sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

“Liberdade ou morte”*

Pepe Escobar

12/2/2011, Pepe Escobar, Asia Times Online 
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Anunciei que permaneço no posto e que continuarei a arcar com minhas responsabilidades.
[Presidente Hosni Mubarak]
Vamos arrancá-lo daí!
[Cantado, na praça Tahrir]

O que deve fazer uma revolução, quando esperava que um ditador decrépito arrumasse as malas e partisse, ao vivo, pela al-Jazeera? Principalmente quando, horas antes, esperava um golpe militar? 

“Voltar para casa”? Pode esquecer. 

O fantasmagórico faraó Mubarak é de fato uma inamovível velha estátua enterrada nas areias do deserto. “Fui bem claro”? As reformas serão “implementadas por nossas forças armadas”? Artigo 179 – base da lei de emergência – será alterado, quem sabe, algum dia? Vagos poderes garantidos ao vice-presidente Omar “Sheikh al-Tortura” Suleiman? 

(A fala deliberadamente vaga do octogenário presidente Hosni Mubarak significava qualquer coisa, de “delegar poder” – não todo o poder – a “delegar as autoridades” de presidente, a tal ponto que o embaixador do Egito nos EUA teve de telefonar à CNN para explicar que Mubarak passou a ser presidente de direito, com Suleiman como presidente de fato. Tradução: Mubarak virou fantasma oficial. Cabeça de fantoche. Ou, sabe-se lá, nada disso.) 

Noutro registro, a ditadura militar (Suleiman, o ministro da Defesa marechal-de-campo Mohammed Hussein Tantawi e o comandante do exército tenente-general Sami Annan) esteve em todas as bocas ao longo dessa 5ª-feira. E nada fez sentido. 

Então veio o “Sheikh al-Tortura”, sinistro feito ator B em papel de Nosferatu. Como se o Sheikh al-Tortura anunciasse que, dali em diante, todas as práticas monstruosas que ele  supervisiona seriam conduzidas ordeiramente, para serem mais democráticas. Abrimos “as portas do diálogo”? “Não ouçam” a “subversão” das “redes de televisão por satélite”? “Voltem para casa”? A mesma conversa ‘nós, ou o caos’? O Sheikh al-Tortura pelo menos não trocou de fantasia. Afinal de contas, já ameaçara soltar “as bestas feras da noite... para aterrorizar as pessoas”. A rua sabe que ele mal se aguenta de vontade de por-se a matar à moda medieval. 

O regime como um todo ameaçara que o exército imporia lei marcial. O ministro do Exterior Ahmed Aboul Gheit disse à rede al-Arabiyya que “queremos que as forças armadas assumam a responsabilidade por estabilizar a nação mediante lei marcial, com o exército nas ruas”. 

Essam al-Erian da Fraternidade Muçulmana temia que o exército estivesse preparando o golpe. O New York Times, em mais um característico surto de amnésia, destacou que “Os militares planejam assumir o controle” (os militares jamais saíram do governo em toda a história moderna do Egito). 

Apesar daquele Nilo de esperanças, a rua não sabia se se preparava para uma grande festa ou para um banho de sangue. No fim, nem  uma nem outro. 

O Alto Comando Egípcio – o importante é que sem Mubarak e Suleiman – havia lançado um bayan raqm wahad (“Declaração n. 1”, em árabe), coisa que, no mundo árabe é a expressão-código para golpe militar. A declaração, a duras penas, anunciava “apoio às legítimas demandas do povo”. É a ideia que têm para um novo brilhante futuro para o Egito (idade média no país: 24 anos); comunicado vagabundo. 

Fato é que parte da rua considerava um “golpe de transição” melhor do que um Sheikh-al-Tortura de transição. A rua já havia deixado claro que não aceitaria governo de transição chefiado pelo Sheikh al-Tortura – vulgo mubarakismo com maquiagem leve. 

Ontem, o próprio Mubarak anunciou que passava o bastão para o Sheikh al-Tortura – mas talvez não. Assim, do ponto de vista da rua, preparou-se o cenário para “negociações” controladas pelo regime. A rua sabe que Suleiman manipulará essas conversações como perfeita cobertura para impor-se, maquiagem leve, e perpetuar o regime dos torturadores. Adeus, democracia. Afinal, o Sheikh al-Tortura em pessoa já disse que o Egito não está preparado para a democracia. 

E o exército? Saiu de cena? Rachou?

Antes da dupla aparição Mubarak/Suleiman na televisão estatal, o boato mais quente que circulava no Cairo dizia que Washington não economizou conversas e ameaças para conseguir que Mubarak transferisse seus poderes – todos – para Suleiman. Annan e uma maioria de altos oficiais militares se opunham à proposta de Washington, mas os comandantes da Força Aérea e da Guarda Republicana aprovavam. Tantawi sentou no muro. Dica de cocheira era que Annan venceria. 

Até agora, não venceu. O exército se dividirá? Imediatamente depois da fala de Mubarak, muita gente no Cairo começou a receber mensagens de texto nos celulares, do Alto Comando do Egito, dizendo que estavam “monitorando” a situação e “decidiremos como agir” – mensagem mais ambígua nunca houve. Demora, até construírem o comunicado n. 2. 

Tudo sugere que esteja em curso uma dura guerra civil palaciana no Cairo. Talvez uma dupla divisão: dentro da ditadura militar (o exército contra os serviços secretos militares), mais o exército contra Mubarak. É receita certa de banho de sangue a qualquer momento. O exército não pode continuar a fazer jogo duplo e assistir à disputa sentado no muro. Restou à rua a estratégia de aumentar ao máximo a pressão sobre os comandantes militares e os soldados recrutas, para obrigá-los a alinhar-se com a democracia. 

