Robert Darnton |
22/2/2011, Robert Darnton [1], New York Review of Books, Blog
Traduzido pelo Coletivo da Vila Vudu
O problema atormentou todos os artigos e todas as matérias de televisão sobre Egito, Tunísia e outros países da Região, cujas massas revoltaram-se: o que é uma revolução?
Nos anos 1970s, essa era pergunta sempre repetida nos cursos sobre revoluções comparadas. Agora, passando os olhos em minhas velhas notas de aula, não posso deixar de sentir um percurso: Inglaterra, 1640; França, 1789; Rússia, 1917... e Egito, 2011?
Não me atrevo a falar do futuro dos eventos em curso no Egito ao longo das três semanas passadas, mas acho justo perguntar se as informações que chegam agora a cada segundo, por todos os meios de comunicação, do Twitter às televisões, teriam alguma relação com os modelos clássicos de revolução. Ou se o Egito não nos estará ensinando a esquecer aqueles modelos e abrir os olhos para um outro tipo de levante jamais imaginado, nas muitas variedades de nossa velha ciência política?
Do ponto de vista dos anos 1970s, a França produziu a mãe de todas as revoluções nos anos 1780s; e assistimos a todas as fases prototípicas da experiência francesa: o colapso da velha ordem; um período de reconstituição constitucional; a radicalização, o terror, a reação e uma ditadura militar. Se os eventos no Egito descrevem-se por esse padrão, mal chegaram à fase um, e têm muito chão pela frente.
Mas por que teriam de ser descritos por esse modelo? Talvez, como diziam alguns historiadores, o modelo manifeste uma dialética mais profunda, que se pode detectar em todos os grandes levantes. Outros contra-argumentavam, citando elementos que só se viam em cada determinado levante, como liderança incompetente, falta de capacidade para antecipar consequências e a mais pura contingência. Os elementos da contingência com certeza pesaram muito em 1789. Se Luis XVI tivesse feito concessões a tempo, aos revolucionários, ou se os tivesse reprimido com decisão, as coisas talvez tivessem tomado outro rumo. Nesse sentido, sim, talvez se possa dizer que houve algo de Luis XVI
em Mubarak.
E quanto a outros princípios da ciência política que tanto se evocavam? A “curva J”, por exemplo, que descreveria uma reação coletiva a melhoria de curto prazo na economia, depois de um período de estagnação? Ou a “revolução das expectativas crescentes”, na qual reformas super racionadas deflagrariam esperanças irrealizáveis? O caráter supercentralizado da administração do Estado, que levaria à atrofia da vida civil fora do centro e tornava vulnerável a capital? O nível de frustração da burguesia, os “intelectuais alienados”, a elite dividida, as reformas mal projetadas e, claro, o preço do pão?
Dito francamente, minhas velhas anotações de estudos e conferências pouco me ajudaram a entender as notícias do dia. Tentei ainda ajudar a encaminhar meus alunos na direção certa, insistindo que Maria Antonieta jamais disse “Então, que comam brioches”. Mas uma repórter da praça Tahrir citou frase que ouviu de um dos revolucionários: “Quero meu frango frito do Kentucky!” Foi o que bastou para gerar rumores, plantados pelos mubarakistas, de que as manifestações estariam sendo manipuladas por potências estrangeiras, que subornavam manifestantes para que permanecessem na praça. Fato é que aquele dito também mostrava que os manifestantes não haviam perdido o senso de humor. Revolução com um toque de riso? Robespierre algum dia riu?
Por cinco dias, no auge da revolução do Egito, o velho regime lutou para salvar-se, bloqueando completamente o acesso à internet. Os revolucionários reagiram, fazendo correr mensagens de boca a boca, pelas redes humanas. Quanto a isso, acho que não houve novidade em relação ao que se viu em Paris em 1789, quando as redes de comunicação oral foram crucialmente importantes. Assim como a tomada da Bastilha começou, dia 12 de julho de 1789, quando Camille Desmoulins subiu numa mesa, posta no jardim do Palais-Royal, e gritou que a multidão avançasse para o Hôtel des Invalides, assim os manifestantes no Cairo avançaram para a praça Tahrir e a ocuparam, convocando grupos para reuniões em pontos centrais da cidade, dos quais partiram em marcha,
em massa.
