ensaio é adaptado.

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  9. Comentário do pessoal da Vila Vudu enviado por e-mail e postado por Castor Filho)

    Me mandaram esse artigo, como fonte de informações sobre alguns dos personagens citados no artigo de hoje do Asia Times [está aí, adiante]. Achei útil, repasso. O artigo está em http://www.cacp.org.br/islamismo/artigo.aspx?lng=PT-BR&article=346&menu=4&submenu=1

    Valha o que valer o artigo, há aí uma ideia que me persegue há tempos e à qual eu nunca consigo dar forma. Formulada como se lê abaixo é "Uma vida devota é uma vida de luta pelo islã, e luta significa martírio. Podemos pensar: essas são idéias assustadoras. E sim, as idéias são assustadoras. Mas há, na apresentação de Qutb, uma atração estranha nessas idéias.

    Seria ótimo pensar que, na guerra contra o terror, nosso lado também fala de profundas idéias filosóficas. Mas nossos líderes políticos falam de resoluções das Nações Unidas, de unilateralismo, de multilateralismo, de inspetores de armas, de coerção e de não-coerção (e de uma democracia que, como a conhecemos, é -- e todos sabemos que é -- absolutamente manipulada pela chamada 'mídia')". BINGO. BINGO. Os 'argumentos' do ocidente são fragilíssimos. É como esperar que alguém movido por alguma fé, vá abjurar sua fé por 'argumentos' do Clóvis Rossi ou da Eliane Cantanhede ou da D. Danuza Leão! 8-)

    Achei interessante, repasso. E é cheio de informações que, afinal, se podem conferir e confirmar ou desmentir.

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  10. Comentário de Baby Siqueira Abrão enviado por e-mail

    Que horror!
    Será que esse pessoal acha que os egípcios que foram às ruas, usam a internet, dominam a técnica das redes sociais e têm informação de várias partes do mundo vão apoiar um governo islâmico? Os jovens que lideraram o movimento egípcio, pelo que vi nas entrevistas e na internet, querem liberdade, não um regime fechado e religioso, baseado em sharias.
    Além disso, a Fraternidade Muçulmana acena com mudanças. Já percebeu que, para manter-se e conseguir algum poder, precisa flexibilizar-se. Lembrar a herança dos abássidas para conseguir espaço político equivale ao ficcional "direito histórico" dos judeus à Palestina.
    Meus sais, que gente abominável!
    Baby

    (postado por Castor Filho

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