Enquanto isso, a narrativa dominante em Washington é que a Casa Branca foi outra vez horrorosamente humilhada por um sátrapa. Há precedentes, como já escrevemos, do primeiro-ministro de Israel Benjamin Netanyahu ao presidente do Paquistão. Mas considerando as apostas estratosfericamente altas, Washington, Telavive e Riad estão, mais ou menos, conseguindo o que queriam, tendo apostado no pangaré da “transição ordeira”. 

Até agora, estão com o Sheikh al-Tortura como novo rais de fato; com Mubarak como fantasma, cabeça-sem-mula, ou manobrador invisível de fantoches, e o exército, pelo menos teoricamente está apoiando o novo homem forte. O único detalhe que não se considerou é o povo. 

Interessante é que a rede al-Arabiyya – que é a voz amplificada da Casa de Saud – sabia exatamente o que Mubarak diria, desde, pelo menos, uma hora antes de o discurso ir ao ar. O resto do mundo, a Casa Branca e a CIA-EUA inclusive, tinha certeza de que ele renunciaria. 

Num plano paralelo, o mais próximo que Barack Obama dos EUA jamais chegou de apoiar com clareza o poder popular, ou quase, é uma frase patética, da declaração feita depois do fiasco de Mubarak/Suleiman pela televisão, em que disse que “os que exerceram o direito de reunir-se pacificamente (...) são amplamente representativos da sociedade egípcia”. Mr. President, a rua egípcia está de olho no senhor. 

A bola maior-que-a-vida voltou para o campo da rua egípcia. A luta agora é conseguir o completo desmonte da polícia secreta. Nas palavras de muitos manifestantes na Praça Tahrir: “Liberdade ou morte”. É possível que o Egito arda, porque o regime está apostando no incêndio. O que deve fazer a revolução? Avançar sobre a Bastilha, ou insistir na resistência passiva sem fim? Vá para o lado que for, o tempo de liberdade ou morte é hoje.

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*Orig. “Give me liberty or give me death”. É frase atribuída a Patrick Henry (1736-1799), um dos Pais Fundadores dos EUA, orador e político que liderou o movimento de independência da Virgínia, nos anos 1770s. É frase muito conhecida nos EUA (uma espécie de “Independência ou Morte” no Brasil). Uma versão do discurso, datado de 23/3/1775 (em inglês), pode ser lida em: Give Me Liberty Or Give Me Death  [NTs].

Um comentário:

  1. (Comentário enviado por e-mail e postado por Castor Filho)

    Um golpe desfechado pelo Alto Conselho Militar, chefiado pelo General Mohâmede Hussêin Tantáui, Ministro da Defesa, alijou, enfim, o ditador Hósni Mubárake do poder. O policiesco Ômar Sulêiman, designado Vice-Presidente nos últimos dias, anunciou a decisão. Mas todos sabemos que foi uma vitória do Povo Egípcio, que, por 18 dias, demonstrou ao país, ao mundo árabe e à comunidade internacional que não mais era possível a sobrevivência de um regime por três décadas promotor de torturas e mortes e peculatos bilionários de toda ordem. Independentemente dessas práticas criminosas, a ditadura favoreceu os interesses dos vetores ocidentais no Oriente Médio, em conivência com os agrupamentos mais reacionários de Israel.

    É de esperar-se que o Povo Egípcio não permita o domínio militar absoluto do mais importante país árabe e conduza os camaradas de Tantáui à aceitação de um inédito regime democrático no Cairo, em Alexandria, Suez, Ismaïlia, Assuan e em toda parte do Egito. A Revolução de 1952 trouxe militares à ribalta, chefiados pelo General Mohâmede Náguibe, logo substituído pelo artífice do movimento, Coronel Gãmal Ábdel Násser, que acenderá as esperanças de liberdade e desenvolvimento de todos os povos árabes. Contudo, os vetores ocidentais, em plena Guerra Fria, atrapalharam a execução do grande projeto pan-arabista do maior líder árabe, desde o início da secular colonização otomana, seguida pelas potências europeias, França e Grã-Bretanha à frente.

    Quando F.D. Roosevelt encontrou-se com Winston Churchill no Cairo (1943), recebendo o Rei Ibn Saude, o generalíssimo Tchiang Kai-cheque, a sorte do mundo árabe recaiu nas mãos dos EUA, que inauguraram nova forma de colonização (à distância). O jovem Násser descobriu isso antes de tomar o poder, preconizando a libertação árabe e o que será batizado como não-alinhamento, este a ser consagrado em Bandungue (1955).

    Mas o Império utilizaria Israel para destruir esses planos, nos conflitos de 1956, 1967 e 1973. Assim mesmo, ao falecer em 1970, Násser era cercado de simpatia da sua gente e de todos os árabes. Seu sucessor, Ânuar el-Sádate, ao assinar a paz em separado com Israel (1979), selou seu trágico destino, morrendo metralhado durante um desfile militar (1981). Em 1975, Sádate nomeara Vice-Presidente o Comandante da Força Aérea, um medíocre, mas muito esperto e matreiro, militar que lhe sucederia ao morrer, a partir de então como Presidente da República. Em suas três décadas no poder, Mubárake amealhou para si, seus parentes e seus cupinchas riqueza incomensurável, algo em torno de US$ 40 bilhões, talvez mais. Tendo resignado na tarde de ontem, retirou-se para seu palacete residencial em Charm el-Xeque, no Sinai. Merece outro destino que não o de refugiado em seu próprio país.

    Viva o Povo Egípcio! Que consiga sua libertação total, inch'Állah! Condolências às famílias e companheira(o)s das vítimas do movimento de dezoito dias. São mártires dessa inédita Revolução das nações árabes e de todos os países menos aquinhoados.

    Abraços do
    ArnaC

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