Chamaram-me especialmente a atenção, ao meu olho estrangeiro, as cenas em que se viam muitos telefones e câmeras digitais: as pessoas filmavam ao mesmo tempo em que tentavam escapar da pancadaria dos mercenários montados em dromedários pró-Mubarak. Militantes habituados ao ativismo de internet marcavam o ritmo das manifestações, usando os mais atualizados instrumentos de comunicação. Nada conteve o avanço do movimento desde o primeiro protesto, dia 25 de janeiro, quando Wael Ghonim, 30 anos, executivo da Google, mostrou o rosto horrivelmente mutilado de Khaled Said, vítima da brutalidade policial, na página Facebook que criara: “Todos Somos Khaled Said” [orig. “We Are All Khaled Said” [2]].
Do Facebook às emoções viscerais por YouTube, a mensagem viajou pelo mundo. E então, logo depois do início das manifestações, Ghonim desapareceu. Dia 27 de janeiro, enviou mensagem preocupada pelo Twitter (“Rezo pelo #Egypt. Preocupado. Governo planeja crime de guerra contra o povo. Estamos prontos para morrer #jan25”. Depois, desapareceu. Passou 12 dias de olhos vendados, no que deve ter sido uma câmara de tortura. Quando foi libertado, viu-se repentinamente à luz do dia, sendo entrevistado pela única rede independente de televisão que havia no Egito. Quando lhe disseram que havia centenas de pessoas espancadas até a morte nas ruas, Ghonim desmoronou, e afastou-se das câmeras chorando convulsivamente. O gesto e o pranto, imediatamente disseminados por YouTube e Twitter, galvanizaram o Egito. O pranto de Ghonin, visivelmente sincero, não encenado, deu novo ânimo aos protestos, em momento em que começavam a amainar. Nunca, antes, alguém conseguira tão rapidamente e tão vigorosamente, furar a muralha eletrônica que separava os egípcios e qualquer informação confiável. Foi cena high-tech de alta autenticidade, um grito do coração que penetrou até o fundo e agitou o puro artifício de nossa “era da informação”.
No século 18, usava-se a expressão “emoções populares”, para falar de agitações de rua e levantes. E outra, “ruídos públicos”, para designar ideias que circulavam pelas redes sociais, de boca em boca. Relendo anotações amareladas daquelas aulas, não vejo modelo antigo, que os egípcios tenham usado. Mas os tuiteiros na praça Tahrir carregam ecos do passado mais distante, e meu coração segue com eles.
Notas de tradução
[1] Para saber quem é, se não souber, clique em CV Robert Darnton . É autor de um dos livros mais interessantes que jamais chegou às nossas mãos e lemos, cá na Vila Vudu, em todos os tempos: O Iluminismo como negócio. História da publicação da Enciclopédia, na Europa. É autor, também, de outro estudo totalmente sensacional:Poetry and the Police: Communication Networks in Eighteenth-Century Paris, 2010, sem tradução no Brasil. Além de vários outros estudos históricos, também totalmente sensacionais, dentre os quais, por exemplo, O Grande Massacre De Gatos e Outros Episódios da Historia Cultural Francesa (1988). É historiador, especialista em história da França no século 18 (NTs, que pode ser muito melhorada).
[2] Ocorreu-nos, nas conversas para essa tradução, que André Malraux, dia 19/12/1964, quando da transferência para o Panthéon, das cinzas (pressupostas, porque o cadáver não foi jamais identificado com certeza absoluta) de Jean Moulin, herói da resistência francesa morto sob tortura, pronunciou um famosíssimo discurso, conhecido como “Le visage de la France”. No discurso, Malreaux disse: “Juventude, pensa nesse homem como se acariciasses o seu pobre rosto destroçado do último dia. Naquele dia, aquele era o rosto da França (...)”. “Todos Somos Khaled Said”, com imagens do rosto de um morto torturado, se não é, bem poderia ser um eco histórico revolucionário de “Aquele é o rosto da França”, de Malraux.
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