sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

A estrada que leva ao Cairo passa por Bruxelas

Anti-Ballistic Missile Defense (ABM).

12/2/2011, *M K Bhadrakumar, Asia Times Online
Traduzido pelo Coletivo da Vila Vudu

Com a atenção do mundo ainda atraída pelas dores do parto de um Novo Oriente Médio, onde cada 6ª-feira promete espetáculo mais surpreendente, as conversações que se iniciaram em Bruxelas na 5ª-feira entre a OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) e a Rússia, sobre um sistema de mísseis antibalísticos [orig. anti-ballistic missile (ABM)] europeu foram para o fundo do palco. Comparada a Cairo ou Teerã, Bruxelas é cidade sem emoções. 

Mas as conversações em Bruxelas vão além da criação de um sistema de defesa antimísseis para a Europa; devem modelar também a direção das equações entre Rússia e EUA e o ocidente, com impacto significativo sobre a segurança do Oriente Médio. Essas conversações são desenvolvimento da decisão tomada na reunião de cúpula da OTAN em Lisboa, novembro passado, de que a aliança e a Rússia formulariam, conforme os objetivos de estudo conjunto, os termos de uma cooperação para mísseis de defesa (chamada Euro-ABM), a ser apresentada em junho de 2011, data limite. 

Barack  Obama
O governo Barack Obama fez todo o possível, nos últimos dias, para criar atmosfera positiva para as conversações. A secretária de Estado Hillary Clinton destacou a cooperação com a Rússia para o sistema Euro-ABM, no discurso da semana passada na 47ª Conferência de Segurança em Munique. “Buscamos abordagem genuinamente cooperativa (...), que fortaleça a cooperação com a Rússia e aumente a segurança comum, ao mesmo tempo em que preserve a estabilidade estratégica. Já iniciamos essas conversações com Moscou sobre como alcançar esses objetivos.” Uma nova estratégia militar, revelada pelo Conselho do Estado-Maior dos EUA na 4ª-feira em Washington, também menciona a Rússia como um dos parceiros-chave de Washington na política global. 

O documento dizia que os EUA visam a fortalecer a cooperação militar com a Rússia, além da cooperação na luta contra o terrorismo e para prevenir a proliferação de armas atômicas. Mencionava também exploração conjunta do espaço e um escudo antimísseis. As palavras de acomodação que se leem no documento devem ter animado um pouco os russos. 

Há apenas uma semana, telegramas publicados por WikiLeaks exibiram ao mundo a embaraçadora evidência de que Obama nada concedeu à Rússia no final de 2009, apesar do discurso, naquele momento, sobre “desligar-reiniciar” [orig. “reset”] relações com Moscou. Naquela ocasião, pelo que se sabe hoje, Obama rejeitou o plano de governos anteriores para instalar componentes do sistema antimísseis dos EUA na Polônia e na República Tcheca. 

A correspondência diplomática publicada pelo jornal Daily Telegraph deixou claro que Obama apresentou como mérito o que fazia por absoluta necessidade, porque Washington enfrentava sérios problemas técnicos com o sistema de radar previsto para detectar mísseis de longo alcance ainda no estágio de lançamento. Claro que a Rússia desconfia das intenções dos EUA em relação ao sistema de mísseis de defesa. O xis da questão, por trás dessa desconfiança, é a suspeita de que os EUA trabalham para alcançar “superioridade nuclear” sobre a Rússia, superioridade que a União Soviética frustrou durante a Guerra Fria. 

O discurso do ministro de Relações Exteriores da Rússia Sergei Lavrov, na conferência de Munique, destacou esse fato: “Creio que todos entendem que o acordo a discutir (...) de modo algum implica que a Rússia esteja aceitando qualquer programa da OTAN desenvolvido sem a Rússia. O princípio do ‘pegar ou largar’ não se aplica aqui (...) Se nossos interesses não forem levados em conta, se não se alcançar trabalho conjunto equitativo, será preciso garantir compensações pelo desequilíbrio que surgir.” 

Sergei Lavrov
Nas palavras de Lavrov, “nossa habilidade para criar conjuntamente uma Defesa Euro-Míssil que envolva a Rússia e a OTAN será um teste para a sinceridade das declarações sobre parcerias desejadas, sobre transformação radical do contexto estratégico das relações, para o estabelecimento – de fato, não apenas em palavras – de uma comunidade de segurança euro-atlântica e eurasiana sem divisões.” 

Em termos de retórica, tudo bem. Mas há imensas diferenças estratégicas e técnicas que põem sob risco uma arquitetura conjunta Rússia-OTAN de mísseis de defesa na Europa. Do ponto de vista da OTAN, o formato proposto para cooperação com a Rússia é muito razoável, a saber, que os dois lados podem ter “sistemas independentes, mas coordenados”. 

A aliança avançará, com o desenvolvimento de capacidade territorial própria de mísseis de defesa, exclusiva e indivisível. (A Cúpula de Lisboa adotou os planos de entrega dos EUA na Europa como contribuição nacional dos EUA ao programa da aliança.) De fato, a duas semanas, dia 27 de janeiro, a aliança completou o primeiro esboço de um teatro de transição do que pode vir a ser alguma capacidade de defesa balística. 

A OTAN espera colaborar com a Rússia, com troca de informações e sinergia potencial entre a capacidade da aliança e o sistema russo independente de mísseis de defesa; e a Rússia terá liberdade para desenvolver sua própria arquitetura ABM. Mas Moscou quer uma arquitetura ABM ampla para toda a Europa. 

A dolorosa verdade é que a Rússia não tem capacidade para acompanhar o sistema ABM que os EUA terão à altura do ano 2020, e que incorporará alertas muito precoces e defesa aérea e espacial. Além disso, há dúvidas sobre se as especificações técnicas e o posicionamento da capacidade ABM dos russos são compatíveis com os sistemas ABM dos EUA, que são altamente móveis e muito flexíveis. 

Também em termos políticos, o art. 5º do Tratado de Washington que estabelece a OTAN estipula que a defesa coletiva é responsabilidade exclusiva dos estados-membros da aliança. Além disso, qualquer envolvimento da Rússia que mesmo remotamente soe como interferência no potencial do ABM-EUA estará longe de ser aceitável por um Congresso dos EUA dominado pelos Republicanos. 

Por outro lado, a instalação do ABM-EUA em terras da Polônia e da Romênia (esperada para 2015-2020) é vista em Moscou como ameaça à capacidade de ataque-resposta russo. O governo Obama esboçou uma “abordagem adaptativa em etapas” [ing. “phased adaptive approach”] que enfatiza a instalação de interceptadores Standard Missile 3 baseados no mar e em terra à volta da Europa. A instalação, no período 2011-2020, envolve mísseis de curto e médio alcance nos primeiros estágios, e exige que se instalem defesas mais avançadas nos últimos anos, para controlar a ameaça de mísseis de alcance intermediário e de mísseis balísticos intercontinentais [ing. ICBMs].

No discurso em Munique, Clinton disse que “Nós [os EUA] não aceitaremos qualquer limitação às nossas defesas de mísseis”. Que escolhas terá Moscou, dado o inexorável progresso do programa ABM da OTAN, a determinação dos EUA de manterem-se aderidos à “abordagem adaptativa em fases” e a incapacidade da Rússia para equiparar-se financeiramente e tecnologicamente ao programa da aliança? 

Uma alternativa seria unir-se à China e desenvolver capacidade militar conjunta dos dois países, que os EUA só poderão igualar se impuserem sacrifícios ainda maiores à própria economia. Mas, nesse caso, Moscou com certeza temerá que a aceleração da capacidade chinesa em mísseis balísticos implicará também ameaça à segurança da Rússia. 

Como escreveu recentemente Dmitri Trenin, de Moscow Carnegie, uma aliança com a China significaria que a Rússia aceitaria o papel de “base de matéria prima e área de apoio estratégico” da China, relegando-se, a própria Rússia, ao papel de “aliado político-militar mais jovem, ou seja, ao papel de vassalo de Pequim”. 

Dmitri Trenin
Desnecessário dizer que é imperativo para os russos manter relações amistosas e estáveis com a China, e até Trenin admite que “seria temeridade arriscar essas relações”. Ao mesmo tempo, o vento que sopra mais forte em Moscou não parece ser favorável aos “orientalistas”.
Em resumo, Moscou não parece estar, de modo algum, em posição de forçar qualquer mudança essencial no curso do programa ABM dos EUA. Em princípio, pode retaliar, reiniciando uma corrida armamentista, mas há o risco de aumentar a carga financeira já alta da operação, e, nesse caso, terá de abandonar suas ambições de “inovação”. 

Já próxima de tornar-se país-membro da OTAN, portanto, e se for mantida a orientação pró-ocidente da Rússia, o país precisa acertar um programa amplo de cooperação de longo prazo com a aliança. Os EUA parecem convencidos de que Moscou acabará por descobrir um modo de fazer exatamente isso. 

Seja como for, a Rússia ainda guarda uma carta na manga – sua capacidade de ser “não-cooperativa” em questões como o Novo Oriente Médio ou a situação do Irã. No meio do caos no Cairo, o secretário-geral da OTAN Anders Fogh Rasmussen acaba de visitar Israel e comentou a controversa ideia de que a OTAN poderia apresentar-se como ‘garantidora da paz’ entre palestinos e israelenses – papel que, por vias crucialmente decisivas, foi cumprido até agora pelo presidente Hosni Mubarak do Egito. Muito evidentemente, Rasmussen dava voz a processo pensado nos EUA.

Mas Moscou “contrapropôs” que o Conselho de Segurança da ONU envie missão ao Oriente Médio, considerados os desenvolvimentos no Egito. Sobre o Irã, outra vez os dois, Lavrov e o primeiro-ministro russo Sergei Ivanov, demarcaram uma “linha vermelha” em Munique: a Rússia se oporá a qualquer tentativa dos EUA de impor novas sanções ao Irã. 

Pode-se supor que a Rússia esteja vendo um ponto que parece ter sido afogado na confusão geral, com Mubarak sob ameaça de ter de deixar o palácio presidencial: que a estrada que leva ao Cairo passa por Bruxelas. 


Embaixador*M K Bhadrakumar foi diplomata de carreira; serviu no Ministério de Relações Exteriores da Índia. Ocupou postos diplomáticos em vários países, incluindo União Soviética, Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão, Kuwait e Turquia.

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